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segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Que força é essa, mulher?



Que força é essa, mulher, que vi nos Estados Unidos, quando, em 1955, o doloroso e incompleto processo de libertação racial da nação ganhou o reforço de Rosa Parks, a costureira negra corajosa que se recusou a ceder seu assento no ônibus ao senhor branco que o reclamava com base nas injustas Leis Jim Crow?

Daquela força na cidade de Montgomery, uma rama de igualdade floresceu como Rosa. Em Nazaré do Piauí, no nosso país, dois séculos antes foi preciso Esperança para tentar realizar essa mesma aspiração.
Tendo aprendido a ler, Esperança Garcia passou a denunciar maus tratos e abusos contra quem, como ela, era escravizado. Apenas a centelha de uma coragem infinita é capaz de acender numa mulher escravizada essa retidão de caráter a ponto de acreditar no Direito e na Justiça mesmo em condições tão hostis. Ela foi a nossa primeira advogada.
Antes, em 1694, Dandara, a guerreira negra no Brasil colonial, se atirou de uma pedreira ao abismo, após ter sido capturada. Ela jamais aceitaria retornar à escravidão. Perdeu a vida e, apenas com a morte, recuperou, noutro plano, a sua dignidade.
Esse tipo de poder infinito está espalhado por todos os lugares, como flores levadas pelas correntes dos ventos, em qualquer era, semeando os campos femininos com essa inclinação persistente para a integridade e a coragem.
Na Checoslováquia comunista, Milada Horáková, advogada e política checa, foi executada sob acusação de conspiração e traição, aos 48 anos de idade. Enquanto a corda percorria o seu pescoço, antes do golpe final do cadafalso, Milada disse: “Perdi essa luta, mas eu sigo com honra”.
O tempo não apaga histórias imortais. E elas são muitas.
A Constituição sul-africana de 1996 abriu espaço para a criação da Comissão da Verdade e Reconciliação. Por intermédio da Comissão, a história de Phila Ndwandwe foi conhecida.
Phila foi morta a tiros pelas forças de segurança do governo do apartheid, depois de ser mantida nua, sob tortura, durante semanas na tentativa de fazer com que delatasse seus companheiros. Não delatou.
Ela manteve a sua dignidade confeccionando calcinhas e usando uma sacola plástica azul, vestimenta que foi encontrada envolvendo sua pélvis quando da exumação do seu corpo. “Ela simplesmente não falava”, testemunhou perante a Comissão um dos policiais envolvidos em sua morte. “Meu Deus..., ela era corajosa!”.
A artista plástica sul-africana Judith Mason chorou ao ouvir os depoimentos dos assassinos de Phila. “Quem dera eu ter podido fazer um vestido para você”.
A artista juntou sacolas plásticas azuis descartadas e as cozeu, fazendo um vestido. Na saia da veste, pintou a seguinte carta:
“Irmã, uma sacola plástica talvez não seja a armadura completa de Deus, mas você estava lutando com unha e dentes e contra poderes superiores, contra os senhores da escuridão, contra a maldade espiritual em lugares sórdidos. Suas armas era seu silêncio e um pouco de lixo. Achar aquela sacola e vesti-la até ser exumada foi algo tão frugal, sensato, um ato de esposa zelosa, um ato simples..., em algum nível, você envergonhou seus captores, e eles não acrescentaram a seus maus tratos um segundo desnudamento. Mesmo assim, mataram você. Só sabemos sua história porque um homem com um riso constrangido lembrou-se de como você foi corajosa. Há testemunhos de sua coragem por toda parte; sopram pelas ruas e perambulam nas ondas e se enroscam nos espinheiros. Esse vestido é feito de alguns deles. Hamb kahle. Umkhonto (descanse em paz)”.1
Que força é essa, mulher? Ela reverbera um elo universal. Há mais testemunhos.
Lembrem-se da estreia da carreira de advogada de Ruth Bader Ginsburg, defendendo a igualdade entre os sexos perante as leis dos Estados Unidos.
