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sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Ganhadora do Nobel da Paz, Nadia Murad conta sua história como escrava sexual do Estado Islâmico

Nadia Murad levava uma vida simples no interior do Iraque, até que foi sequestrada pelo grupo terrorista e passou três meses sob o comando dos extremistas. Depois de ver sua família ser brutalmente assassinada, foi torturada e estuprada. Em entrevista à Marie Claire, ela dá detalhes de sua história de sobrevivência e militância, que acaba de lhe render o Prêmio Nobel da Paz

05.10.2018 | POR MARIA LAURA NEVES

Nadia Murad, a iraquiana que foi sequestrada pelo EI e passou três meses sob o comando dos extremistas (Foto: Omar Macchiavelli)
O prêmio Nobel da Paz de 2018 foi concedido, na manhã desta sexta-feira (5), em Oslo, a dois ativistas que lutam violência sexual. Uma das laureadas é Nadia Murad, jovem iraquiana de 25 anos que foi capturada pelo Estado Islâmico e usada como escrava sexual. Depois de conseguir escapar, Nadia se refugiou na Alemanha e se tornou uma das maiores vozes representantes das milhares de mulheres que sobreviveram ao cárcere sexual do grupo terrorista.
Nascida na região do Monte Sinjar, no norte do Iraque, Nadia só fala kurmanji, o dialeto local. Ela é membro da etnia yazidi, um dos maiores inimigos do Estado Islâmico (EI) no Oriente Médio. Por não seguirem Alá, os yazidis viraram alvo de sua fúria. Desde 2013, o EI faz investidas contra as minorias religiosas do Iraque e da Síria porque consideram infiéis os seguidores de outras crenças. Nesses ataques, matam homens e mulheres casadas e sequestram meninas para torná-las escravas sexuais.
Foi o que aconteceu com Nadia em agosto de 2014, quando viu sua família ser dizimada por um grupo de criminosos. Depois de três meses nas mãos da milícia, conseguiu fugir para um campo de refugiados. Livre, passou a viajar o mundo dando palestras e fazendo reuniões com políticos da Europa e dos Estados Unidos para chamar atenção para o genocídio que o Estado Islâmico está cometendo contra seu povo.
Coma advogada Amal Clooney, que a representará na ONU (Foto: Bernd Weiybrod - DPA - Zuma Press - Glow Images)
A militância lhe rendeu o prêmio Nobel da Paz de 2018 e o cargo de embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas. Nadia também já figuoru a lista das cem pessoas mais influentes do mundo da revista americana Time. Em setembro de 2016, a advogada especializada em direito internacional Amal Alamuddin Clooney, mulher de George Clooney, passou a representar Nadia na Corte Internacional de Justiça da ONU, em Haia, na Holanda. Em 2017, Nadia lançou livro contando sua história de vida, "Eu Serei a Última". Em um encontro com Marie Claire, Nadia contou sua história e como conseguiu fugir do ISIS. 
Marie Claire - Quando conheceu o Estado Islâmico?
Nadia Murad - A primeira vez que os vi foi quando tiraram os cristãos assírios de suas terras, no nordeste do Iraque, em 2013. Muitos se mudaram para a parte curda do país, onde eu vivia.
MC E qual foi seu primeiro contato com esses terroristas?
NM Foi quando tomaram nossa cidade. Dias antes, os vi na televisão, em uma reportagem. Fiquei com medo, estavam vestidos de preto, eram muito assustadores.
MC Seu vilarejo, Kocho, esperava ser atacado?
NM Não acreditávamos que isso aconteceria. Mesmo que eles estivessem percorrendo o Monte Sinjar [onde vivem os yazidis], não imaginávamos que nossos homens seriam assassinados e as mulheres e crianças sequestradas da maneira que foram.
MC Onde você estava quando tudo aconteceu?
NM Na noite de 3 de agosto estava em casa, dormindo. Minha mãe me acordou dizendo que o Estado Islâmico tinha atacado os yazidis no Sinjar. Começamos a nos preparar para fugir, mas não tivemos tempo. Logo chegaram e controlaram nosso vilarejo, tomaram as ruas. Kocho ficou tomado do dia 3 ao dia 15 de agosto. Durante esse tempo, o mundo inteiro sabia que havia quase 1.800 pessoas sitiadas, mas ninguém tentou nos ajudar. Nem o governo do Iraque, nem os curdos, nem o Ocidente. Além disso, os vilarejos vizinhos eram muçulmanos [e apoiadores do EI] e não nos abrigariam se pedíssemos ajuda.
MC Como foi a chegada deles?
