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sábado, 15 de agosto de 2020

Demora em garantir aborto legal coloca vida de menina de 10 anos em risco, dizem especialistas

Criança de 10 anos engravidou após ter sido estuprada em São Mateus, cidade no interior do Espírito Santo; Tio é acusado de estupro de vulnerável e está foragido.

By Andréa Martinelli
15/08/2020

Uma menina de 10 anos engravidou após ter sido estuprada por seu tio no município de São Mateus, localizado no norte do Espírito Santo e aguarda autorização da Justiça para realizar o aborto legal, garantido por lei em casos de estupro. Em atendimento, ela revelou que vinha sendo abusada desde os 6 anos de idade e que sofria ameaças por parte do agressor.

Na avaliação de especialistas ouvidas pelo HuffPost Brasil, colocar este caso nas mãos da Justiça e demorar em garantir o acesso ao direito pelo aborto legal, previsto em lei, apenas coloca sua vida em risco. 

“É preciso entender que ao não realizar o procedimento, a vida desta criança está sendo colocada em risco”, afirma Gabriela Rondon, advogada do Anis - Instituto de Bioética. “Estamos falando do corpo de uma menina de 10 anos que não foi feito para gestar.”
Para Rondon, os efeitos vão além do físico. “Há também o impacto psicológico, a tortura que é ver a barriga crescer e ser lembrada da violência sofrida desde os 6 anos de idade. São violações em muitas camadas, que terão repercussões muito intensas.” 
O caso se tornou público após a menina ter dado entrada no Hospital Roberto Silvares, em São Mateus, no último dia 8. Ela estava acompanhada de uma de suas tias, segundo o boletim de ocorrência, e disse se sentir mal, com a barriga estufada. Ao realizar exames, enfermeiros detectaram que ela está grávida de 3 meses. 
Em conversa com médicos e assistente social, a criança relatou que o tio a estuprava desde os 6 anos. Ela afirmou que não havia contado aos familiares porque tinha medo, pois era ameaçada por ele.
Após o atendimento no hospital da cidade, ela foi encaminhada para um abrigo. Segundo informações obtidas pelo HuffPost, a menina é órfã e vive com os avós e tios em uma casa, que são seus responsáveis legais.

AHMET YARALI VIA GETTY IMAGES

Em entrevista ao jornal local A Gazeta, a secretária de Assistência Social de São Mateus, Marinalva Broedel, afirmou que a família estendida da menina era acompanhada por um dos CRAS (Centro de Referência em Assistência Social) da cidade e que houve “surpresa” ao saber do caso. Segundo ela, a realização de um aborto “está em análise” e que é preciso “aguardar o posicionamento do judiciário”. 
“Não pode tomar nenhuma decisão precipitada pela vida da criança. Vamos aguardar o posicionamento dos critérios médicos e judiciários para tomar uma decisão em conjunto com a família”, disse Broedel ao jornal.
Segundo Rondon, a urgência do caso pede o oposto. “O procedimento não precisaria ir à Justiça justamente por ela ser uma menina de 10 anos. Ela estava acompanhada da tia no momento do atendimento de saúde, os profissionais já poderiam ter orientado sobre e tomado uma decisão sem interferência da Justiça”, afirma. ”É uma profunda desinformação sobre o que a lei já estabelece, devido a um estigma profundo que existe sobre a questão.”
O aborto é crime pela legislação brasileira desde 1940. As exceções hoje para a realização do procedimento no Brasil – casos de estupro ou de risco de vida da mãe – estão previstos no Código Penal. Caso a mulher ou menina seja menor de idade, deficiente mental ou incapaz, é necessária autorização de representante legal.
O caso inicialmente foi registrado pela DPCAI (Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Idoso) da cidade. No momento, o caso está sob tutela do Ministério Público do Estado do Espírito Santo, por meio da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de São Mateus,
Por meio de nota, o MP-ES informou ao HuffPost que por “força da legislação da infância e juventude, casos que envolvem incapazes, crianças e adolescentes devem ser mantidos em total sigilo, cuja violação constitui ilícito civil e criminal”. 
Na última quinta-feira (13), a Polícia Civil fez buscas no Estado e também na Bahia onde o tio da criança, de 33 anos, suspeito pelo crime, tem familiares. Ele é acusado de estupro de vulnerável e um mandado de prisão foi expedido. Até o momento, ele não foi localizado e é considerado foragido pela Justiça.

Caso chegou ao conhecimento da ministra Damares Alves


SERGIO LIMA VIA GETTY IMAGES
Caso ganhou repercussão nacional após publicação em rede social da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.

