por Pedro Alexandre Sanches — publicado 16/09/2018
A trajetória da compositora num terreno historicamente dominado pelos homens
“Eu não fazia concorrência com ninguém, era uma menina brincando no playground dos meninos”, diz a autora de Clareana
Se ela quisesse arranjar um marido, talvez não tivesse escolhido a profissão de compositora. Mais ou menos isso dizia aos 20 anos, em 1968, a artista carioca Joyce Moreno, na primeira canção do primeiro LP, batizada Não Muda Não.
Passado meio século, com 70 anos, Joyce volta àquele assunto fundador no álbum 50(Biscoito Fino), em que regrava faixa por faixa, com a linguagem pop-soul-bossa-jazzística que acumula nos anos 2010, o álbum inaugural, então denominado Joyce, sem o sobrenome que se incorporaria à alcunha artística apenas em 2009.
Passado meio século, com 70 anos, Joyce volta àquele assunto fundador no álbum 50(Biscoito Fino), em que regrava faixa por faixa, com a linguagem pop-soul-bossa-jazzística que acumula nos anos 2010, o álbum inaugural, então denominado Joyce, sem o sobrenome que se incorporaria à alcunha artística apenas em 2009.
Se eu quisesse arranjar um marido/ não tinha escolhido de te adorar/ ia ser mais castigo que prêmio/ um homem boêmio pra eu sustentar/ mas por favor, eu não quero te mudar, dizia (e diz) Não Muda Não, que poderia ser classificada, há 50 anos ou hoje, como freudiana (outra faixa da época se chamava Superego) e feminista.
Não era algo banal para 1968, o ano do AI-5. “As meninas da minha geração, as garotas de Ipanema, eram preparadas para ser ‘exatamente essa coisinha, essa coisa toda minha que ninguém mais pode ser’, para casar e ter aquela função na vida”, afirma em entrevista a CartaCapital, citando dizeres do poeta bossa-novista Vinicius de Moraes na francamente machista Minha Namorada (1964).
“E eu já sabia que não era isso que eu queria. Não Muda Não era uma declaração de princípios de uma menina bem marrenta”, ri.
Vinicius, um dos primeiros padrinhos musicais da jovem autora que surgia como coadjuvante no ciclo dos festivais da canção, chegou a chamá-la de “feminista” à época, ao mesmo tempo que escrevia chistes tipicamente machistas (“além do mais, com aqueles olhos verdes e aquela graça toda...”) no texto da contracapa do disco de partida.
“Eu não sabia nem o que era feminismo. Estava só escrevendo no feminino singular e achava que era muito natural. Mas, devido ao forrobodó todo que aconteceu, eu me dei conta de que não era ainda o momento”, diz.
O “forrobodó” incluiu reprovação ao fato de ela usar a expressão “meu homem” na letra de Me Disseram. “Não se usava falar na primeira pessoa do feminino. Ninguém fazia isso.”
Tentando elogiar, um crítico musical de 1968 escreveu derrapada explicitamente misógina. “Disse que eu fazia ‘grande música, difícil de acreditar que tenha sido feita por mulher’”, ela ri.
O riso não é solto. A trajetória não foi retilínea para quem preferia compor, cantar, trabalhar a ver a gente casado, vivendo amarrado, sem se gostar. No primeiro momento, poucos intérpretes encamparam suas composições, casos de Marília Medalha (com Três Cavaleiros, em 1969), Elis Regina (Copacabana Velha de Guerra, em 1970) e Evinha (Abrace Paul McCartney por Mim, 1970), e nos anos seguintes Célia, Simone e Wanderléa, entre poucas outras, quase exclusivamente mulheres.
Depois de dois álbuns de composições próprias e de lançar (num compacto de 1971 hoje desaparecido) o futuro épico do Clube da Esquina mineiro de Milton Nascimento Nada Será Como Antes, Joyce passou cerca de uma década distante do olho público.
Nesse intervalo, contrariando a autoprevisão de Não Muda Não, casou-se com o músico Nelson Angelo, ligado ao Clube da Esquina, com quem teve duas filhas (as hoje cantoras Clara Moreno e Ana Costa). Por que mulheres não se destacavam no clube mineiro? “Milton era a musa. É um grupo muito de meninos, rolava uma certa misoginia”, atiça.
