Como as cantadas na rua reforçam a dominância dos homens sobre as mulheres.
Susto, medo, vergonha, culpa, revolta, raiva, impotência, medo. Essa costuma ser a sequência de emoções que eu sinto toda vez que saio na rua e sou alvo de “cantadas”- termo suave usado por tempo demais para classificar o que na verdade é assédio de rua e uma forma de violência contra a mulher. Para quem insiste que cantada não é a mesma coisa que assédio, aquele fiu-fiu, ou aquele “gostosa!”, ou mesmo aquela torcida de pescoço seguida de sorriso safado e olhar obsceno não passam de um elogio ao qual eu e todas as mulheres deveriam se sentir gratas diariamente. O engraçado é que, após breve reflexão, constatei que a sequência de emoções que eu costumo sentir ao receber um elogio de fato – sabe, como bem-estar, satisfação, orgulho – não tem nada a ver com a sequência de emoções que eu sinto ao receber uma cantada na rua. É verdade que nas duas situações eu costumo ficar corada, mas os sentimentos que fazem o meu sangue fluir desvairado para a minha cara em cada caso são bem diversos.
Notícias chocantes: é comum corar de ódio e fúria assassina.
Além disso, ao contrário de assédio de rua, um elogio jamais fez com que eu evitasse determinadas ruas, usasse fones de ouvido sem música para evitar conversas indesejadas, andasse olhando para o chão para evitar travar contato visual com estranhos, deixasse de usar saia no transporte público, pegasse taxi para não ter que andar sozinha à noite ou temesse pela minha vida ao passar por um grupo de homens desconhecidos em uma rua deserta.
Isso porque assédio de rua não é, obviamente, um elogio, nem muito menos paquera ou uma forma de sedução. Assédio de rua é pura e simplesmente uma manifestação de poder e de dominância de homens sobre mulheres. Disfarçado como galanteio e sem, na maioria das vezes, envolver toques indesejados e violência física, ele é amplamente aceito pela sociedade, que tende a considerar que quem reclama é muito sensível e só pode estar exagerando. É importante, no entanto, não se deixar enganar pelos que insistem que você está sendo ridículo ao falar que assédio de rua é um problema, pois embora um comentário obsceno possa parecer inofensivo à primeira vista, os seus efeitos são muito mais pervasivos do que a análise tirada do rabo de quem insiste em tentar justificá-lo é capaz de identificar.
O cara tava só paquerando/brincando/elogiando, que exagero! = exemplo de justificativa tirada do rabo.
Em primeiro lugar, temos o efeito psicológico. Só quem vive a coisa na pele é capaz de entender como assédio de rua tem a capacidade de desestabilizar uma pessoa. Você deve ter percebido que eu coloquei “medo” duas vezes lá em cima, na sequência de emoções que eu costumo sentir ao ser assediada na rua. O primeiro medo vem atrelado ao assédio específico que desencadeou a sequência de emoções. Ele vem acompanhado de pensamentos como “será que ele vai encostar em mim?”; “será que ele vai ficar bravo porque eu o ignorei?”; “será que ele vai me seguir?”. Já o segundo medo é a sensação que perdura mesmo depois que o cidadão já seguiu o caminho dele e já está ocupado assediando outra mulher. É o medo que faz com que eu decida mudar o caminho que eu faço todo dia ou que eu deixe de frequentar um determinado local. Basicamente, é o medo que limita a minha mobilidade e que, portanto, funciona como uma arma empunhada pelo assediador contra a minha liberdade.
Ah, mas isso aí é coisa da sua cabeça! Você muda o seu caminho porque quer – não foi o brother que te deu uma cantada que te obrigou – alguém aí certamente vai protestar.
O problema é que o assédio de rua, através da regulação cotidiana das mulheres, faz com que elas nunca se sintam plenamente pertencentes ao espaço público e é sempre um lembrete do nosso eterno papel de objeto sexual, cuja principal razão de ser é satisfazer os homens. Então, não, talvez o carinha não tenha explicitamente me dito que era melhor eu mudar o meu caminho para evitá-lo, mas o fato de ele ter me assediado verbalmente implica tanto que ele não tem respeito nenhum por mim como ser humano, como que ele se sente plenamente no direito de falar o que acha do meu corpo e o que ele gostaria de fazer com ele (quase sempre com o aval de todo mundo que está por perto). E se ele acha que tem esse direito, o que me garante que ele não acha que tem também o direito de tomar uma atitude mais violenta qualquer dia desses? Isso não quer dizer, claro, que eu acho que todos os homens que praticam assédio de rua também são estupradores – ou seriam estupradores, se tivessem a oportunidade. Mas a ameaça de violência está sempre presente e é principalmente através dela que o assédio de rua funciona como um dispositivo de poder e controle.
Além disso, ao nos constrangerem com esse tipo de abordagem, esses homens estabelecem que o seu direito de manifestar abertamente o seu desejo é maior do que o nosso direito de andar na rua sem ter o nosso espaço, dignidade e intimidade violados e isso, por sua vez, reforça o poder que os homens exercem sobre as mulheres. Isso explica muito bem por que, quando uma mulher se irrita e revida, o cara fica bravo e deixa de usar a voz mansa para partir para intimidação descarada com os clássicos xingamentos destinados somente à mulheres que não se comportam: vadia, puta, vaca, piranha, mal-comida. Às vezes, se impor contra um assediador pode render muito mais que um xingamento chulo, como no caso da menina que teve o seu braço quebrado quando recusou os avanços de um deles na balada; ou da menina que foi atropelada quando tentou fugir de assediadores no ônibus; ou até da mulher que foi esfaqueada no rosto quando não respondeu de um jeito favorável a um assédio na rua. A revolta por parte desses homens quando as mulheres não reagem da forma que eles querem, apesar de chocante, não chega a ser surpreendente – afinal, quem domina não gosta nem um pouco de ter o seu poder contestado, muito menos se quem o contesta faz parte do grupo dominado.
Sugestão de bibliografia complementar: todas as cenas de Game of Thrones com o rei Joffrey.
E é exatamente porque assédio de rua tem muito mais a ver com poder do que com sexo, que é tão importante que ele acabe. É através dele, afinal, que as mulheres são constantemente monitoradas e controladas, pois é ele quem dita o quão seguras podemos nos sentir; os horários que podemos sair sozinhas; o que vestiremos; como iremos; como vamos nos comportar e o que vamos sentir. Enquanto esse controle e essa intimidação constantes continuarem acontecendo como se fossem nada demais, a nossa participação na vida pública continuará atravancada e a luta por igualdade entre os gêneros permanecerá fadada ao fracasso.
Que fique claro que eu não estou dizendo que os homens que praticam assédio de rua sabem conscientemente que essa é uma expressão de poder e dominação e se reúnem semanalmente para pensar em novas formas de oprimir as mulheres. Mas estou dizendo, sim, que o fato de eles se sentirem no direito de assediar uma mulher verbalmente na rua é resultado direto de uma cultura que prega incessantemente a objetificação e inferiorização da mulher – e que é, por sua vez, reforçada pelo assédio de rua. Por esse motivo é tão importante falar sobre isso, parar de chamar assédio e violência psicológica de cantada ou elogio, e revogar a licença que os homens recebem da sociedade ao nascer de agir como se o corpo das mulheres fossem seus por direito. Já passou da hora de as coisas mudarem.
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