DIÁRIO DE CLASSE
Trote racista da UFMG retrata banalização do mal
Por André Karam Trindade
Todo início de semestre, a história lamentavelmente se repete. Os fatos ocorreram há duas semanas (15/03), na Universidade Federal de Minas Gerais. Não foi a primeira vez, nem a segunda, nem a terceira... O episódio ocorreu na Faculdade de Direito, o que agrava ainda mais a situação. A repercussão chegou às redes sociais e ganhou espaço nos jornais e canais de televisão. As fotos podem ser encontradas na internet. Os vídeos já foram excluídos. Curiosamente, ninguém escreveu aqui na revista Consultor Jurídico sobre o polêmico trote promovido pelos “veteranos”.
Cena 1: uma caloura rebelde foi pintada de preto, acorrentada pelas mãos e exibida com um cartaz de papelão pendurado ao pescoço, onde estava escrito “Chica da Silva”, em alusão à escrava diamantina.
Cena 2: outro calouro foi amarrado com fitas adesivas em uma pilastra e teve seu rosto pintado de vermelho, enquanto, ao seu lado, três veteranos sorridentes — um deles com bigode desenhado a la Hitler — simulavam saudações nazistas.
A direção da faculdade instaurou uma sindicância, designando uma comissão para apurar os fatos e identificar os envolvidos. Os responsáveis poderão ser advertidos, suspensos ou, até mesmo, expulsos do curso, conforme afirmou a vice-reitora aos veículos de comunicação.
Notas de repúdio foram emitidas pela universidade, Diretório Central de Estudantes, Centro Acadêmico de Ciências do Estado e Centro Acadêmico Afonso Pena, que inclusive reconheceu publicamente sua omissão. Houve uma série de protestos dos estudantes, além de manifestações de diversas entidades de defesa dos direitos humanos.
A Comissão de Direito Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais aprovou requerimento e convocou audiência pública para apurar denúncia de racismo dos estudantes que promoveram o trote. Até o momento, não tive conhecimento de qualquer manifestação do Ministério Público Federal a respeito dos fatos e tampouco das providências que estão sendo tomadas.
Todavia, o que mais me chamou atenção — para além do choque que a gravidade do episódio por si só produz — foi a naturalidade com que inúmeros veteranos responderam às críticas dirigidas ao trote: “É preciso analisar o contexto”, argumentaram. “Tudo não passou de uma brincadeira”, concluíram.
Brincadeira? Brincadeira preconceituosa, ultrajante, vexatória. Brincadeira racista. Brincadeira criminosa, que dá cadeia! Me lembrei do episódio do índio, em Brasília, que foi incendiado porque confundido com um mendigo. Me lembrei que a dignidade humana é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Me lembrei do caso Ellwanger, que foi condenado por crime de racismo, há uma década, pelo Supremo Tribunal Federal. Me lembrei do julgamento de Adolf Eichmann e, consequentemente, da célebre obra de Hannah Arendt, cuja leitura tenho certeza de que é indicada pelos professores da UFMG.
O trote evidencia a tradição autoritária que permanece enraizada nas elites da sociedade brasileira (que ainda pré-dominam no ensino superior público) e, ao mesmo tempo, macula a imagem de uma das faculdades e programas de pós-graduação em direito melhor conceituados do país, reconhecidos por seu compromisso com a cultura dos direitos fundamentais, a defesa da democracia e a promoção da justiça social.
Trata-se de um novo retrato da banalidade do mal. Algumas pessoas praticam determinadas condutas sem racionalizar acerca de seu resultado final. Simplesmente não se importam com as consequências de seus atos. Cumprem ordens, independente de qual seja o seu teor. Foi assim durante o nazismo, tão combatido por figuras lendárias como Stéphane Hessel (um dos redatores da Declaração Universal dos Direitos Humanos e autor do manifesto Indignai-vos!), que nos deixou no mês passado, com 95 anos.
Espero apenas que, com ele, não tenhamos perdido nossa capacidade de indignação e de resistência a todo e qualquer tipo de intolerância. Digo isto porque tempos sombrios se aproximam. Discriminações racistas, discursos homofóbicos, práticas sexistas e agressões a tudo aquilo que se mostra diferente vêm se tornando cada vez mais presentes em nosso cotidiano, desde o trote dos veteranos da faculdade de Direito da UFMG até os recentes pronunciamentos da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, presidida pelo deputado Marco Feliciano (PSC/SP).
Muitos têm se questionado a partir do polêmico trote: estes serão os juristas de amanhã? Estes serão os juízes, promotores, advogados do futuro? Isto depende, inevitavelmente, de quem são os juristas de hoje e, sobretudo, de qual resposta seremos capazes de dar para este problema ou, se preferirem, para esta “brincadeirinha”.
André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.
Revista Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2013-mar-30/diario-classe-trote-racista-ufmg-retrata-banalizacao-mal
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