Ela, muito jovem, ocupava a tribuna num Tribunal inteiramente masculino quando um dos julgadores interrompeu o seu argumento: “A palavra ‘mulher’ não aparece uma única vez sequer na Constituição dos Estados Unidos!”. Ruth respondeu: “Nem a palavra ‘liberdade’ originariamente aparecia, Excelência”. Era preciso mudar. Ganhou o caso.
Mulheres de todas as cores. Adultas, jovens ou mesmo crianças. Da cidade ou da zona rural. Estudadas ou não. Dos lugares mais impossíveis, em qualquer época. Pouco importa. Elas sempre estiveram lá. E continuarão estando. É seu destino.
Nas montanhas do vale do Swat, no nordeste do Paquistão, Malala, com 15 anos, desafiou talibãs e insistiu em frequentar a escola, o que era considerado um acinte, por ela ser mulher.
Em 2012, num ônibus escolar, um homem armado chamou-a pelo nome, apontou-lhe uma pistola e disparou três tiros. Uma das balas atingiu sua cabeça. Malala sobreviveu.
Esse ano, ela postou uma foto em suas redes sociais. Formava-se em Oxford.
Esse tipo de gana conduziu no passado a história de Linda Brown, do Kansas, Estados Unidos, em seu triunfo pessoal com efeitos coletivos arrebatadores.
Linda não compreendia a razão de seus longos percursos diários para a escola, principalmente quando soube que havia um colégio a quatro quarteirões da sua casa.
A criança tinha a pele negra e em seu país a educação era separada pela cor da pele. A escola perto de casa era para brancos. A questão chegou à Suprema Corte, que a apreciou em 1954. Foi o caso Brown v. Board of Education, que serviu de estopim judicial para o início do longo desmantelamento da segregação racial naquele país.
Que força é essa, mulher?
Quem olhar com a sabedoria da sensibilidade verá um espontâneo pendor para a liderança e uma liderança cristalizada pelo exemplo. O exemplo de Madre Teresa de Calcutá. O exemplo de Irmã Dulce. De Mãe Menininha do Gantois.
O exemplo da coragem sem limites de Anita Garibaldi, cujo nome está no Livro dos Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Liberdade e da Democracia, em Brasília.
O exemplo das mulheres para quem o Banco Grameen foi criado, enxergando no microcrédito o sopro de ar para uma Bangladesh sufocada pela pobreza. 97% dos mutuários do banco são elas, as mulheres, seriamente comprometidas em adimplirem suas dívidas mesmo que não haja documentos nem contratos de empréstimos. Livres dos agiotas, elas conquistaram pão e asas.
Passa da hora de mudar. Precisamos menos de um Juízo Final que nos machuque como um pai cruel e mais de uma mãe justa como é a Mãe Natureza. Necessitamos menos de alter ego e mais de alma mater. Que a justiça seja feita menos de martelos e mais de balanças, menos de poder e mais de autoridade. É fundamental que eles, os Códigos, não fiquem entregues a si mesmos, mas submetidos aos domínios derradeiros delas, as Constituições, como a Constituição de 1988.
Uma Constituição que abriu o portal dos direitos fundamentais com seus 78 incisos do art. 5º, mas que, como primeiro deles, escolheu aquele cuja redação diz: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Uma Constituição que reconhece que quando o bebê chora de fome, pouco importa se a mãe desfruta de liberdade ou não. Ela assegura às presidiárias “condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”.
Uma Constituição que traz como um dos objetivos fundamentais promover o bem de todos, sem preconceitos de “sexo” e quaisquer outras formas de discriminação.
Uma Constituição que ao dispor sobre os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, assegura a “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei” e proíbe “qualquer diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo”.
E uma Constituição que determina que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos “igualmente pelo homem e pela mulher”.
Mas não bastam as leis, tampouco as Constituições. A transformação definitiva não ocorrerá sem o insubstituível elemento humano, vocês, que não falam apenas em nome próprio, mas por intermédio das procurações metaforicamente dadas pela sua linha ancestral, as bisavós, avós e mães de cada uma. Que falam para o amanhã, para filhas, netas e bisnetas. Vocês são as advogadas do passado, do presente e do futuro.
