A ginecologista e obstetra Susane Mei Hwang assumiu a coordenação do Programa de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Sexual do Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, em 2017. Desde então, ouve diariamente as trágicas histórias de suas pacientes e, frequentemente, encaminha muitas delas para a interrupção da gravidez.
"A primeira coisa que faço [ao atendê-las] é me colocar no lugar delas", diz a médica, mãe de uma menina de dois anos.
"A primeira coisa que faço [ao atendê-las] é me colocar no lugar delas", diz a médica, mãe de uma menina de dois anos.
A maternidade municipal instituiu o Programa de Aborto Legal em 2000. E oito anos depois criou o programa que hoje Susane coordena, com atendimento de médica, enfermeira, psicóloga e assistente social. O aborto no Brasil é permitido por lei em três casos: risco de vida para a mãe, estupro e anencefalia do feto.
Nesses anos de experiência, Susane conta que, tal qual aconteceu no hospital em Vitória (ES), que se recusou a realizar a interrupção da gravidez de uma criança de dez anos, vítima de estupro pelo próprio tio, já viu profissionais se recusarem a fazer aborto na unidade onde trabalha. Mas não precisou, porém, transferir pacientes para outras maternidades, como aconteceu com a menina, que teve de ir para Recife, após o primeiro hospital que a atendeu alegar problema técnico para não realizar o procedimento.
"Já questionaram que se trata de uma vida que estamos tirando. E eu respondo: 'E a vida da mulher?' Recentemente, uma paciente já estava no centro cirúrgico quando o anestesista falou que não aplicaria a anestesia. Mas aí arrumamos outro. Ele pode se recusar a fazer o serviço, que é a chamada objeção de consciência [quando o profissional acha que aquele procedimento vai contra sua ética, seus princípios]. Porém, temos que colocar outra pessoa para atender. Isso é muito ruim para a mulher, que já está se sentindo um lixo, mas fazemos de tudo para ela nem ficar sabendo", diz a médica.
'Como sei que ela está falando a verdade?'
Os questionamentos não se limitam aos profissionais que trabalham no local. Muitos estudantes de medicina vão ao hospital acompanhar os procedimentos, e é frequente Susane ouvir —dos homens— se ela não duvida das histórias que as suas pacientes contam sobre terem sido estupradas.
"A pergunta que a gente mais ouve é: 'Como eu sei que ela [a paciente] está falando a verdade?' Fico quieta e espero ele acompanhar o atendimento. No fim, quem questiona sou eu: 'E aí? Ainda acha que é mentira?', diz.
"Como a pessoa que vai nos procurar para pedir ajuda vai inventar uma história? Parto do princípio de que todo mundo fala a verdade. Aqui somos maioria mulher. Esses questionamentos vêm de homem mesmo", afirma.
Culpa, rejeição e julgamento
A mulher que sofreu violência sexual recebe, no hospital, o atendimento ambulatorial, para profilaxia e exames, além de serviço social e psicológico. Muitas chegam ao local com medo de serem rejeitadas e julgadas, diz a médica.
"Elas chegam com sentimento de culpa, questionando o porquê de terem ido na tal festa, por exemplo. E explicamos que elas foram colocadas naquela situação. Veja a consequência dos atos de um cara que, para se satisfazer, cometeu a violência. Para ele, acabou ali. Já a vítima de violência tem que passar pelo serviço, contar toda sua história, decidir se vai fazer aborto. Eu penso em mim, que sou casada e tenho uma filha. Qualquer escolha que ela fizer, vai carregar para o resto da vida."
Se constatada gravidez proveniente do estupro, a paciente é encaminhada para realizar o aborto, se for da vontade dela. Susane assegura que os profissionais envolvidos não dão qualquer conselho a essas mulheres.
"A gente tenta falar o mínimo possível. Tanto que, no ultrassom, por exemplo, o médico não fala nada sobre o batimento cardíaco e não mostra a imagem, para ter o mínimo de vínculo possível, se ela quiser interromper. Mas, se ela quiser ver, claro, mostramos."
A decisão é da mulher
O mais difícil para Susane não é ver uma mulher ter de interromper uma gravidez após ser vítima de estupro, mas não conseguir fazer a vontade da paciente.
"Recebemos uma gestante que não tinha mais a possibilidade de interromper a gravidez. Ela escolheu deixar a criança para a adoção. Como mãe, fico mal, porque não sei se eu teria coragem. Mas, dentro das possibilidades que ela tinha, foi o melhor para ela."
A lei ampara a mulher que não quer criar o seu filho. No momento em que ela toma a decisão, deve procurar a Vara da Infância e da Juventude e manifestar essa vontade. Essa mãe será acompanhada por uma equipe de psicólogos e assistentes sociais até o fim da gestação. Depois que a criança nasce, é novamente avaliada. A mulher pode ainda comunicar a decisão de entregar o filho na maternidade, após o parto. Muitas escolhem não nomear a criança ou amamentar para não criar vínculo.
Mas a médica conta que a equipe também é surpreendida quando a paciente vítima de violência decide seguir com a gestação e ficar com a criança. "Tive uma que, no mesmo dia do estupro, teve relação com o namorado. Depois que expliquei sobre teste de DNA e tudo mais, ela falou: 'Esse filho é meu. Vou fazer pré-natal'", conta. "E outra que queria interromper, mas foi internada duas vezes [para fazer o aborto] e pediu para pensar um pouco mais. Na terceira vez em que voltou, já falamos do pré-natal. Ela ganhou o bebê esses dias."
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