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sábado, 12 de setembro de 2015

Luca Sinesi: “Dizer que casamento na infância não existe no Brasil é fechar os olhos”

Coordenador de pesquisa sobre casamento envolvendo menores de 18 anos afirma que é preciso discutir a questão nas escolas brasileiras

MARINA RIBEIRO

09/09/2015

Cerca de 88 mil meninas e meninos de 10 a 14 anos estavam em uniões consensuais, civis ou religiosas no Brasil, segundo o Censo de 2010. Dentre as mulheres 20 e 24 anos, cerca de 3 milhões casaram antes de completar 18 anos. O número é preocupante para os direitos das crianças e adolescentes brasileiros. De acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), da qual o Brasil é signatário, qualquer união (formal ou informal) que envolve uma menina ou um menino com idade inferior a 18 anos é internacionalmente conhecida como casamento infantil.

“Dizer que o problema do casamento na infância não existe no Brasil é fechar os olhos”, afirma o diretor de programas da organização Plan International Brasil, que foi um dos coordenadores de pesquisa do relatório Ela vai no meu barco: Casamento na infância e adolescência no Brasil, publicado nesta quarta-feira (9). Diferentemente de países como a Índia, por exemplo, por aqui as uniões são informais consentidas e envolvem adolescentes, em sua maior parte do sexo feminino, que já atingiram a puberdade. Ainda que o Código Civil proíba união de indivíduos com menos de 16 anos (com exceção, como casos de gravidez).

A prática não costuma ser discutida no país como sendo um problema, porém traz consequências às jovens envolvidas que, em geral, abandonam a escola, não entram no mercado de trabalho, tornam-se mães precocemente e entram em relações controladas pelos maridos mais velhos. O relatório se baseia em uma pesquisa qualitativa, que entrevistou garotas de 12 a 18 ano e seus maridos (maiores de 20 anos), seus familiares e agentes de proteção à infância e adolescência no Brasil.

Com base nos resultados, o ativista dos direitos das crianças e adolescentes afirma que a solução passa por aceitar que a questão do casamento na infância é um problema no país e passar a contar com discussão de igualdade de gênero nas escolas para atingir meninas e meninos.

info casamento (Foto: epoca)

ÉPOCA - Que fatores contribuem para que o casamento na infância e na adolescência não seja considerado um problema no Brasil? Muitas vezes, ele é visto como um problema isolado, ou de comunidades rurais ou indígenas.
Luca Sinesi – Sabemos perfeitamente que a situação no Brasil não se compara com a situação na Índia ou na África subsaariana, onde vemos meninas de oito anos se casando por uma questão tradicional. No Brasil é diferente. São casos de casamento, em sua maior parte com meninas adolescentes. Mas de forma nenhuma acontece só em áreas rurais. Nossa pesquisa foi realizada nas regiões metropolitanas de Belém e de São Luís, capitais de Estados, então, isso acontece nas cidades. Dizer que o problema do casamento na infância não existe é fechar os olhos. Ele existe, é uma questão cultural e tem muito a ver com a desigualdade de gênero e da reprodução de valores culturais. O Brasil tem tudo para resolver isso, mas precisa ser enfrentado sem preconceitos, sem se fechar, mas olhando para a realidade.

ÉPOCA – Que elementos culturais contribuem para que o índice de casamentos entre meninas com homens mais velhos seja tão alta?
Sinesi – Existe um ambiente cultural em que a menina, muitas vezes chamada de “novinha”, se torna um objeto de desejo sexual, sobretudo dos mais velhos. Se você pensar nas músicas que tocam em rádios e mesmo na TV no horário nobre você vê como isso é recorrente e passa a ser considerado aceitável. Esse é o grande problema. A menina nasce e cresce em um ambiente social em que ela tem de brincar de boneca, tem que aprender a cozinhar e a lavar a roupa, enquanto os meninos não têm. Ela é formada dentro de um estereótipo muito forte de gênero. E o casamento na adolescência se torna uma possibilidade para isso. Existem também vários fatores ligados à realidade de cada menina, que incluem gravidez precoce, condição econômica, querer sair das casas dos pais e desejo de independência.

