Especialistas criticam mudança na lei que estabelece responsabilização financeira dos agressores em casos de violência doméstica, considerada populista. Receio de prejuízos à renda familiar pode desencorajar denúncias.
Uma modificação importante na Lei Maria da Penha entrou em vigor na última terça-feira (17/09): a partir de agora, os agressores serão responsáveis financeiramente pelos crimes de violência doméstica. Na prática, terão que ressarcir o Estado pelos gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) com o atendimento às vítimas. Celebrada pelo governo, a proposta é criticada por especialistas, que apontam o risco de um efeito inibidor de denúncias.
Ao sancionar o texto aprovado pelo Congresso em agosto, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que "a medida é necessária para obrigar o agressor familiar/doméstico a responder pelos seus atos de violência contra a mulher, não só na esfera penal e na criminalização de sua conduta, mas também por meio do ressarcimento aos danos materiais e morais causados por sua conduta ilícita".
Ao sancionar o texto aprovado pelo Congresso em agosto, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que "a medida é necessária para obrigar o agressor familiar/doméstico a responder pelos seus atos de violência contra a mulher, não só na esfera penal e na criminalização de sua conduta, mas também por meio do ressarcimento aos danos materiais e morais causados por sua conduta ilícita".
Durante a tramitação do projeto na Câmara, foi retirada uma alteração feita pelo Senado, a qual previa que o "condenado" deveria ressarcir a vítima. Com isso, o agressor fica obrigado a pagar a indenização mesmo antes do fim da tramitação do processo penal.
Os recursos devolvidos ao SUS deverão ser direcionados aos fundos de saúde do estado ou município responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços.
Coautora do projeto que mudou a legislação, a deputada federal Mariana Carvalho (PSDB-RO) disse ao jornal O Globo que seu engajamento pela medida se deve ao aumento de casos de feminicídio em Rondônia. "Se doer no bolso, o agressor pode pensar antes de agir", alegou.
Entre as especialistas ouvidas pela DW Brasil, é consensual a discordância sobre o suposto efeito inibidor da mudança. A promotora de Justiça Mariana Távora, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, recorda que a legislação já estipulava prejuízos financeiros ao autor desse tipo de delito.
"Nossa lei processual penal possibilita fixar, na sentença condenatória, indenização à mulher a título de danos morais, desde que haja um pedido expresso na denúncia ofertada pelo Ministério Público. Com isso, um infrator com alto poder aquisitivo já podia ter ônus financeiro em decorrência da prática de violência doméstica e familiar", assinala.
Uma vez que os serviços do SUS tendem a ser procurados pela população de menor poder aquisitivo, sem acesso a planos de saúde, a promotora alerta que o projeto pode ter um efeito inibidor de denúncias entre as mulheres que integram essa faixa de renda: "Com receio de que seus filhos sejam afetados financeiramente por essa medida, é possível que mulheres periféricas acabem deixando de solicitar a intervenção do Estado."
Num país marcado por desigualdades estruturais, Távora receia, ainda, que o ônus da dívida perante o Estado recaia sobre a própria mulher. Dados da segurança pública do Distrito Federal mostram que, em 2018, o perfil socioeconômico dos feminicidas era composto, em grande parte, por homens desempregados ou com profissões mal remuneradas.
"Não podemos deixar de lembrar que esse tipo de violência tem um ciclo particular, cuja interrupção é regida por um tempo muitas vezes lento. Logo, é comum que haja reconciliações, o que pode levar a essa situação", explica a promotora.
O temor de um efeito reverso ao esperado com a mudança na lei é compartilhado pela antropóloga Tatiana Perrone, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e da Universidade Estadual de Campinas: "A Lei Maria da Penha foi amplamente debatida e elaborada por especialistas, pesquisadores e ativistas. O que falta é ela ser colocada em prática, e não realizar mudanças no teor da lei."
Em vigor há 13 anos, a Lei Maria da Penha estabeleceu a criação de serviços especializados que acolham a mulher em situações de violência – os quais são escassos no país – além de juizados especializados, com equipes multidisciplinares. Há poucas unidades em funcionamento e, frequentemente, sem os profissionais exigidos pela lei. Entre as exigências legais, constam também medidas educativas, dentro das escolas, com o objetivo de prevenção da violência contra a mulher.
"O que a gente vê hoje no Brasil é o governo federal contrário a isso, propagando a falsa ideia de uma ideologia de gênero, em vez de se preocupar em dar eficácia a lei e introduzir esse debate no âmbito escolar. A meu ver, é uma medida muito mais eficaz do que mudanças populistas na legislação, sem escutar quem está na ponta trabalhando com as vítimas", critica Perrone.
O texto aprovado prevê o ressarcimento de todos os danos causados, inclusive ao Estado. Estão incluídos gastos com dispositivos de segurança usados para casos de "perigo eminente", que obrigam o agressor a manter distância da vítima, e também com o monitoramento das mulheres por medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha.
Para mulheres vítimas de violência doméstica que se manifestaram nos últimos dias, o teor do projeto indica que elas são vistas como um "fardo" pelo Estado. "O Estado se isenta da sua parcela de culpa nos casos de violência doméstica, escusando-se do seu papel de prevenção, acompanhamento e conscientização da população", avalia Ligia Fabris, professora da Escola de Direito do Rio na Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora da Universidade Humboldt de Berlim.
A opinião é endossada pela advogada Marina Ruzzi, sócia do Braga & Ruzzi, primeiro escritório de advocacia do Brasil especializado em direito das mulheres e desigualdade de gênero. Ela estranha o argumento de proteção aos cofres públicos, uma vez que o SUS é financiado pelos impostos de todos os cidadãos e prevê o atendimento universal.
"Se fosse uma mudança para todos os casos de violência, eu acharia menos problemático. Ao individualizar esse tipo de punição para a violência doméstica, parece que o Estado não tem nada a ver com isso e, dessa forma, não deve arcar com os custos", critica Ruzzi.
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