Corte Interamericana de Direitos Humanos impõe ao Estado uma indenização à família duas décadas depois da morte da menor
SARA ESPAÑA
Guayaquil (Equador) - 20 AGO 2020
El País
Petita Albarracín, mãe de Paola Guzmán, vítima de violação sexual em um colégio no Equador. |
“Nunca pude ajudá-la quando estava viva porque nunca soube o que estava acontecendo.” Petita Albarracín ainda se abala ao falar da filha Paola Guzmán. “Ela nunca me disse nada por causa das ameaças”, afirma. Sua filha se suicidou aos 16 anos, há 18, ao saber que estava grávida do vice-diretor de sua escola em Guayaquil, Equador. O homem, então com 65 anos, vinha abusando de uma garota 50 anos mais jovem havia mais de um ano. Conforme a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) decidiu agora, o Equador não foi diligente o suficiente para evitar o assédio sexual nem para processar os responsáveis.
No primeiro pronunciamento da CIDH por abusos sexuais no âmbito educacional, o tribunal condenou o Equador por não ter protegido uma menor que “viu feridos seus direitos à vida, à integridade pessoal, à vida privada e à educação”. E ordenou o Estado a entregar uma reparação financeira à família de Paola Guzmán, a limpar o nome da vítima –que foi considerada no processo judicial como parte responsável ao lhe ter sido atribuído o papel de sedutora– e a dar uma perspectiva de gênero ao sistema educacional.
No primeiro pronunciamento da CIDH por abusos sexuais no âmbito educacional, o tribunal condenou o Equador por não ter protegido uma menor que “viu feridos seus direitos à vida, à integridade pessoal, à vida privada e à educação”. E ordenou o Estado a entregar uma reparação financeira à família de Paola Guzmán, a limpar o nome da vítima –que foi considerada no processo judicial como parte responsável ao lhe ter sido atribuído o papel de sedutora– e a dar uma perspectiva de gênero ao sistema educacional.
O Estado equatoriano, segundo a sentença do caso Guzmán, “não lhe prestou a ajuda necessária para tentar evitar sua morte”. Apesar de todos na escola saberem da existência de uma relação sexual de abuso prolongada, a menor não recebeu a devida ajuda e se suicidou. Ela havia ingerido estalinhos –fogos de artifício com alto teor de fósforo branco que explodem ao atingir o solo– e foi atendida na enfermaria da escola. Lá, disseram-lhe apenas que rezasse para que pudesse ser perdoada pelo que havia feito. A menor morreu um dia depois no hospital.
A única coisa que não foi suficientemente provada no caso perante a CIDH foi que Paola estivesse grávida em decorrência do abuso e que um aborto clandestino tenha sido realizado sob pressão do vice-diretor com o médico do centro, em troca, novamente, de favores sexuais. Foi o que as colegas de escola de sua filha disseram a Petita Albarracín depois que ela morreu. “Minha filha estava grávida porque mostrou um teste de um laboratório particular a uma colega”, explicou a mulher na época, segundo a imprensa local, quando ainda lutava contra as autoridades locais para que o dano causado fosse reconhecido. “Ele abusou de sua confiança. Ela talvez o visse como um superior, como um professor. Mas ele abusou dela, manipulou-a. Minha filha tinha 16 anos e este homem 65. Isso não é amor. Quando ela estava deitada ali, ele deve ter ameaçado ela para que não nos contasse nada. Isso ela levou para a sepultura”, denunciou a mãe.
Lita Martínez, diretora executiva do Centro Equatoriano de Ação e Promoção da Mulher CEPAM-Guayaquil, uma das organizações promotoras da denúncia, explica que se tentou chegar a uma solução amigável com o Governo do Equador, sem resultados. “Esperamos que agora eles cumpram, mas tampouco estamos crédulos”, diz. A CIDH, em uma decisão pouco habitual, impôs um acompanhamento da própria Corte e das vítimas no processo de transformação que o país deve empreender.
Além disso, responsabiliza o sistema judicial equatoriano pela impunidade na qual derivou o processo penal. “Tratando-se de uma menina vítima de violência sexual, as autoridades judiciárias deveriam ter agido com maior diligência”, diz a sentença, depois de dar por provado que a morosidade da Justiça contribuiu para que o responsável pelo abuso, Bolívar Espín, então vice-diretor da escola Martínez Serrano, em Guayaquil, fugisse antes que uma ordem de prisão preventiva fosse emitida. Os crimes, finalmente, prescreveram sem punição para o culpado.
“A investigação teve início em dezembro de 2002 e o prazo de prescrição da ação penal foi declarado em 18 de setembro de 2008. Dos cerca de cinco anos e nove meses que durou o processo penal, não consta atividade alguma”, recrimina a CIDH ao Equador.
Educação sexual nas escolas
Um dos pontos mais “revolucionários” da decisão do tribunal interamericano, segundo esclarecem Lita Martínez e Catalina Martínez, diretora regional do Centro de Direitos Reprodutivos, é que o Equador deve introduzir a educação sexual em sua grade curricular e abordá-la com uma perspectiva de gênero. Desta forma as crianças serão capazes de reconhecer casos de abuso de uma autoridade educacional. Além disso, a Corte reconhece a liberdade sexual dos jovens. “A situação não vai mudar imediatamente porque é um processo que leva anos e porque é preciso haver uma transformação na política pública, na cultura e na opinião pública”, reconhecem as advogadas.
A Corte introduz esse requisito da perspectiva de gênero em resposta à forma como foi conduzido o processo judicial do caso Paola Guzmán. “O Superior Tribunal de Justiça de Guayaquil considerou que não houve crime de assédio sexual, visto que não foi o vice-diretor que ‘perseguiu’ Paola, mas foi ela quem pediu seus ‘favores docentes’, sendo este o ‘princípio da sedução’”. A mesma decisão entendeu que a conduta do vice-diretor configurava ‘estupro’ e, ao explicá-lo, destacou que neste crime a sedução visa ‘alcançar o consentimento e conseguir a cópula carnal, com mulher honesta”, afirma a sentença, que recrimina a Justiça equatoriana por uma “análise enviesada a partir de preconceitos de gênero”. Levaram, conclui, a atribuir-lhe “implicitamente (à vítima), ao menos parcialmente, a responsabilidade pelo que finalmente aconteceu”. E nunca foi considerada a “situação especial de vulnerabilidade em que se encontrava por ser uma menina e sofrer tal violência de um professor”.
Por isso, parte da sentença contra o Equador inclui, além disso, a obrigação de divulgar tudo o que aconteceu por meio de um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional. “Lá (na CIDH) eles viram o que aconteceu. Viram todas as provas, mas aqui ninguém deu importância ao que estava acontecendo na educação: o estupro e o assédio. Dou graças a Deus que ele ainda me mantém de pé para ver que a justiça está sendo feita com minha filha. No Equador não há justiça para minha filha nem para todas as meninas que foram abusadas”, questiona ainda a mãe de Paola.
O Equador tem agora um ano para acatar a sentença e deverá reportar seus avanços à Corte, que não encerrará o caso até que o país tenha “cumprido integralmente” todas as determinações.
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