A nova divisão de tarefas
SUZANE G. FRUTUOSO E VERÔNICA MAMBRINI
COOPERAÇÃO
Cena da rotina familiar. Os homens se sentem
mais à vontade para ajudar no cuidado com os filhos (Foto: Christian Parente/ÉPOCA; Produção: Cuca Elias) |
A única vez em que o marido da publicitária Maria Claudia Salomão, de 34 anos, arrumou a lancheira da filha Malu, de 2 anos, foi em meio a uma das brigas do casal. Os desentendimentos entre eles são poucos. Não raro, o estopim são os pedidos dela para que ele se envolva mais nos cuidados com a menina. Maria Claudia diz saber ser uma privilegiada. O marido gosta e quer participar. Sabe até combinar roupinhas para vestir Malu – uma habilidade rara entre pais e maridos. Mas ela ainda se ressente de ter de pensar em todos os detalhes. “Ele vai à farmácia comprar o que Malu precisa, mas sou eu que tem de explicar o que comprar”, diz Maria Claudia. Suas queixas espelham a alma cansada e nem sempre silenciosa de milhões de mulheres. Revelam uma realidade estressante para elas e frustrante para eles. Se é verdade que os homens nunca se dedicaram tanto à criação dos filhos e às tarefas domésticas, as mulheres nunca foram tão veementes em reclamar que o empenho deles está longe de ser suficiente. Um embate difícil de resolver. Para amenizá-lo, ajuda compreender o essencial quando o tempo escasseia, o cansaço domina e a vida fica difícil para cada metade do casal.
Primeiro, cabe às mulheres um exercício de boa vontade em reconhecer que, se a ajuda dos homens está longe do ideal, pelo menos já é maior hoje do que no passado. A pesquisa mais recente a medir o engajamento masculino, divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), sugere avanços tímidos dos brasileiros rumo ao tanque e à cozinha. Entre 1995 e 2009, aumentou 3,3 % o número de homens que afirmaram se incumbir de algum tipo de tarefa. A mudança de comportamento pode ser lenta, mas é irrevogável. “Estamos no momento mais igualitário da história em termos de divisão das tarefas domésticas”, afirma a socióloga americana Barbara Risman, pesquisadora da Universidade de Illinois que acompanha as diferenças entre gêneros em diversos países do mundo.
A ilustradora Ila Oliveira, de 30 anos, e o engenheiro de software Ricardo Bittencourt, de 36 anos, de Belo Horizonte, são reflexo desse momento democrático. Eles não têm empregada nem diarista. O segredo para manter a casa em ordem – e a harmonia entre o casal – é limpar um pouquinho por dia. A faxina completa é feita uma vez por mês, em dupla. A divisão das tarefas é feita de maneira civilizada. “Aconteceu naturalmente, de acordo com o gosto de cada um”, diz Ila. É Bittencourt que assume a cozinha quando é hora de cuidar das carnes cruas, algo que Ila não suporta.
Foi no cuidado com os filhos que os homens ganharam mais desenvoltura nas últimas décadas. “Há um certo orgulho em assumir a paternidade”, afirma Barbara, da Universidade de Illinois. Os números comprovam essa percepção. Um estudo realizado pelo Families and Work Institute, uma organização americana, revela que, em 1977, os homens gastavam, em média, 1,8 hora por dia em tarefas relativas à vida das crianças. Em 2008, quando os novos dados foram coletados, esse número subira para três horas diárias. No Brasil, a situação não é diferente. Pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e da Universidade Luterana do Brasil analisaram como 100 casais dividam as obrigações relativas aos cuidados com as crianças. De oito tarefas, homens e mulheres compartilhavam seis: repreender quando a criança precisa de limites, comparecer a reuniões na escola, ensinar hábitos de higiene, prover sustento financeiro, dar apoio afetivo e proporcionar atividades de lazer. Apenas duas tarefas cabiam exclusivamente à mulher: cuidar da alimentação e das atividades escolares.
