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terça-feira, 26 de março de 2013


“Internei meu filho 14 vezes para livrá-lo do crack. Não consegui”

A pedagoga S. M., 57 anos, é uma mãe de classe média alta de São Paulo que viu o filho se afundar no crack. Na luta contra a dependência de J., 28 anos, ela defende medidas polêmicas como a internação involuntária, feita sem o consentimento do usuário. Adotado quando era bebê, J. se tornou um adolescente problemático e começou a usar drogas aos 15 anos. Nas crises de fissura, fica violento, rouba e agride os pais e já chegou a ameaçar a mãe com uma faca. Entre idas e vindas, passou oito dos últimos dez anos internado. Nas recaídas, volta para a rua. Ela percorre a Cracolândia para resgatá-lo e levá-lo de volta à clínica. E conta sua história para tentar aliviar sua dor

legenda (Foto: © Lynn James/ Getty Images)(Foto: © Lynn James/ Getty Images)
“Eu e meu marido sempre gostamos de crianças e queríamos uma família grande. Juntos, planejamos adotar três, para depois ter os nossos filhos biológicos. Mas acabamos com um filho único, pois ele deu muito trabalho. Quando encontramos J. no abrigo da antiga FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, hoje Fundação Casa), ele tinha apenas 1 ano. Abriu imediatamente os bracinhos e fez um gesto com as mãos nos chamando. Tive certeza de que tinha encontrado o menino com quem sempre sonhara. Depois que o levamos para casa, percebemos que, apesar da pouca idade, ele já tinha traumas. Meu filho passou o primeiro ano de vida sem um olhar, sem um colo, sem ter um peito. No abrigo, ele ficava o dia inteiro num bercinho olhando para o teto, sem estímulos. Sua mãe biológica era menina de rua, tinha apenas 14 anos e o abandonou no hospital logo após o parto. Ele era um bebê grandão, que parecia um recém-nascido. Não tinha reação, não sentava, era totalmente estrábico. Sua saúde era delicada. Tinha bronquite, otite, fragilidade pulmonar, problemas de fígado e de pâncreas.
Quando J. entrou na escolinha, ficou claro que ele precisaria de muita atenção. Com apenas 2 anos e meio, foi expulso do berçário, porque mordia os coleguinhas. Procuramos a ajuda de psicopedagogos. Era necessário suprir a grande carência que ele tinha. Foi o que tentei fazer. Na época, eu era supervisora de Recursos Humanos de uma grande companhia, posto que exigia muitas viagens. Sempre que eu estava fora de casa, J. tinha febre. Não tive dúvidas, pedi demissão para me dedicar integralmente a ele. Retomei a carreira muitos anos depois. Isso, no entanto, não impediu que ele voltasse a ser expulso de outras escolas, por seu comportamento agressivo e agitado. Até completar o ensino médio, J. frequentou 22 escolas e, apesar de ter entrado em duas faculdades, nunca seguiu nenhuma.
A indisciplina de J. atrapalhava, mas podia ser contornada. Há 13 anos, porém, começou nossa maior luta: tirar meu filho das drogas. O sinal de alerta acendeu para nós quando ele tinha entre 12 e 13 anos. O colégio nos avisou que ele havia sido pego fumando um cigarro comum. Passamos a ficar mais atentos. J. nunca teve muitos amigos, mas com uns 14 anos se enturmou com um grupinho da escola que frequentava baladas à tarde, as chamadas matinês. Eu e meu marido sempre o levávamos e buscávamos na porta da danceteria. Percebemos que ele ficava ansioso, só queria balada, não queria mais ir à escola, pedia dinheiro. Ficamos desconfiados e passamos a invadir mesmo. Revistando as coisas dele, meu marido encontrou restos de maconha no bolso de uma jaqueta.
Sempre tivemos um diálogo aberto em casa. Quando percebemos que J. estava usando droga, não foi diferente. Ele reagiu dizendo que não tinha nada de errado, que era apenas uma erva, coisa da natureza, que não fazia mal, só relaxava. Dava para perceber quando ele fumava pelos olhos sonolentos. Dormia demais, comia demais, perdia a vontade de estudar. Começamos a regular as saídas de casa, o dinheiro, mas quando ele ficava sem a maconha, tornava-se agressivo, quebrava computador, TV, violão. Levamos ao psicólogo e ao psiquiatra e ele foi diagnosticado com uma depressão profunda. Tentamos controlar a ansiedade com homeopatia. Ele fez hipnose, regressão. Nada adiantava. Embora fosse tratado, ele não parava com a maconha. Não sei exatamente como aconteceu, mas com 17 anos, notamos que o comportamento dele mudou. Seu olhar passou a ficar vidrado, ele não comia mais, emagreceu. Eram os sintomas do uso de cocaína e crack. Ele começou a colocar a pedra dentro do cigarro de maconha. Sem saída, resolvemos interná-lo.
RESGATE E RECAÍDAS
Existem três tipos de internação. A voluntária, em que o drogado vai por vontade própria. A involuntária, quando a família decide e chama o resgate para levá-lo à força. E a compulsória, determinada pela Justiça com base na avaliação médica que atesta que a pessoa está em risco de vida.
Raras vezes J. aceitou ir para a clínica numa boa. A maioria de suas internações foi involuntária. Quando recai, logo vai para a rua. No dia seguinte, eu começo a procurá-lo. Às vezes, levo uns 15 dias para encontrar. Então, chamo o resgate: um serviço especializado, com ambulância e uma equipe de quatro ou cinco homens, geralmente ex-adictos, que conhecem bem o problema e têm a força física necessária para dominá-lo. Eles cobram, em média, R$ 1.500 para levar para uma clínica.