NM Eram muitos homens, centenas, que chegaram em caminhões e escavadoras. Estavam muito armados, alguns mascarados e falavam línguas diferentes. Vieram mesmo para matar.
MC E o que se passou depois?
NM Primeiro roubaram todas as nossas coisas: dinheiro, joias, celulares e documentos. Até 15 de agosto, ficamos em casa – eles estavam rondando a cidade. Nesse dia, às 11h da manhã, nos levaram para a escola do vilarejo. As mulheres e crianças ficaram no andar de cima e os homens no de baixo. Fiquei com as minhas irmãs, minha mãe e sobrinhos. Depois, pegaram os homens e levaram para um terreno não muito longe dali, os encapuzaram e os mataram um a um. Nós vimos toda a cena da escola. Depois, pegaram as mulheres e as crianças e levaram para um centro de treinamento deles, no Solar do Sinjar.
MC Quandofoi a última vez que você viu sua mãe?
NM [suspira] Nesse dia, no Solar do Sinjar. Estava sentada na porta do centro e vi minha mãe dentro de um caminhão vermelho. Ela estava muito assustada, em pânico, porque estavam dirigindo muito rápido.
MC O que aconteceu com ela?
NM Naquela mesma noite, eles levaram para outro cativeiro, em Mosul. Algumas meninas que continuaram no Sinjar disseram que, naquela noite, eles pegaram 80 mulheres e 12 crianças e as obrigaram a andar. Depois, ouviram os tiros. Quando o Sinjar foi retomado, encontraram uma grande cova com 80 mulheres. Nós achamos que elas foram assassinadas.
MC Você foi vendida em Mosul?
NM Sim. Fiquei três dias em outro centro do EI, com minhas sobrinhas em uma sala – minhas irmãs estavam no mesmo prédio, mas não comigo. Havia marcas de mãos com sangue nas paredes do banheiro, feitas por mulheres que tentaram se matar. Como eu era a mais velha – as sobrinhas tinham 13 e 15 anos –, elas me viam como uma protetora. Quando eles [os compradores] chegaram, elas se agarraram a mim. [pausa e chora]
MC Quer interromper a conversa?
NM [suspira e enxuga as lágrimas] Não, tudo bem, vamos seguir.
MC O que aconteceu então?
NM Primeiro chegou um homem que queria me levar. Ele era muito grande, gordo, com barba e cabelos compridos. Fiquei com muito medo. Me atirei aos pés de outro homem que estava com ele, implorando que me levasse. Esse segundo homem, que era um comandante, um líder entre os terroristas, me pegou. Mas o homem grande levou minhas sobrinhas com ele [pausa]. Ele mandou eu esperar no jardim porque ainda havia 18 meninas que estavam sendo vendidas. De lá, podia ouvir os gritos de desespero delas. Naquela noite, 63 mulheres foram distribuídas aos terroristas, as mais novas tinham 9 e 10 anos.
MC Você sabe o que houve com as meninas da sua família?
NM [suspira] Não no momento. [O tradutor interrompe a entrevista para dizer que Nadia vive com uma irmã na Alemanha e que duas semanas antes ela ficou sabendo que uma de suas sobrinhas tinha morrido nas mãos do EI, ao tentar  fugir do cativeiro, e que a outra ficou gravemente ferida, com o rosto desfigurado, em uma explosão. Ele pede que Marie Claire não entre nos detalhes dessa história porque Nadia não conseguiria se recuperar da emoção.]
MC Para onde você foi levada?
NM Para a casa desse comandante. Ele tinha uma família, que não conheci. Numa noite escura, ele me obrigou a me vestir e me maquiar e fez o ato [sexo]. Mas nós, escravas sexuais, não pertencíamos a eles como indivíduos. Sempre nos diziam que éramos propriedade do Estado Islâmico. Depois de nos sequestrar e estuprar, eles nos passavam para outra pessoa.
MC Você tentou fugir antes de finalmente conseguir escapar?
NM Sim, pulei de uma janela alta. Na primeira vez, fui capturada.
MC Foi castigada?
NM Sim. Eles me colocaram em um quarto escuro com seis homens, me bateram e estupraram. E continuaram praticando crimes comigo até mesmo quando estava inconsciente.
MC Como conseguiu fugir?
NM Um dos homens esqueceu a porta destrancada. Corri para longe. A maioria das casas próximas aos centros do EI é de seus apoiadores. Essas famílias têm luz elétrica, que é fornecida pelos terroristas. A casa onde pedi ajuda estava escura. Eles me abrigaram e é só por isso que estou aqui hoje. Num primeiro momento, me deram um telefone e disseram que podia ligar para quem eu quisesse. Depois, me ajudaram a atravessar a fronteira.

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