Recusa terapêutica de mulheres grávidas pode ser contestada em caso de “abuso de direito” da mãe sobre o feto, determina resolução do Conselho Federal de Medicina. Promotora do MP vê brecha para aumento da violência obstétrica. Obstetras pedem diálogo entre mães e médicos.
Por Patrícia Figueiredo, G1
26/09/2019
Uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) estabeleceu novas normas éticas para a atuação dos médicos nos casos em que um paciente recusa algum tipo de procedimento. Segundo a norma, publicada segunda-feira (16) no Diário Oficial da União, todo paciente “maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente” pode optar pela "recusa terapêutica" para “qualquer tratamento eletivo” desde que não haja risco para a saúde de terceiros ou doença transmissível (veja íntegra ao fim do texto).
Por Patrícia Figueiredo, G1
26/09/2019
Uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) estabeleceu novas normas éticas para a atuação dos médicos nos casos em que um paciente recusa algum tipo de procedimento. Segundo a norma, publicada segunda-feira (16) no Diário Oficial da União, todo paciente “maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente” pode optar pela "recusa terapêutica" para “qualquer tratamento eletivo” desde que não haja risco para a saúde de terceiros ou doença transmissível (veja íntegra ao fim do texto).
No entanto, a resolução determina que as mulheres grávidas também estão nesta lista de exceções. O CFM aponta que a recusa de uma grávida “deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe e feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto.”
Veja os principais pontos da nova norma:
- Regra permite que pacientes recusem procedimentos médicos desde que não haja risco para a saúde de terceiros ou doença transmissível.
- Recusa de mulheres grávidas é considerada exceção e pode permitir que médico classifique a situação como abuso de direito da mãe em relação ao feto.
- Resolução determina que médicos comuniquem ao diretor técnico do hospital quando discordarem da recusa da gestante, mas não deixa claro o que ocorre com profissionais que não o fazem.
- Em situações de urgência com iminente perigo de morte, médico fica autorizado a tomar todas as medidas necessárias, independentemente da recusa terapêutica do paciente.
A exceção é vista com ressalvas por especialistas em direito e saúde da mulher. Enquanto alguns apontam que o trecho pode estimular procedimentos que a mulher não deseja durante o parto – entre eles a episiotomia (corte feito entre a vagina e o ânus para ampliar o canal de parto) e a manobra de Kristeller (pressão na parte superior do útero para facilitar a saída do bebê) –, outros afirmam que a regra é necessária para garantir a vida da mãe e do feto em situações de emergência.
O G1 tentou entrevista com o relator da norma, mas não foi atendido. O CFM enviou uma nota na qual afirma que "a resolução não foi elaborada e aprovada com foco na assistência obstétrica" e que "em nenhuma das situações de discordância entre gestante e médico a resolução recomenda que o médico realize o procedimento à força, tampouco avança em equiparar, legalmente, o nascituro a uma criança nascida".
"O médico não pode omitir-se diante do risco ao feto por recusa terapêutica da mãe", completa o conselho em nota.
Violência obstétrica
Especialista em direito da mulher, Fabiana Dal’Mas Rocha Paes, promotora do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), teme que a exceção seja aplicada para justificar cesarianas e outros procedimentos invasivos.
"Quando a norma fala que a recusa terapêutica deve ser analisada no binômio mãe e feto ela está dando ao médico o direito que ele faça, por exemplo, uma episiotomia, apesar da recusa terapêutica. No ponto de vista dessa resolução, uma recusa da mãe pode ser um abuso de direito", diz.
Para ela, os médicos podem alegar abuso de direito e utilizar, de maneira indiscriminada, o trecho da norma que permite a conduta contrária a do paciente apenas em casos de urgência.
"No meu entendimento essa resolução é inconstitucional. Ela é discriminatória em relação à mulher", afirma Fabiana Paes, promotora do MP-SP.
O CFM rebate as críticas de inconstitucionalidade, mas diz que ajustes podem ser feitos na resolução se a Justiça assim determinar.
"Não identificamos inconstitucionalidade em considerar abuso de poder a recusa terapêutica materna em realizar um procedimento que afastará o perigo à vida do filho", diz o conselho em nota.
"O princípio da igualdade consiste em tratar desigualmente os desiguais. Não é possível, dentro desse princípio constitucional, tratar igualmente pessoas diferentes, em situações diferentes. Haveria ofensa ao princípio da igualdade o tratamento desigual entre duas gestantes em condições semelhantes."
A promotora acredita ainda que a norma pode aumentar e legitimar casos de violência obstétrica, que ocorre quando a gestante sofre atos categorizados como fisicamente ou psicologicamente violentos no contexto do trabalho de parto.
"Eu não sei se essa foi a intenção, mas essa norma pode justificar e aumentar a violência obstétrica. Eu não quero criticar a figura do médico obstetra, mas acho que o sistema de saúde pode ser muito violento contra as mulheres. É esse sistema que precisa ser reformulado", completa.
Para o CFM, a norma não garante ao médico o direito de que procedimentos sejam feitos à força.
