Revista Consultor Jurídico, 19 de agosto de 2020
Se mulheres cis gênero estão expostas a maiores níveis de violência doméstica e familiar em tempos de pandemia, as mulheres trans gênero se encontram em situação de vulnerabilidade ainda maior.
A lacuna estatal resultante da reprodução de machismo e transfobia estruturais, que ignora a situação de risco dessas mulheres, se manifesta por meio da violência que se refugia na ausência de políticas legislativas a reconhecer direitos e combater a odiosa violência de gênero, assim como no silêncio que se perpetua ao ignorar cada vítima do ódio que morre sem contabilização oficial pelo Estado, violência que deriva da repulsa social tão imbricada nos setores públicos.
No que tange aos órgãos legislativos, a inação não figura diferente: foi preciso que o Supremo Tribunal Federal reconhecesse a transfobia, assim como a homofobia, como figuras equiparadas ao racismo, ante a inércia total do poder legislativo.
Para que possamos compreender melhor o cenário de violência ao qual esse grupo de mulheres está imerso, é preciso que recorramos aos números contabilizados por organizações civis que se dedicam a esse estudo, como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, que bimestralmente vem produzindo análises do cenário de horror que se assemelha às ficções hollywoodianas.
No último boletim da ANTRA, publicado em 25 de junho1, se apurou que cerca de 70% das LGBTI+ que se encontram cumprindo medidas de isolamento social com familiares sofreram algum tipo de violência doméstica, mas seguiram silenciadas pelos graves atos de violação de direitos humanos que as vitimam hodiernamente. Por óbvio, o resultado foi o agravamento de doenças psíquicas como a depressão e a ansiedade, quadro relatado por cerca de 45% das entrevistadas.
Isto porque, segundo o boletim mencionado, em grande parte dos casos, sem condições de deixar a casa familiar, as mulheres trans são obrigadas a lidar com esse ódio — estimasse que cerca de 29,3% percebem apenas R$ 200,00 por mês, enquanto tantas outras foram expulsas de casa ou tiveram a perda total de seu sustento em razão do isolamento social.
Enquanto teorias da conspiração sustentadoras do ódio clamam aos quatro ventos o perigo que parece imergir da fantasiosa “doutrinação sexual”, apta a destruir a família dos “de bem”, a verdade é que essas mulheres tentam apenas sobreviver a inimagináveis ciclos de violência aos quais estão invisivelmente submetidas, ao menos para a maioria da população letrada pelo senso comum.
Saliente-se que o Governo do Estado de São Paulo exarou decreto2, no último 12 de agosto, equiparando os direitos das mulheres cis e trans no tocante ao atendimento em situação de violência doméstica, sem que o silêncio quanto a essa importante conquista descontinue a ressoar, afinal, nem mesmo o site oficial do executivo paulista noticiou a publicação, reforçando a invisibilidade.
A verdade é que salvar vidas de mulheres cis incomoda, mas salvar vidas de mulheres trans incomoda muito mais.
Para que não deixemos o ódio estrutural fruto do machismo que repudia o feminino, e pune quem deliberadamente abre mão do falocentrismo — e aqui se está a falar do ponto de vista psicanalítico, do qual se exclui ortodoxas classificações de gênero — para se expressar de forma feminina, é preciso que essas mulheres sejam vistas, reconhecidas e protagonizem suas histórias.
Se, desde 2018, quando proferida a primeira decisão que equiparou os direitos das mulheres cis e trans em situação de violência doméstica no Distrito Federal, abriu-se o caminho para a concessão de medidas protetivas de urgência àquelas que se identificam com o gênero feminino, por outro lado é fundamental que a insegurança jurídica seja extirpada em toda a federação.
O caminho para tanto invoca a colocação em pauta pelo Senado Federal do PL 191/17, que visa alterar a Lei Maria da Penha para garantir que a liberdade de identificação com o gênero não seja óbice ao implemento da garantia da dignidade da pessoa humana.
Izabella Borges é advogada criminalista.
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