Por Jana Viscardi
Quarta-feira, 25 de setembro de 2019
No início do texto “Linguagem e o lugar da mulher”, a pesquisadora Robin Lakoff nos diz que “a marginalidade e impotência da mulher é refletida tanto em como se espera que as mulheres falem quanto na forma como se fala sobre as mulheres”. O artigo foi escrito em 1973, mas os questionamentos ali propostos seguem, infelizmente, bastante atuais. Vejamos por quê.
No dia 23 de setembro de 2019, uma jovem de 16 anos, chamada Greta Thunberg, fez um discurso na convenção do clima da ONU. Sua fala repercutiu no mundo todo. Jornais e revistas reverberaram o que foi dito por ela, caracterizando seu discurso como “emocionante”, chamando-a de “pequena indomável”. Mas não foram apenas estes os comentários feitos à sua fala. O radialista Gustavo Negreiros chamou-a de “histérica” e “mal-amada”. No Twitter, Eduardo Jorge, do Partido Verde, disse:
No dia 23 de setembro de 2019, uma jovem de 16 anos, chamada Greta Thunberg, fez um discurso na convenção do clima da ONU. Sua fala repercutiu no mundo todo. Jornais e revistas reverberaram o que foi dito por ela, caracterizando seu discurso como “emocionante”, chamando-a de “pequena indomável”. Mas não foram apenas estes os comentários feitos à sua fala. O radialista Gustavo Negreiros chamou-a de “histérica” e “mal-amada”. No Twitter, Eduardo Jorge, do Partido Verde, disse:
O político critica a jovem ao afirmar que ela substituiu “a paixão pela raiva na sua fala na ONU”. Sua fala, contudo, ecoou de outra postagem no Twitter, de Augusto de Franco, que disse:
São distintos os adjetivos empregados por estes três indivíduos, todos figuras públicas, para caracterizar a fala de Greta Thunberg. Mas há nessas manifestações algo em comum: a crítica à forma como se expressou a jovem em seu discurso, tida como “fora de controle” ou, no dizer do próprio jornal, “indomável”.
Este adjetivo por si só já diz muito sobre o papel da mulher em sociedade. Aquela que expressa emoções diferentes de doçura ou que demonstre fragilidade, é lida como “indomável”. Raiva, indignação, firmeza. Não importa.
Quero apresentar a vocês, aqui, outra perspectiva. Vamos lá. Todos nós, aos nos comunicarmos, fazemos uso do que se chamam “diferentes recursos semióticos”, ou seja, para dizer o que você precisa e/ou quer dizer, você usa mais que apenas a língua – as palavras, sua estrutura e gramática. É preciso, inevitavelmente, fazer uso das expressões faciais, de gestos corporais, do direcionamento do olhar. A prosódia guia também os caminhos daquilo que estamos dizendo. Esses e tantos outros recursos são importantes no como dizemos o que queremos.
A chave para o uso desses recursos está no fato de que, desde pequeninos, vamos aprendendo em que contextos usar quais recursos (e, claro, falhamos, em muitos momentos, na escolha e emprego desses recursos). Assim, o uso desses recursos todos pode mudar a depender da situação a que o falante está exposto. E, pasmem, a interpretação do uso desses recursos também mudará a depender de quem está falando.
Por isso, vou dizer a vocês: é difícil para uma mulher encontrar esse tom ideal de que falam os rapazes que indiquei acima. Dilma era “durona demais”. Não era bom. Greta expressa raiva. Também não é bom. Quando a mulher expressa sua opinião, diz-se que ela fala demais (e há estudos que mostram que, na verdade, mulheres não falam mais que homens, mas, ao falarem, são vistas como verborrágicas). Dessa forma, o único caminho possível parece ser o da doçura e da parcimônia, que a mantém na marginalidade, nas franjas da história, como já de costume.
E olha só como isso vem de longe, de como categorizamos indivíduos e enquadramos seus comportamentos “aceitáveis”. Às meninas, sugerimos que sejam educadas, que sejam simpáticas, que sorriam. Essas características, que não estão necessariamente na língua, mas a acompanham, moldam o nosso entendimento de mundo. São enquadramentos definidores de nossa participação em sociedade, e da participação das mulheres na sociedade. Assim, historicamente, durante anos o lugar da mulher foi o lugar ora do silêncio acolhedor ora da doçura igualmente acolhedora. Mas, pasmem, essas molduras em que colocamos indivíduos e situações não são imutáveis. E graças à essa possibilidade de mudança, mulheres têm tido mais espaço para falarem, não só com doçura.
No entanto, ainda que as mulheres, em algumas circunstâncias e contextos, não sejam proibidas (literalmente) de falar, cercear ideias de mulheres acontece de outra(s) (várias) forma(s): através das críticas feitas à forma como se expressam, à sua inadequação. E como é tão difícil encontrar o enquadre perfeito, é como se as mulheres fossem costumeiramente inadequadas, inaptas para ocuparem espaços de fala que ocupam.
Esperar que uma jovem haja com doçura diante de um discurso que pretendia combater uma realidade que levará à destruição do planeta é contraditório, equivocado. Demonstra das partes pouco entendimento de como funcionam as estratégias comunicativas e discursivas. Ou seja, este é um erro que deve, certamente, ser atribuído ao machismo ainda tão presente em nossa sociedade, mas também é um erro que representa a falta de entendimento da maneira como todos nós comunicamos as coisas como as comunicamos e como usamos os recursos que temos disponíveis – linguísticos ou não – para isso. São distintas as emoções que expressamos juntamente com o que falamos. São diferentes os recursos que nos estão disponíveis justamente porque são distintas as situações em que podemos empregar esses recursos.
Minha sugestão a esses e outros rapazes: é já velha e conhecida a estratégia de atribuir “selvageria” às mulheres que se expressam para além do doce. Chamar Greta de “indomável” e “histérica” apontam justamente nessa direção. Dar foco e buscar “corrigir” sua raiva também.
Há anos vem se discutindo o machismo inerente a essas atribuições, derivadas justamente do papel histórico atribuído as mulheres em sociedade. No entanto, este mundo vem mudando. E vocês, seguramente, se dizem igualmente mudados, homens que não são machistas. Pois bem, para que não sejam lidos como machistas, precisam abdicar de colocar as mulheres na marginalidade, caracterizando como “indesejáveis” algumas de suas características, tão pertinentes aos contextos em que são expressas. Essas características, como bem sabemos, não são recriminadas, em boa medida, em homens. Não deveriam, assim, ser recriminadas em mulheres. Já passou da hora de vocês ampliarem o entendimento do que é ser mulher e acolherem o conteúdo de suas falas também quando expressam indignação ou raiva, da mesma forma como fazem com homens. Lidem com isso e criem novas molduras de entendimento de mundo. Vocês estão precisando.
Jana Viscardi é doutora em Linguística pela UNICAMP, com passagem pela UniFreiburg, na Alemanha. Professora e palestrante, faz vídeos semanais sobre linguagem e comunicação (e otras cositas más) no canal do Youtube que leva seu nome.
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