"Por exemplo, se uma mulher gestante que se recusa a se submeter a uma cesariana e o bebe está pronto para nascer e com sofrimento fetal, o médico tem a possibilidade de não aceitar a recusa terapêutica, pois isso pode representar a morte da criança e até da mulher", afirma o CFM.
"Em situações assim, não significa que o ato será feito à força, mas [a resolução] dá ao médico o direito de acionar as autoridades competentes para tomada de providências. Sem essa resolução, isso significaria quebra do sigilo médico."
Diálogo no pré-natal
Apesar das críticas, o trecho da norma que coloca gestantes em condição de exceção é considerado válido e necessário por diversos profissionais.
A pediatra Ana Escobar, colunista do G1, acredita que a norma não vai ser utilizada pelos médicos para justificar procedimentos desnecessários para a gestante.
"Eu acho que os médicos vão usar esse dispositivo em relação a coisas mais graves, como quando a mãe tem doenças como hipertensão e diabetes, que trazem diversos riscos para o bebê, e não quer se tratar", avalia a pediatra Ana Escobar.
Ela destaca ainda que o médico não pode obrigar a mãe a realizar um procedimento indesejado com base na nova resolução, exceto em situações de urgência e risco de vida.
"O médico vai ter que alegar objeção de consciência pra discordar da mãe. Ele não pode obrigá-la, ele só pode recusar o atendimento, a não ser que seja uma situação de urgência. Por exemplo, quando o bebê está em sofrimento fetal e a mãe se recusa a fazer cesárea. Nesse caso, o médico pode se usar da condição de urgência e aí ele pode fazer a cesárea mesmo à revelia da mãe", explica.
Segundo Escobar, o mais importante é valorizar o debate entre paciente e médico para que situações de discordância em relação a recusas terapêuticas sejam cada vez mais raras.
"O cerne da questão é que ambos, mães e médicos, são responsáveis pelas decisões. Os médicos tem que embasar seus atos com conhecimento cientifico e o paciente não pode se deixar levar por um modismo, ele tem o direito de ser esclarecido pelos profissionais", diz a pediatra.
Para o médico obstetra Alberto Guimarães, criador do programa Parto Sem Medo, a resolução poderia ser mais eficaz na promoção do diálogo entre médicos e pacientes.
"Essa discussão, sobre as escolhas das mães e dos médicos no parto, estava ficando interessante, e aí vem esse retrocesso. Eles [CFM] poderiam, ao invés de normatizar, trazer esse debate para o meio profissional", diz.
"Nós estamos em um momento em que muitos médicos ainda não entenderam que a gente pode ser útil sem impor, para que ao final da experiência a mulher entenda a necessidade dos procedimentos", afirma o obstetra Alberto Guimarães.
Apesar disso, Guimarães reconhece que a norma pode ser útil em algumas situações.
"Eu entendo a questão técnica de uma mulher que nega, por exemplo, que o medico ausculte o bebê durante o parte. Isso seria uma situação grave em que o médico realmente poderia alegar abuso de direito da mãe, eu diria que realmente ela está extrapolando", afirma.
O CFM cita, como exemplo de caso em que a mãe exerce abuso de direito sobre o feto, o caso de uma mãe em trabalho de parto que recusou-se a ser internada, deixando o hospital sem alta médica, em 2014.
A equipe médica acionou o Ministério Público e a promotoria entendeu que bebê e mãe corriam risco. Diante disso, a Justiça deferiu o pedido do MP obrigou a mulher a fazer a cesárea.
"A conduta daquela equipe médica está expressamente amparada pela Resolução. Antes, era necessária uma construção jurídica a partir do Código de Ética Médica. A Resolução facilita a atuação dos médicos em casos semelhantes", destaca o conselho, em nota.
Recusa religiosa
A Resolução CFM nº 2232/19, publicada em 16 de setembro, substitui uma norma anterior do CFM, de setembro de 1980.
Na resolução anterior havia diversas citações às testemunhas de Jeová que foram retiradas na nova regra. Como muitas testemunhas de Jeová acreditam que não se pode aceitar transfusões de sangue ou doar ou armazenar seu próprio sangue para transfusão, a norma antiga estabelecia regras para a realização desse tipo de procedimento.
Segundo o conselho, a retirada expressa da referência a uma religião foi consequência da implementação de uma regra geral, que se aplica a todos.
"A recusa terapêutica é um direito pessoal, independente dos vínculos religiosos do paciente. A recusa à transfusão de sangue não é, no contexto da nova Resolução, diferente da recusa à amputação de uma perna ou de um braço. Logo, não havia mais necessidade de se tratar especificamente da recusa terapêutica à transfusão de sangue", explica o CFM.
Íntegra da resolução
RESOLUÇÃO Nº 2.232, DE 17 DE JULHO DE 2019
Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente.