Uma travessia como essa jamais será fácil. O terreno costuma ser extremamente escorregadio. Acham que foi fácil para a advogada e política britânica Margaret Thatcher? Mais diligente do que o seu gabinete masculino, Thatcher obteve dele, no final da sua longa temporada como Primeira-Ministra, apenas inveja e traição.
Essa é uma luta que visa a reconstruir as bases do edifício acinzentado do poder contemporâneo para que, a partir da nova formatação desses pilares, possa o edifício inteiro se tornar mais vivo, mais colorido e mais funcional.
Mas o poder não cede passagem. Ele é renitente. Vocês são as desbravadoras em suas embarcações e ele o mar revolto sob os lances das tempestades, com monstros marinhos argutos dando botes a todo instante.
Por isso, saibam que não chegarão lá com timidez. Não. Passem com coragem e uma grande dose de atrevimento. Cruzem esse limite artificialmente imposto com bravura e resignação. Passem em marcha, de mãos dadas, com cânticos ou em silêncio. Protejam-se. Passem unidas, em harmonia, guiadas por um propósito emancipador. Passem sem pedir licença, sem pedir desculpa, sem pedir perdão, sem baixar a cabeça nem desviar a vista. Passem com suas mentes e seus corpos, ao seu modo, do seu jeito. Apenas passem.
Lembrem-se de Conceição Evaristo, que alertou para o grave fato de que não há apenas a “pedra” no meio do caminho. Há ainda “pau, espinho e grade”:
“‘No meio do caminho tinha uma pedra’,
Mas a ousada esperança
de quem marcha cordilheiras
triturando todas as pedras
da primeira à derradeira
de quem banha a vida toda
no unguento da coragem
e da luta cotidiana
faz do sumo beberragem
topa a pedra pesadelo
é ali que faz parada
para o salto e não o recuo
não estanca os seus sonhos
lá no fundo da memória,
pedra, pau, espinho e grade
são da vida desafio.
E se cai, nunca se perdem
os seus sonhos esparramados
adubam a vida, multiplicam
são motivos de viagem.”

Passem não apenas por vocês. Passem por nós também.
A ideologia machista nos prometeu honra e orgulho. Entregou vergonha, dor e sofrimento. Alcoolismo, pânico, trauma, doença, vício e resistência. Atraso mental, moral e comportamental.
Não me refiro às imperfeições daqueles que aqui estão para evoluir. Dos tropeços de um percurso que é mesmo difícil. Dos erros humanos reparáveis, tampouco dos ânimos inerentes a quem tem os córregos do corpo irrigados por sangue, não por água. Somos seres sociais e emocionais. Haverá ruídos sempre. Atos falhos, incoerências, inconsistências, medo ou egoísmo. Tudo isso é vida humana. Não é disso que falo.
Falo do machismo. Dessa ideologia impregnada em quase todos os lugares, como manchas que transformam uma linda peça de roupa num rebotalho sem valor. Uma construção velha repleta de cômodos escondidos, difíceis de serem identificados para que possam ser limpos, reformados ou demolidos.
Um machismo cujo maior escândalo, o estatístico, deu à luz à Lei Maria da Penha e ao crime de Feminicídio. A realidade trágica fez o Estado reconhecer que as mulheres precisariam de armaduras institucionais para se protegerem das investidas covardes.
Mas não recuamos, não reconhecemos o fracasso que o machismo é. Chegamos ao ponto de, em nome dele, tirarmos a vida de mulheres a quem dizíamos amar. Quando não, ceifamos a vida dos novos amores das mulheres cujos corações não nos ofereciam mais morada. Para o machismo, “não” não é “não”. Que ímpeto é esse?
O machismo acabou conosco. Tornou os ambientes decisórios menos diversos, menos holísticos e pouco interessantes. Excludentes e concentradores. Mais do mesmo.
Disse ainda que seríamos mártires. Terminamos em calabouços sombrios, presos, alijados do banquete de uma vida social abundante e repleta de possibilidades. No limite, sua perspectiva extrema gerou assediadores, agressores, estupradores e assassinos. Nada de honra, nem orgulho. Apenas ultraje.
