Mônica El Bayeh
O Twitter fervia , a tensão pairava no ar. Várias meninas disputavam uma mesma amiga numa briga um tanto delicada. Um duelo de teclados. Afirmavam todas que eram, sim, “A” preferida.
Fiquei surpresa. Nunca tive dessas coragens. Nunca a ousadia de afirmar assim abertamente ser A preferida, nem ao menos de perguntar se era! Vai que a criatura desmentisse, negasse…Eu ficava como? Sempre me mantive discreta, neutra nessas coisas de preferência. Nada de politicamente correto. Medo de passar vergonha mesmo.
Ser a preferida é um sonho acalentado por muitas, um secreto desejo – ainda que a maioria desconverse. Agora, além de tudo ainda tem nome chique, importado. BF, best friend (melhor amiga). BFF, Best Friend Forever (melhor amiga para sempre). O termo é sofisticado. O objetivo, meio podre. Classifica umas e exclui outras, tão boas quanto. Deixa um rastro de destruição no seu encalço.
Fiquei com pena. A maior riqueza da amizade é justamente a leveza de poder ser bobo, natural, falar o que vem à cabeça e poder ser de muitos. Amigos podem, sim, ao contrário das regras amorosas ocidentais, ser de muitos. E todos juntos, sinônimo de diversão garantida.
Ficou importante ser a melhor, The Best. A mais querida, a melhor de todas, a grande eleita. Saímos da permissividade feliz que a amizade proporciona. Entramos na seara da exclusividade e do ciúme tão típica e dolorosa dos namoros e casamentos.
O que antes era pique-pega descontraído agora virou Fórmula1. Tem rankings e pódio. Isso não me cheira bem. Prevejo chuvas e tempestades no Twitter, no Facebook e, pior, na alma de muitas.
Quem tem amigos sabe. Cada um tem seu jeito, cada um sua maneira. Uns servem mais para a gente rir junto e muito e de tudo. Outros servem para boa parceria de trabalho. Tem aqueles que você ama, pensa parecido. Os que adivinham quando você está mal e te ligam por intuição, depois de um tempão afastados. Os que você chora junto. E aquele que te leva à cartomante, escondido dos outros todos.
Tem um melhor? Depende do objetivo, depende do momento, depende do dia. Até porque todo mundo tem seu dia de azedo. E, nesses dias, é prudente ter opção. Uns que servem para tudo? Tem também. Mas nem por isso se assina exclusividade. Todos eles deixam a vida mais animada. A soma de todos dá recheio a sua história. São personagens importantes das suas aventuras e desventuras. Todos queridos, cada um do seu jeito.
Fico muito surpresa com essas demonstrações de domínio alheio. E já assisti a muito mais cenas desse tipo do que gostaria. Outro dia, passei por duas moças que se estranhavam. Estavam a um palmo de distância uma da outra. Separadas apenas por um degrau baixo, gritavam. Nem precisava, estavam tão próximas, que mais um pouco se beijavam na boca. Mas gritavam mesmo assim. Virou moda tirar satisfação, ameaçar bater na outra, pegar quem dá em cima. A mais alta, braço esticado, dedo em riste girando nervoso, afirmava com um balanço lateral de corpo e cabeça que o homem era dela.
Como assim o homem era dela? Sou casada há vários anos e não me considero dona do homem que mora comigo. Ele está meu, provisoriamente. Tem até durado bastante, já faz um tempo e ele continua por aqui ainda. Mas meu? Não. Posso, no máximo, dizer que ele está meu marido. Estar casado é verbo de transição. A qualquer momento, pode mudar. Tipo operadora de celular. O sinal começa a falhar, surgem ruídos na comunicação. Você fala, mas não ouve o retorno, as mensagens não chegam. O grau de satisfação é baixo, o SAC não se comove com a sua aflição. As outras operadoras seduzem com vantagens… É batata: portabilidade.
A aliança de amizade, de respeito, de fidelidade e de desejo é entre o casal. Se alguém quer o seu namorado ou marido, pode tentar conseguir, tem esse direito. Claro que vai dar raiva, ódio. Você vai desejar coisas bem dolorosas para os dois safados. Mas, de verdade, a traição não é da outra pessoa. É de quem tem o compromisso firmado com você.
A outra não tem acordo com você. Ela está correndo atrás de um par, calhou de gostar do seu. Veja só que coincidência, vocês têm o mesmo gosto! É ao seu parceiro que cabe se posicionar. O que ele vai fazer? O que você vai decidir? Em coisas de amor, sempre há muitas soluções. Amor é criativo, sinuoso, cria atalhos e caminhos. Não estou aqui para julgar. Pode dispensar a outra porque está com você. Pode ir embora para a outra! Portabilidade!
Também, convenhamos: segurar cliente insatisfeito para que? Reavalia a qualidade dos serviços prestados e melhora ou deixa ir e torce para ele ver que a outra operadora não é nada do que prometia. Propaganda enganosa, ficou pior servido? Bem feito! Você está vingada!
Não me sinto dona de ninguém. Abrindo aqui meu coração, acho até que gostaria de ter essas certezas. Bater no peito, dizer que é meu e pronto. Mas me conformo, pensando que quem acha mesmo que é seu não precisa de explosões desse tipo. Você sabe quando é querida, sente e isso acalma.
Penso que, ao contrário do que se imagina ou gostaria, gente não tem dono. Tenho dois filhos. Saíram de dentro de mim. Cresceram nas minhas entranhas. Fui morada, carreguei nove meses. Tinha horas que ficava meio desconfortável, a quitinete já visivelmente pequena para nós dois. Fiz do meu corpo alimento, me doei. Eles são prioridade absoluta. Invisto neles, alegre, orçamento, tempo vago e energia. Isso me faz dona? Nada disso me faz dona dessas duas já nem tão pequenas criaturas. Tento ser íntima, próxima, querida, enlaçar nossas vidas, trançar afetos. Mas dona? Não sou mesmo.
A cada um cabe ser o dono de sua própria vida, a mais ninguém. Vai testar, experimentar, cair, quebrar a cara. Faz parte. Ver o ser amado sofrer dói na gente, dói na carne. Melhor que fosse com a gente? Claro. Mas é a vez deles. O que se faz?
Se reza para que voltem vivos e em paz, para que enxerguem melhor do que a gente fazia nessa idade. Se avisa, reclama, dá palpite, torce, lamenta. E, mesmo tendo feito tudo isso em vão, fica por perto para socorrer quando voltarem magoados. Vida magoa mesmo, mas fortalece também.
Assim a vida da gente segue se entrelaçando com várias outras. Uns laços são fraquinhos, outros são frouxos. Outros lindos, de presente de loja chique daqueles que perfumam o armário onde são guardados. Amigos constroem e perfumam nosso caminho. Deixam suas marcas, lembranças, esquisitices, histórias. A gente se liga e desliga como jogo de Lego. E forma lindas figuras. Ou não. Uma peça de Lego só constrói quando unida às outras. Todas juntas e diferentes. Cada uma com sua cor, seu formato. E todas necessárias para continuar a brincadeira.
* Mônica El Bayeh, carioca, é psicóloga.
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