Primeiro, cabe às mulheres um exercício de boa vontade em reconhecer que, se a ajuda dos homens está longe do ideal, pelo menos já é maior hoje do que no passado. A pesquisa mais recente a medir o engajamento masculino, divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), sugere avanços tímidos dos brasileiros rumo ao tanque e à cozinha. Entre 1995 e 2009, aumentou 3,3 % o número de homens que afirmaram se incumbir de algum tipo de tarefa. A mudança de comportamento pode ser lenta, mas é irrevogável. “Estamos no momento mais igualitário da história em termos de divisão das tarefas domésticas”, afirma a socióloga americana Barbara Risman, pesquisadora da Universidade de Illinois que acompanha as diferenças entre gêneros em diversos países do mundo.
A ilustradora Ila Oliveira, de 30 anos, e o engenheiro de software Ricardo Bittencourt, de 36 anos, de Belo Horizonte, são reflexo desse momento democrático. Eles não têm empregada nem diarista. O segredo para manter a casa em ordem – e a harmonia entre o casal – é limpar um pouquinho por dia. A faxina completa é feita uma vez por mês, em dupla. A divisão das tarefas é feita de maneira civilizada. “Aconteceu naturalmente, de acordo com o gosto de cada um”, diz Ila. É Bittencourt que assume a cozinha quando é hora de cuidar das carnes cruas, algo que Ila não suporta.
Foi no cuidado com os filhos que os homens ganharam mais desenvoltura nas últimas décadas. “Há um certo orgulho em assumir a paternidade”, afirma Barbara, da Universidade de Illinois. Os números comprovam essa percepção. Um estudo realizado pelo Families and Work Institute, uma organização americana, revela que, em 1977, os homens gastavam, em média, 1,8 hora por dia em tarefas relativas à vida das crianças. Em 2008, quando os novos dados foram coletados, esse número subira para três horas diárias. No Brasil, a situação não é diferente. Pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e da Universidade Luterana do Brasil analisaram como 100 casais dividam as obrigações relativas aos cuidados com as crianças. De oito tarefas, homens e mulheres compartilhavam seis: repreender quando a criança precisa de limites, comparecer a reuniões na escola, ensinar hábitos de higiene, prover sustento financeiro, dar apoio afetivo e proporcionar atividades de lazer. Apenas duas tarefas cabiam exclusivamente à mulher: cuidar da alimentação e das atividades escolares.
Em suas entrelinhas, o estudo gaúcho oferece aos homens que se sentem injustiçados pela cobrança feminina a possibilidade de compreender as queixas delas. A causa do descontentamento é que ainda sobram para as mulheres – e só para elas – alguns afazeres domésticos fundamentais. São tarefas invisíveis, como supervisionar o dever de casa das crianças ou montar o cardápio das refeições. Essas pequenas responsabilidades cotidianas, quando somadas, assoberbam a mente e geram estresse. Ainda é sobre as mulheres que recai outra categoria de tarefas invíseis: a incumbência de manter contato com parentes e amigos, lembrar aniversários e apoiar emocionalmente a família. Algo chamado também de trabalho pela socióloga americana Pamela Smock, da Universidade de Michigan. “Romper com essas obrigações invisíveis é a conquista derradeira da igualdade de gêneros em casa”, diz Pamela.
A fonoaudióloga paulistana Adriana Mandetta, de 42 anos, conhece bem essas obrigações. Para ela, elas não têm nada de invisíveis. É Adriana quem leva as filhas Isabela, de 13 anos, e Giovana, de 10, ao médico, à escola de inglês, às aulas de vôlei, balé... Para dar conta, decidiu trabalhar meio período. “Meu marido até ajuda no fim de semana, mas existem coisas que a mulher tem de fazer, independentemente de ter tempo ou não”, diz Adriana. “Somos mais detalhistas.”
Ela não está sozinha em sua percepção. É comum que as mulheres não aceitem dividir a gestão da casa com os parceiros por acreditar que eles não darão conta. Eles podem até se encarregar de alguns afazeres. Mas são elas que determinam quais – e como devem ser feitos.“Os homens ficam confusos”, afirma a psicóloga Maria Aznar-Farias, professora da Universidade Federal de São Paulo. “Eles querem ajudar, mas muitas vezes não sabem por onde começar, porque as mulheres não deixam.” Um estudo feito nos Estados Unidos mostrou que é o comportamento das mulheres que dita o grau de envolvimento dos homens. Nos casais em que as mães elogiavam o desempenho dos maridos para lidar com fraldas e mamadeiras, eles se saíam melhor nas tarefas e participavam mais. “É pelo afeto, e não pela imposição que se conquista a ajuda masculina”, diz a socióloga Rosana Schwartz, especialista em questões de gênero da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. “Como os homens não são educados para prestar atenção a detalhes, a mulher tem de aprender a pedir com jeito, elogiando, confiando e agradecendo a participação deles.”
