"Eu fui para a minha primeira entrevista de emprego com a camisa toda suja de sangue após levar uma surra."
"Ela me acusava de querer ser amante do meu próprio pai."
"Deu uma risada e disse: 'pena que você não conseguiu se matar…'"
Karina*, Julia* e Larissa* levaram décadas para conseguir contar suas histórias. Quando tentavam, ninguém acreditava: "ingratas", "desnaturadas", "mal agradecidas" eram algumas das críticas que elas ouviram ao falar dos abusos que sofreram das mãos das próprias mães.
Com a internet, porém, elas conseguiram. Num fenômeno recente nas redes sociais brasileiras, fazem parte de grupos, comunidades, canais no YouTube e até podcast que abordam as histórias de pessoas que sofreram com o abuso materno: de espancamentos e tortura psicológica à falta de cuidados básicos com a saúde.
Cárcere privado
Quando era criança, Karina sempre tinha um pedido quando os parentes ou amigos de seus pais iam visitá-los: "me leva pra sua casa?" Hoje com 53 anos, a jornalista lembra que fazia de tudo para não ter de ficar no mesmo ambiente em que a mãe. "Eu detestava férias e fim de semana porque significavam espancamentos. Eu era o saco de pancada". Ao conseguir a primeira entrevista de emprego, já aos 20 anos, ela conta que a mãe entrou no banheiro onde ela estava e a espancou com um cinto, até sangrar. Para não se atrasar, foi com a roupa suja de sangue.
Há pouco mais de três anos, após um período de afastamento, Karina precisou voltar à casa da família. Havia feito um mau negócio na venda de um apartamento e passou a viver praticamente, diz, em cárcere privado.
"A relação com minha mãe deveria ter sido primeiro amor. Viemos ao mundo com essa expectativa, mas quando é estabelecida uma relação tóxica, isso muda toda a sua vida. Eu poderia ganhar o Nobel que ainda não seria suficiente para ela". Karina precisou recomeçar a vida em outra cidade, o Rio de Janeiro, para cortar qualquer contato com a família.
A jornalista participa de algumas das páginas nas redes sociais que tratam do abuso materno e que se referem especificamente ao conceito de "mães narcisistas", relacionado ao Transtorno de Personalidade Narcisista. Parte de uma área relativamente nova na comunidade médica, ele é identificado pela Associação Americana de Psiquiatria como uma necessidade patológica "por admiração e falta de empatia pelo outros".
De acordo com o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), pessoas com esse problema também não conseguem lidar com qualquer coisa que seja percebida como crítica, se tornam impacientes ou violentas quando não recebem tratamento especial, tentam diminuir outras pessoas para se sentir superior e tiram vantagem dos outros para conseguir o que querem.
"No caso específico das mães que vivenciaram a gravidez, a separação com o bebê, à medida que ele vai crescendo, é sempre difícil. Mas, quando se tem esse transtorno, isso vai virando raiva, ódio. Elas querem os filhos como imagens de si, eles não podem ter autonomia, ser independentes, viver a própria vida. Isso leva a um crescimento muito dificil e deixa um rastro de pessoas inseguras, que não se abrem, com dificuldade de enfrentar a vida", explica.
Em apenas uma das páginas sobre o tema, "Narcisismo Materno", no Facebook em português, há mais de 60 mil perfis que acompanham o conteúdo. Um post traz uma imagem com a frase "As coisas não estão ficando piores. As coisas estão sendo expostas": "É triste mas ao mesmo tempo é libertador quando vc descobre que o problema nunca foi você e sim ela", comenta uma participante.
No YouTube, um vídeo publicado há um ano acumula mais de 127 mil visualizações. Uma psicóloga fala como identificar uma "mãe narcisista" : "Não tem empatia, vai responsabilizar você pelos problemas, é sempre dona da verdade. Só vai te tratar bem se precisar alguma coisa", ilustra a um público que entra numa espécie de comoção coletiva ao encontrar esses sinais nas próprias mães.
Ciclo de sofrimento
Quando busca as memórias mais antigas da sua infância, a auxiliar de escritório Larissa lembra dos conflitos com a mãe. Desde criança até a adolescência, recorda-se de agressões psicológicas e de se sentir sozinha. "Os meus familiares ficavam todos contra mim, e meus amigos diziam que era uma blasfêmia eu falar mal dela", lembra.
De uma família evangélica em São Paulo, ouvia da mãe que era fruto de uma gravidez indesejada. Dentro de casa, viveu um "ciclo de sofrimento": foi agredida diversas vezes quando criança, ouvia críticas sobre sua aparência durante a adolescência e chegou a tentar o suicídio, aos 18 anos. Alguns anos mais tarde, ao confrontar a mãe sobre a situação, ouviu que era uma "pena" ela não ter morrido.
"Ela dizia que não ia deixar eu ser feliz nunca e que queria que eu tivesse morrido. Fiquei em choque, mas também fui compreender que isso não era algo normal", diz a mulher de 36 anos, que resolveu cortar os laços familiares completamente aos 31, após ler sobre o transtorno. Hoje, Larissa administra a página "Nem toda mãe é boa" no Facebook e ajuda outras pessoas a identificarem os abusos que sofrem.