Desde o começo, eu e o pai dele impusemos tolerância zero: limpo, J. é muito bem-vindo em casa; mas se recair na droga, volta para a clínica. Não vemos outra alternativa: se ele for para a rua, acaba morrendo. Se ficar conosco, vai nos matar. Quase aconteceu duas vezes. Numa delas, ele escondeu meu celular e a chave do carro na cueca e queria sair. Trancamos as portas e ele avançou no pescoço do meu marido e me bateu. Só quando a polícia chegou, ele se acalmou e esperou a chegada do resgate. Da outra vez, eu estava sozinha em casa. Com uma faca, ele me ameaçou e pediu que abrisse o cofre para ele pegar dinheiro e a chave do carro. Pela graça divina, fiquei calma, coisa que não sou normalmente. Abri o cofre, tirei um bolo de notas miúdas, ele pegou e, enquanto abria o armário para pegar roupas, deixou a faca sobre a cama. Aproveitei para escondê-la. J. fez a mala e foi embora. Uma semana depois, me ligou pedindo perdão, dizendo que precisava de ajuda. Eu disse que ele podia voltar para tomar um banho, comer, mas que depois nós o levaríamos para nova internação. Ele concordou.
Já tentamos tratamentos de várias linhas. Há as comunidades terapêuticas, gerenciadas por ex-adictos, que trabalham com os 12 passos dos Alcoólicos Anônimos, e as clínicas que contam com atendimento psiquiátrico e oferecem terapias à base de medicamentos. Meu filho chegou a tomar remédios, mas hoje fujo disso. No fundo, tenho a impressão de que substituir a droga por medicamento é trocar seis por meia dúzia.
A NOITE NA CRACOLÂNDIA
Nas recaídas, J. pega o que encontra de valor em casa e vai para as bocas de fumo. Perdi a conta de quantos celulares e relógios ele levou embora. Eu e meu marido passamos a guardar a carteira e as chaves do carro em um cofre. Ele vai para a Cracolândia e eu vou atrás. Em São Paulo, além da aglomeração no centro da cidade, tem a da avenida Água Espraiada, na Zona Sul, perto de onde moramos. Ali, usuários de droga ficam em rodinhas e fumam dentro de cabanas feitas com saco preto de lixo. Têm viaturas de polícia por perto, mas ninguém faz nada. É nesse local que vou procurá-lo. Às vezes, tenho que voltar lá uns 15 dias seguidos para conseguir encontrá-lo. Vou durante o dia, à noite, de madrugada. Digo que anjo da guarda de mãe de drogado é poderoso. Nunca aconteceu nada comigo.
Depois da primeira internação, decidi procurar a mãe biológica de J., na tentativa de curar a ferida do abandono que ele sofreu. Contratei um detetive que a localizou em Uberlândia(MG), onde ela trabalhava como gari. Meu marido levou J. até lá. Ele é muito afetivo, abraçou a mãe, ficaram juntos dois dias, foram jantar, conversaram. Depois que voltou para São Paulo, ele nunca mais tocou no assunto. Tentei também uma saída na fé. Levei J. para todas as correntes religiosas. Mas ele nunca se interessou por nenhuma. Há cinco meses iniciou a 14a internação, numa comunidade terapêutica em Itu, interior de São Paulo. Às vezes, ele foge, outras, recebe alta, mas dos últimos dez anos, esteve internado, no total, oito.
Testei dezenas de clínicas. Graças a Deus temos condições de pagar por serviços particulares, até porque as vagas do sistema público de saúde são escassas. A qualidade do tratamento oferecido para tentar livrar dependentes das drogas varia muito. Uma vez, desconfiei da competência de uma das casas de tratamento e tirei J. de lá. Ele nunca tinha reclamado de nada, mas intuí que algo não era bom. Anos depois, o Fantástico apresentou uma reportagem que denunciava que, nessa mesma clínica, os dependentes sofriam maus-tratos. Fiquei chocada. Mas não penso em desistir da internação. J. já ficou limpo quase um ano depois de sair de uma delas. Em nossas conversas, ele diz que sente ódio de si mesmo por não conseguir se controlar. Quem sabe, na 15ª, na 20ª vez ele consiga desenvolver alguma proteção contra a droga e se cure. Conheço pessoas que conseguiram a partir da 30ª internação.
Já senti muita culpa. Quem não se pergunta em que momento errou para que o filho entrasse nesse caminho terrível? Superei essa culpa estudando para tentar encontrar uma forma de ajudá-lo. E não me escondi, nem escondi meu filho. Quando era criança, minha mãe teve câncer e minha avó dizia: “ela tem aquela doença”. E eu me perguntava que doença tão terrível era aquela que não podia ser nominada? Acontece o mesmo com a dependência química. Muita gente que me conhece há 20 anos finge que não sabe que tenho um filho usuário de drogas, ignora as internações, não pergunta dele.
FORÇA DIVINA
Nunca pensei em desistir do meu filho. Acredito na cura. Para mim, ela vem como despertar de algo superior. Não tenho nenhuma religião específica, mas creio em Deus. E por que precisa da internação? Porque esse despertar só acontece quando a pessoa está limpa. Mas isso demora a acontecer e as recaídas fazem parte do processo. A desintoxicação na clínica é só o primeiro passo. Há muitos outros. Na clínica em que está agora, ele começou um trabalho voluntário. Meu filho toca muito bem flauta transversal e está ensinando música para um grupo de internos. Talvez, com essa atividade, ele consiga um projeto de vida. Para mim, isso já é uma luz no fim do túnel."

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