TRABALHO EM DUPLA
A ilustradora Ila Oliveira e o marido, Ricardo Bittencourt,de Belo Horizonte. Ele ajuda tanto nas tarefas domésticas que o casal dispensou a empregada (Foto: Eugenio Savio/ÉPOCA) |
O comportamento feminino acaba reafirmando estereótipos, porque os filhos tendem a reproduzir, quando adultos, padrões de comportamento aprendidos na infância. No Brasil, os dados do Ipea sugerem que o ciclo está longe de terminar. Desde cedo, as meninas trabalham mais em casa que os meninos. Entre os 10 e 15 anos, elas fazem 25 horas de tarefas domésticas por semana. Eles, dez horas. Na vida adulta, esses estereótipos interferem não só na divisão dos afazeres do lar – ou melhor, na sobrecarga feminina –, mas também na vida sexual do casal. A conclusão é de um estudo curioso conduzido por pesquisadores da Universidade de Washington. Eles concluíram que, quando os homens assumem tarefas em casa consideradas femininas, como lavar roupas, a frequência com que o casal faz sexo diminui. Nos relacionamentos em que a divisão de tarefas é tradicional, o número de relações sexuais mensais é multiplicado por 1,6. “Nossa definição de atratividade está ligada aos ideais de masculinidade e feminilidade”, afirma o sociólogo Sabino Kornrich, um dos autores do estudo. As próprias mulheres podem considerar os maridos menos atraentes, porque atribuem ao cuidado com a casa um caráter feminino. “Podem não ser noções necessariamente modernas, mas elas acabam contaminando nossas atitudes.”
A autocobrança feminina sobre a criação dos filhos é outro elemento que aumenta o estresse das mulheres. Paira no ar a exigência para que se criem filhos preparados para ocupar posições de liderança. Cabe às mães fazê-los atingir tal ideal, criando oportunidades de aprendizado e infinitas atividades extracurriculares. Esse comportamento, exacerbado pela crise econômica na Europa e nos Estados Unidos, ganhou até nome: mompetition (um jogo com as palavras “mãe” e “competição”, em inglês). “Nas minhas pesquisas, encontro mulheres que deixam de trabalhar porque acham que seus filhos serão mais bem educados se a mãe ficar em casa”, diz Cameron Macdonald, professora da Universidade de Wisconsin. “As mães que recusam essa lógica sofrem preconceito das outras.”
Os homens parecem à margem da angústia causada por esse ideal de perfeição na criação dos filhos, porque são mais cobrados por seu papel fora de casa. O resultado dessa divisão social de tarefas são políticas corporativas que impedem os homens de conciliar a vida profissional com a participação ativa nos cuidados com as crianças. Por isso, eles ficam mais tempo fora de casa. No Brasil, de acordo com o Ipea, os homens trabalham fora 42,9 horas por semana, e as mulheres, 35,6 horas. “Eles compreendem que precisam dividir igualmente com a mulher a tarefa de cuidar dos filhos, mas as empresas estranham se um funcionário diz que sairá no meio do expediente para levar o filho ao médico”, diz Rosana, do Mackenzie. “Os homens vivem um conflito.”
No livro Fast-forward family, recém-lançado nos EUA, pesquisadores da Universidade da Califórnia mostram esse impasse. Ao analisar como pais e mães são recebidos pelas crianças ao chegar em casa, descobriram que as mulheres chegam primeiro 76% das vezes. Em média, os homens cumprem duas horas extras diárias. Como as mães chegam antes, são elas que recebem atenção e carinho dos filhos – assim como os pedidos de ajuda na lição, de materiais que devem ser comprados para a aula e as demais tarefas invisíveis que muitas vezes acabam em brigas entre marido e mulher. A cena flagrada pelos pesquisadores americanos – tão comum no cotidiano das famílias brasileiras – mostra que, se as mulheres ainda não dividem igualmente com os homens a criação dos filhos, não estão sozinhas na angústia de querer mais tempo com a família.
O homem moderno juntou-se a ela.
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