Muito antes, ele já havia prometido que faria de nós heróis, que venceríamos guerras, que seríamos aplaudidos e lembrados. E pelo menos nas duas grandes guerras, lá estávamos matando pessoas, inimigos e amigos, homens e mulheres, idosos e crianças.
Do outro lado do front, estavam elas, as mulheres, que não deram causa a nada daquilo, e, mesmo assim, foram compulsoriamente mergulhadas nos hospitais e seus equivalentes, para curarem e repararem tanto mal. A cura pela qual Ana Néri voluntariamente perseverou, em nosso nome, muito antes, na Guerra do Paraguai.
Cura. Há muitas formas de vivê-la. Em Jerusalém, no Museu do Holocausto (Yad Vashem), foi agraciada com a rara honraria de “Justa entre as Nações”, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, que, na sua condição de funcionária do Consulado brasileiro na Alemanha, ajudou judeus a entrarem ilegalmente no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, salvando todos eles.
Salvar vidas é algo nobre. Curar pessoas é divino. Matá-las, não. Vocês são o fio de água no chão árido, a linha que percorre a pele fechando feridas abertas. E esse poder de realizar a alquimia da cura está aí para quem quiser ver, nessa terrível pandemia. Quais nações animam puro orgulho? Alemanha, Nova Zelândia, Taiwan, Islândia, Dinamarca, Finlândia e Noruega. Quem as governa? Sim, elas.
Que força é essa, mulher?
Os homens não podem se enxergar como inimigos do descortino dessa jornada. Se buscam um nome masculino para tomarem como alguma referência nessa conversa, que se inspirem em John Stuart Mill, autor da obra “Sobre a sujeição das mulheres”.
Ele afirmava que a igualdade de direitos, deveres e oportunidades entre homens e mulheres, notadamente no campo da educação, da propriedade e da participação política, contribuiria para a ampliação da felicidade de toda a coletividade. Mill chegou a integrar o Parlamento Britânico e a propor leis nesse sentido. Era um liberal e um democrata.
Essa foi a mensagem desse homem, em 1869. No século XXI, qual é a sua mensagem, meu irmão?
Precisamos de novos marcos filosóficos, de premissas que libertem, não que aprisionem. Propostas teóricas que advirtam, plantando entre nós o “nunca mais”.
Necessitamos ter em nossas cabeceiras obras escritas por quem viveu a verdade e percorreu o caminho, por quem fala sobre o que sentiu na pele. É dessa experiência que vem a autoridade, um elemento muito mais valioso do que o poder.
Obras como a de Hannah Arendt, judia que escapou do holocausto liderado por um homem que se dizia forte. Hannah advertiu sobre a origem do totalitarismo.
Trabalhos como o de Djamila Ribeiro, que escreve sobre aquilo o que vive, não apenas sobre o que conhece de ouvir dizer. Djamila adverte sobre o mal do racismo.
Ainda assim, mesmo inspiradas por mulheres que entregaram suas razões e seus sentimentos para uma caminhada sem igual, a verdade é que essa jornada jamais terá fim.
Um edifício ajuda a explicar a afirmação acima.
Do lado de fora do plenário da sede da Corte Constitucional da África do Sul, em Joanesburgo, há um painel com luzes vermelhas de neon e uma mensagem em língua portuguesa: “A luta continua”.
Inspirada no mote político em busca por independência vindo de Moçambique, a expressão do letreiro mostra para as pessoas que entram e saem da Corte Constitucional, local destinado a ouvir súplicas por justiça, que não há descanso na jornada de vindicação por direitos. Encerrando-se um ciclo, outro se inicia. Também é assim nessa aventura histórica. Na realização da vossa emancipação, não há descanso. A luta sempre continua.
Mas esse não pode ser um problema insuperável para quem chegou até aqui. Siga edificando. Você é forte. Forte demais. Ela, a força, está contigo. Sempre esteve.
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1 Sachs, Albie. Vida e direito: uma estranha alquimia. Tradução de Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 14.
Saul Tourinho Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, “Direito à felicidade”, tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.

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