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, alterada pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004, e regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e pela Lei nº 12.842, de 10 de julho de 2013,
CONSIDERANDO que a Constituição Federal (CF) elegeu a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República;
CONSIDERANDO o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), em especial o inciso I do § 3º do art. 146, que exclui a tipicidade da conduta nos casos de intervenção médica sem o consentimento do paciente, se justificada por iminente perigo de morte;
CONSIDERANDO o disposto no Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2012) em relação à capacidade civil, à autonomia do paciente e ao abuso de direito;
CONSIDERANDO o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990);
CONSIDERANDO que a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, assegura direitos e proteção a pessoas com transtorno mental e autoriza sua internação e tratamento involuntários ou compulsórios;
CONSIDERANDO o normatizado pelo Código de Ética Médica em relação aos direitos e deveres dos médicos e a autonomia dos pacientes;
CONSIDERANDO a Resolução CFM nº 1.995/2012, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade;
CONSIDERANDO que os Conselhos de Medicina são, ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo a eles zelar e trabalhar, com todos os meios a seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina, pelo prestígio e pelo bom conceito da profissão e dos que a exercem legalmente; e
CONSIDERANDO o decidido na sessão plenária de 17 de julho de 2019, resolve:
Art. 1º A recusa terapêutica é, nos termos da legislação vigente e na forma desta Resolução, um direito do paciente a ser respeitado pelo médico, desde que esse o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão.
Art. 2º É assegurado ao paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, no momento da decisão, o direito de recusa à terapêutica proposta em tratamento eletivo, de acordo com a legislação vigente.
Parágrafo único. O médico, diante da recusa terapêutica do paciente, pode propor outro tratamento quando disponível.
Art. 3º Em situações de risco relevante à saúde, o médico não deve aceitar a recusa terapêutica de paciente menor de idade ou de adulto que não esteja no pleno uso de suas faculdades mentais, independentemente de estarem representados ou assistidos por terceiros.
Art. 4º Em caso de discordância insuperável entre o médico e o representante legal, assistente legal ou familiares do paciente menor ou incapaz quanto à terapêutica proposta, o médico deve comunicar o fato às autoridades competentes (Ministério Público, Polícia, Conselho Tutelar etc.), visando o melhor interesse do paciente.
Art. 5º A recusa terapêutica não deve ser aceita pelo médico quando caracterizar abuso de direito.
§ 1º Caracteriza abuso de direito:
I - A recusa terapêutica que coloque em risco a saúde de terceiros.
II - A recusa terapêutica ao tratamento de doença transmissível ou de qualquer outra condição semelhante que exponha a população a risco de contaminação.
§ 2º A recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto.
Art. 6º O médico assistente em estabelecimento de saúde, ao rejeitar a recusa terapêutica do paciente, na forma prevista nos artigos 3º e 4º desta Resolução, deverá registrar o fato no prontuário e comunicá-lo ao diretor técnico para que este tome as providências necessárias perante as autoridades competentes, visando assegurar o tratamento proposto.
Art. 7º É direito do médico a objeção de consciência diante da recusa terapêutica do paciente.
Art. 8º Objeção de consciência é o direito do médico de se abster do atendimento diante da recusa terapêutica do paciente, não realizando atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.
Art. 9º A interrupção da relação do médico com o paciente por objeção de consciência impõe ao médico o dever de comunicar o fato ao diretor técnico do estabelecimento de saúde, visando garantir a continuidade da assistência por outro médico, dentro de suas competências.
Parágrafo único. Em caso de assistência prestada em consultório, fora de estabelecimento de saúde, o médico deve registrar no prontuário a interrupção da relação com o paciente por objeção de consciência, dando ciência a ele, por escrito, e podendo, a seu critério, comunicar o fato ao Conselho Regional de Medicina.
Art. 10. Na ausência de outro médico, em casos de urgência e emergência e quando a recusa terapêutica trouxer danos previsíveis à saúde do paciente, a relação com ele não pode ser interrompida por objeção de consciência, devendo o médico adotar o tratamento indicado, independentemente da recusa terapêutica do paciente.
Art. 11. Em situações de urgência e emergência que caracterizarem iminente perigo de morte, o médico deve adotar todas as medidas necessárias e reconhecidas para preservar a vida do paciente, independentemente da recusa terapêutica.
Art. 12. A recusa terapêutica regulamentada nesta Resolução deve ser prestada, preferencialmente, por escrito e perante duas testemunhas quando a falta do tratamento recusado expuser o paciente a perigo de morte.
Parágrafo único. São admitidos outros meios de registro da recusa terapêutica quando o paciente não puder prestá-la por escrito, desde que o meio empregado, incluindo tecnologia com áudio e vídeo, permita sua preservação e inserção no respectivo prontuário.
Art. 13. Não tipifica infração ética de qualquer natureza, inclusive omissiva, o acolhimento, pelo médico, da recusa terapêutica prestada na forma prevista nesta Resolução.
Art. 14. Revoga-se a Resolução CFM nº 1.021/1980, publicada no D.O.U. de 22 de outubro de 1980, seção I, parte II.
Art. 15. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
CARLOS VITAL TAVARES CORRÊA LIMA
Presidente do Conselho
HENRIQUE BATISTA E SILVA
Secretário-Geral
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