ÉPOCA – Quais as consequências de um casamento precoce?
Sinesi – A menina acaba entrando em um casamento, em que muitas vezes as relações são desiguais, no qual ela deixa de ir para a escola, deixa de ter oportunidade de trabalho, deixa de ter contato com outras adolescentes, provavelmente terá filhos muito cedo, e isso vai acarretar responsabilidades, e ela deixa de viver sua idade e seu mundo. Por vezes, também está sujeita à violência doméstica. Se combatermos o casamento na infância por meio de uma formação, também podemos dar mais oportunidades para meninos e meninas. Queremos conversar sobre gênero e desmistificar a questão da desigualdade para construir relações mais igualitárias.

ÉPOCA – Que ferramentas podem ser usadas para diminuir o número de casamentos na infância no Brasil?
Sinesi – Temos que apresentar a meninos e meninas que o casamento é uma possibilidade, mas não a única. Se você investir no estudo, na educação, na formação, no esporte, na cultura, você tem outras possibilidades. Mas é importante deixar claro que a escolha é sempre do indivíduo. Não queremos tomar uma atitude paternalista de proibir o casamento, porque não é por aí, apenas proibir não vai reduzir os números de uniões. Achamos que se tivermos mais oportunidades de educação, formação e informação, haverá muito menos casamentos na adolescência porque as meninas vão compreender de forma mais clara o que é o casamento na adolescência. A falta de informação é o que causa muitas vezes uma escolha errada. Qual seria um lugar bom para fazer essa formação? Na escola, na pública especialmente. porque é lá que encontramos meninos e meninas de todo o Brasil. Por isso, é fundamental incluir discussões sobre as relações de gênero nas salas de aula. O problema é que existe um movimento que quer evitar a discussão de gênero nas escolas e isso é muito perigoso. Porque queremos informar meninos e meninas sobre a necessidade de ter relações mais igualitárias, em que eles possam fazer escolhas com base não no sexo, mas no fato de serem humanos e assim terem possibilidades iguais na vida para fazerem suas escolhas.

ÉPOCA – Projetos de implantar discussões de gênero em planos educacionais estaduais e municipais enfrentaram muita oposição recentemente, em especial de setores religiosos. Qual o papel da religião neste fenômeno?
Sinesi – É preciso que as religiões entendam a importância do que eles chamam de ideologia do gênero, mas que nós chamamos de igualdade de gênero. A oposição se dá por falta de informação. Se você pergunta para qualquer pessoa o que é gênero, muitas vezes as pessoas não sabem explicar o que é isso. Falta muita informação. A coisa mais importante é discutir as questões e não colocar isso como algo de cima para baixo. A gente quer discutir isso, com opiniões diferentes, sejam religiosas ou não. Proibir essa discussão só faz mal às pessoas, só limita as possibilidades de desenvolvimento, em especial das meninas.

ÉPOCA – Qual o papel dos homens para combater o casamento na infância?
Sinesi – É fundamental incluir homens e meninos nesta discussão. Sem eles, não vamos avançar. Os meninos de hoje serão os homens de amanhã e também poderão se interessar em meninas mais jovens, vendo outros casos. Você percebe que quando um menino participa de oficinas sobre igualdade de gênero, de violência, ele muda em sua postura e se torna muito mais consciente de seu papel de forma mais respeitosa. Por isso, é importante incluir essa discussão nas escolas. Se conseguirmos confrontar e falar de gênero, casamento na infância, violência contra as mulheres, abusos, o fato de as mulheres ganharem menos do que os homens, e eles entenderem o papel igualitário que devem ter em uma relação, vamos construir uma sociedade melhor. É um debate central, como a luta contra a pobreza ou pela sustentabilidade. As novas relações de gênero são fundamentais para que as pessoas vivam de uma forma melhor e sejam mais felizes: meninos e meninas.
O diretor de programas da organização Plan International Brasil, Luca Sinesi, coordenou entrevistas a meninas, seus maridos e familiares na região metropolitana de São Luís (Foto: divulgação)
O diretor de programas da organização Plan International Brasil, Luca Sinesi, 
coordenou entrevistas a meninas, seus maridos e familiares na região 
metropolitana de São Luís (Foto: divulgação)

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