Já na casa da designer Julia, no Rio Grande do Sul, notas baixas na escola primária eram motivo para humilhações. Ela não recebia qualquer tipo de ajuda em casa e a mãe se recusava a levá-la até a um ginecologista: "A mãe do meu namorado na época, quando eu tinha 18 anos, foi quem me levou pela primeira vez. Eu nem sabia que eu precisava me cuidar", relata.
Com um pai ausente, a mãe dizia que iria "arrebentá-la" e "matá-la" em diversas brigas. Em uma ocasião, chegou a ter o dedo quebrado. E nem quando a mãe teve um câncer e Julia precisou largar o emprego para cuidar dela, os abusos cessaram.
Falando de narcisismo
"Eu sempre fui uma presa fácil para ela. Ela ficou muito debilitada e começou a me culpar pela doença, dizia que vida dela era um inferno por minha causa e dizia que eu queria roubar o meu pai dela". Depois do tratamento, Julia saiu de casa e foi morar no Rio de Janeiro e, em seguida, em Londres, com zero contato com a mãe: "Passei a vida dando segunda chance e agora acabou".
De acordo com o psicoterapeuta americano Les Carter, autor de livros e produtor de vídeos em inglês sobre o assunto, a demora em perceber o problema vem da falta de educação sobre questões psicológicas, tanto no Brasil quanto no exterior. "Idealmente, jovens deveriam se envolver em discussões sobre como a vida funciona, como as pessoas diferem em tipos e temperamento, como entender as emoções e gerenciar conflitos. Mas poucas pessoas se tornam adultas com o básico desse conhecimento", destacou em entrevista à BBC News Brasil.
Autora do primeiro livro em português sobre a relação específica desse transtorno com a maternidade, o "Prisioneiras do Espelho", a terapeuta brasileira radicada em Luxemburgo Michele Engelke reforça que esse problema é "difícil de ser detectado", já que as pessoas que o têm não costumam procurar ajuda. Mas que, "se você aprende que nem toda mãe é boa, diminui as chances de sofrer abuso por muito tempo".
Apesar de o assunto estar no radar de especialistas há alguns anos, ainda há um certo preconceito entre os profissionais da área, segundo Christian Dunker. "Como as características narcisistas de uma forma geral estão muito populares na nossa cultura, na vida cotidiana, muitos acabam deixando passar quando isso se torna um problema patológico. Só que é muito grave", relata. O psicanalista destaca ainda que o Transtorno muitas vezes está ligado a outros problemas, como bipolaridade e transtorno borderline, que é um padrão de comportamento relacionado à instabilidade nos relacionamentos interpessoais e emotivos.
O que se deve fazer
Com essa falta de profissionais e diagnósticos, a internet acaba sendo o principal espaço para se discutirem as questões relacionadas ao narcisismo materno.
Quando criou a página "Mães Narcisistas", há pouco mais de dois anos, Marcela* já imaginava que alcançaria um grande público com o seu conteúdo em português. "São pessoas que querem conversar e não podem. E eu sabia que muitas meninas passavam por isso dentro de casa, como eu ", diz. Ela também produz vídeos e podcast no YouTube para tratar sobre o assunto.
Especialistas alertam, entretanto, que o conteúdo online não deve substituir o acompanhamento clínico.
"As redes ajudam a melhorar esse sentimento de solidão, injustiça. Você entende que não está sozinho no mundo. Mas não pode substituir o processo transformativo. Se você começa a se identificar em alguma situação, procure ajuda. Não deixe que isso se torne um tema central da vida, porque há o risco de querer se encaixar em todas as situações e atrair todos os outros problemas para validar", explica Dunker.
O psicanalista alerta que, nas comunidades, muitas pessoas podem acabar confundindo um relacionamento conturbado ou uma frieza da mãe com algum transtorno psicológico.
Para quem acha que pode estar numa casa onde acontece esse tipo de abuso e não consegue ter um acompanhamento, o conselho é tentar entender que existe um problema na relação e que não é sua culpa.
"Mesmo que ninguém à sua volta esteja te validando, mantenha-se verdadeiro a si mesmo. Tenha um diário para relatar essas situações, leia a respeito para que, quando você tiver autonomia financeira, ser mais fácil de se libertar", orienta Michele Engelke.
Os sinais de que uma pessoa pode ter o Transtorno de Personalidade Narcisista incluem nunca mudar de opinião e não ouvir os outros; ser carinhosa na frente de outras pessoas e ter um comportamento totalmente diferente quando está a sós; ter uma reação exacerbada a críticas; e exigir ser reconhecida pelos seus atos. Todas essas reações acabam levando a abusos psicológicos e físicos.
Para Karina, Julia e Larissa, o distanciamento completo da mãe foi essencial para que eles recomeçassem a vida. Entenderam que sofreram abusos e se permitriam buscar um acompanhamento psicológico. Segundo os especialistas, dependendo do nível de conflito na relação, o "contato zero" de fato acaba se tornando a única solução.
Em comum, as três também dizem que não querem ter filhos. "Foi tão traumático que o meu maior medo e ter um filho e repetir esse comportamento com ele, mesmo não querendo", ilustra Karina.
Para Michelle Engelke, que introduziu o tema a diversas "filhas" de narcisistas que participam das comunidades nas redes sociais no Brasil, está mais do que na hora de conversar a respeito disso: "A mãe não é um ser sagrado. Ela é mãe, mas pode cometer erros e ser abusiva".
*Os nomes foram trocados para proteger a identidade das entrevistadas
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