Em 1972, gravou um disco em dupla com o marido, em que inseriu apenas uma composição de punho próprio (Meus 20 Anos). Em 1976, a partir de edição italiana, publicou Passarinho Urbano, um disco só de intérprete, em composições de autores (homens) assediados pela censura militar, como Chico Buarque, João Bosco e Aldir Blanc, Edu Lobo, Zé Keti, Milton (além de uma única criação própria, Passarinho, sobre versos de Mario Quintana).
Também em 1976, Joyce gravou o que seria um álbum de volta da compositora, mas que ficaria inédito até 2009, quando, enfim, foi lançado pelo selo inglês FarOut. A faixa Nacional Kid zoava suavemente a condição masculina: Ele é um rapaz brasileiro/ macho, brigador e cabreiro/ (...) sua identidade secreta é brasileiro/ ‘mulher minha não mexe com essas coisas, não,/ tem que aprender a obedecer o seu patrão’.
Em 1977, em Nova York, a compositora secreta gravou Natureza, um disco inteiro orquestrado pelo maestro polonês-alemão Claus Ogerman, que à mesma época orquestrava o histórico álbum Amoroso para João Gilberto.
O trabalho permanece inédito até hoje. “Nunca foi lançado, porque Claus não quis”, ela explica. “Muitas gravadoras de vários países tentaram comprar esse tape dele. Agora ele também morreu, e a família diz que não sabe onde está o tape.”
A gravação incluía as primeiras versões de Mistérios (um fogo queimou dentro de mim/ que não tem mais jeito de se apagar, encampava), que acabou lançada por Milton no Clube da Esquina 2 (1978), e Feminina, que viraria carro-chefe da reentrada triunfal da compositora, pela multinacional EMI-Odeon, em 1980.
Joyce já estava então a bordo do sucesso de Clareana (para as filhas Clara e Ana) no festival MPB 80 da Rede Globo e sob o vento protofeminista da série Malu Mulher, com Regina Duarte, e do especial de cantoras Mulher 80, ambos da Rede Globo. Nesse levante que acompanhava a legalização do divórcio no Brasil, Elis gravou Essa Mulher, MariaBethânia interpretou Da Cor Brasileira (1979) e Fafá de Belém recuperou o “meu homem” de Me Disseram (1980). Os ventos pareciam mudar, e havia lugar para o testemunho explicitamente feminino da compositora sem sobrenome.
Mas não exatamente. Joyce queixou-se da apropriação de sua gravação de Clareana pela mesma EMI-Odeon, num disco da cantora Sonia Mello. O processo custou retaliação. “Fui tida como rebelde. Fiquei na geladeira durante alguns anos. Fui banida, literalmente um boicote. Muitos anos depois fiquei sabendo o que aconteceu. Houve uma reunião em alto nível, de presidentes de gravadoras, em que disseram ‘ninguém mais contrata, para servir de exemplo, não abrir precedente’.”
A revanche demorou menos desta vez. Em 1983, a artista “marrenta” lançou Tardes Cariocas de modo independente, por um selo próprio batizado Feminina. O LP foi parar no Japão e criou o vínculo que perdura até hoje, de idolatria por Joyce especialmente no Japão e na Inglaterra, e de intensa e incessante produtividade da compositora, sem depender da intermediação nativa.
“Agradeço a todos eles, porque foi muito bom por esse lado”, provoca os hoje desempregados chefões de multinacionais fonográficas locais.
“Tem hora que acho que ficar velha é uma coisa sensacional, porque as pessoas começam a valorizar um monte de coisa que você fez lá atrás e ninguém dava a mínima. Falam ‘Joyce é uma compositora do nível de um fulano de tal’, e aí citam os grandes nomes da MPB.
É engraçado, porque durante esses anos todos nem os meus colegas se davam conta disso. Eu não fazia concorrência com ninguém, era uma menina brincando no playground dos meninos”, reflete.