O caso ganhou repercussão nacional após ser citado pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, nas redes sociais. Na última segunda-feira (10), ela afirmou que sua equipe “já está entrando em contato com as autoridades de São Mateus para ajudar a criança, sua família e para acompanhar o processo criminal até o fim”.
A ministra explicou que a criança receberá atendimento psicológico de profissionais do Centro de Referência Especializado de Assistência Social e terá apoio para cadastro em programas sociais. Na última quinta-feira (13), Damares disse que enviou à cidade representantes do ministério.
Após as postagens dela, a hashtag #gravidezaos10mata ficou entre os assuntos mais comentados do Twitter. Usuários da rede social iniciaram uma  campanha para que a menina tenha a interrupção da gravidez garantida e criticaram a ministra por não se posicionar pelo aborto legal neste caso.
Além da mobilização nas redes sociais, um abaixo-assinado, criado pelo Coletiva Sangria, com apoio da Felaes (Frente pela Legalização do Aborto do Espírito Santo), formado por outras 47 entidades, pede que a menina tenha acesso ao aborto legal, seguro e gratuito garantido. Até o momento da publicação deste texto, mais de 500 mil pessoas já haviam assinado.
Por meio de nota, o ministério afirmou ao HuffPost que a SNDCA (Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente) “está atenta e acompanhando de perto todos os desdobramentos do caso. Para tanto, já realizou reunião com atores do Sistema de Garantia de Direitos do município.”
Segundo o ministério, os técnicos que visitaram a cidade se reuniram com a Secretaria Municipal de Assistência Social e com a rede de proteção de direitos do município, “com o objetivo de acompanhar as medidas adotadas e oferecer instrumentos do MMFDH no sentido de apoio à rede e à criança vítima, além de acompanhar as investigações”.
O órgão informa que também foi realizada um visita ao Conselho Tutelar local, onde medidas de fortalecimento da rede de proteção e apoio ao conselheiros foram discutidas. Os conselheiros tutelares seguirão acompanhando todos os trâmites do processo.
“A Secretaria Nacional está adotando outras medidas a fim de fortalecer as ações da Rede de Proteção do Município de São Mateus que já desenvolve um exímio trabalho. Tais medidas, por ora, correrão em sigilo, haja vista tratar-se de matéria afeta à direito da criança e para não expor os procedimentos repressivos adotados pelas autoridades locais”, finaliza a nota.
Em nenhum momento a ministra – que é religiosa e tem proximidade com movimentos pró-vida contrários ao aborto em qualquer situação – cita a possibilidade de garantir o aborto legal à vítima, menor de idade. 
Segundo a advogada do Anis – Instituto de Bioética, a ministra falar em acompanhar o processo judicial “não é exatamente o que essa menina precisa agora”. “Não há intenção de garantir o acesso ao aborto legal”, observa a especialista. “Como ministra dos Direitos Humanos, manter esta postura é ser conivente com o sentimento de tortura pelo qual essa criança está passando.”
Gabriela Rondon afirma que o caso escancara a invisibilidade da violência sexual – desde o fato de acontecer dentro de casa, a falta de percepção da família, até o medo da vítima em denunciar – e que é preciso que o sistema de saúde esteja preparado para dar acolhimento às vítimas.
“O que elas [vitimas] mais precisam é de acolhimento. Claro que, eventualmente, o sistema de justiça será acionado e será preciso responsabilizar o agressor. Mas o que elas mais precisam de imediato é o cuidado em saúde e o atendimento integral. Seja a profilaxia, o atendimento psicológico e o acesso ao aborto legal se for necessário.”

Caso revela ‘negligência’ com violência sexual no País


NURPHOTO VIA GETTY IMAGES
Avenida Paulista, em São Paulo, foi tomada por ativistas que pedem a descriminalização do aborto, em 2018, quando o STF debateu o tema. 

“Esse caso é profundamente revelador do que acontece todos os dias pelo moralismo, pela cultura do estupro, por sermos um país que não ama as meninas”, afirma Viviana Santiago, socióloga e especialista em educação pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), ao HuffPost. “E ele revela, sobretudo, como existem falhas na prevenção da violência sexual.”
Em 2018, segundo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil  atingiu o recorde de registros de estupros. Foram 66 mil vítimas, o equivalente a 180 estupros por dia ― maior número deste tipo de crime desde que o relatório começou a ser feito, em 2007.
A maioria das vítimas é menor de idade, do sexo feminino e este tipo de violência acontece dentro de casa - assim como o caso de São Mateus (ES). A cada 4 horas, uma menina com menos de 13 anos é estuprada no Brasil por um conhecido. Em sua maior parte, as vítimas são negras (50,9%).
O estudo mostra que parte significativa dos estupros que ocorrem no Brasil é o de vulnerável ― contra crianças menores de 14 anos ou pessoas com doenças ou deficiência mental que não têm discernimento para a prática do ato e que não podem oferecer resistência ―, um total de 63,8% das vítimas.
Na avaliação da especialista, o caso também expõe como o Brasil pune meninas e mulheres; assim como mostra que é essencial debater essa questão do ponto de vista das políticas públicas de acesso ao aborto legal e à educação sexual.
“Estamos falando de uma criança de 10 anos de idade, e a gente ouvir dizer que ainda está se pensando, que será avaliado em uma perspectiva jurídica a possibilidade do aborto, é punir esta criança”, afirma. “Este caso mostra como é importante a educação integral para a sexualidade. Uma situação em que uma família não identifica a violência, que a menina não consegue pedir ajuda, e que provoca uma gravidez de risco só mostra que nós somos uma sociedade que não debateu suficientemente esse tema”, completa.
No Brasil, a taxa de adolescentes grávidas é de 62 para cada grupo de mil jovens do sexo feminino na faixa etária entre 15 e 19 anos. O índice ultrapassa a taxa mundial, que corresponde a 44 adolescentes grávidas para cada grupo de mil, de acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas).
Levantamento do Ministério da Saúde aponta que, em 2017, ano dos últimos dados consolidados, houve 480.925 nascimentos de bebês com mães entre 10 e 19 anos, o equivalente a 16% dos nascidos vivos. Apesar de alto, o número de casos de gravidez na adolescência tem tido queda nos últimos anos. Entre 2000 e 2017, a redução foi de 36%.

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