Desde os anos 1970, Joyce vive e trabalha com o baterista Tutty Moreno, de quem acabou por herdar o sobrenome artístico, quando ficou penoso localizá-la apenas com o prenome pelas ferramentas de busca pela internet. Apesar da conservação da tradição masculinista, a relação persiste porque é horizontal, segundo ela.
“Homem que não tem medo de mulher é espetacular. No ambiente musical, quando uma mulher aparece muito, às vezes fica difícil a relação entre casais. Tutty é o homem avant la lettre, já sacando essas questões que as novas gerações de homens hoje estão descobrindo.”
A homenagem a si própria em 50 é acrescida de duas canções inéditas, Com o Tempo(com o tempo fui ficando mais moça/ mais olhos, menos onça), em parceria com Zélia Duncan, e A Velha Maluca, dela com ela. A velha maluca é doida/ a velha maluca é sábia/ a velha maluca não sabe o que faz, brinca o samba-jazz moreno, suingado, que traz à pauta de modo bem-humorado o vespeiro do envelhecimento feminino.
“É uma outra próxima questão”, preconiza. “A mulher sofre demais com a escravidão da beleza. Na verdade, a velha maluca soy yo, né? Fiz para mim mesma. Sou minha própria musa e estou totalmente no sujeito de mim mesma”, afirma a autora de Não Muda Não, 50 anos mais tarde, casada consigo própria.
Os cérebros femininos do centro-oeste
Se era árduo compor no feminino a partir das areias de Ipanema, no Rio de Janeiro, outras autoras musicais brasileiras enfrentaram paisagens mais bravias e camadas adicionais de dificuldades. É o caso de Lucina Carvalho, mato-grossense de Cuiabá conhecida profissionalmente apenas como Lucina, cuja primeira parceira, na era dos festivais que revelaram dez entre dez astros da MPB universitária, foi Joyce.
No início dos anos 1970, Lucina formou com a parceira (carioca) Luhli uma dupla de autoras e cantoras de músicas ardentemente femininas, que não frequentaram muitos holofotes, mas são responsáveis por marcos históricos como O Vira e Fala (ambas de Luhli), lançados em 1973 pelos Secos & Molhados, e, em dupla, Bandolero (1978) e Eta Nóis (1984), ambas gravadas pelo conterrâneo (sul)mato-grossense Ney Matogrosso, ex-Secos & Molhados.
“Não é bem o mundo que a gente está vivendo, esse em que o homem saber fazer a música e a mulher serve para adornar e para cantar aquela música, em que a mulher pode aparecer como cantora, mas não como uma pessoa com ideias”, contesta Lucina, que desenvolve carreira solo desde 1998 e lançou há pouco o álbum Canto de Árvore.
Assim como na dupla com Luhli, sua obra se constrói como um relicário de música interior, às vezes interiorana (caso da propositalmente caipira Eta Nóis), muito pautada pelos elementos da natureza e pelos orixás afro-brasileiros.
Hoje com 67 anos, Lucina começou aos 17, como (apenas) cantora do Grupo Manifesto, em que sobressaíam Guto Graça Mello, futuro produtor musical da Globo e de Roberto Carlos, e Mariozinho Rocha, até hoje poderoso-chefão por trás das trilhas sonoras das novelas globais.
“Com a inteligência dele, Mariozinho virou júri do Flávio Cavalcanti, juntamente com o Guto”, rememora. “Guto é excelente arranjador. Mariozinho também, mas, realmente, virou um coxa gigante”, cutuca.
Antes que qualquer delas pensasse em se tornar compositora, Lucina encontrou na família Espíndola, em Campo Grande (MS), duas amigas musicais de vida inteira. “Estava viajando com a minha avó e pernoitamos na casa da maior amiga que ela tinha, que era mãe da Tetê e da Alzira.”
Hoje com 64 anos e cabelos assumidamente grisalhos, Tetê Espíndola se tornaria dínamo da chamada vanguarda paulistana, ao lado do paranaense Arrigo Barnabé e do paulista interiorano Itamar Assumpção.
O Pantanal e o Cerrado sempre estiveram nas composições da artista de voz aguda que desfrutou surto de popularidade em 1985, ao vencer na Globo o Festival dos Festivais, com a romântica Escrito nas Estrelas.
Formado com os irmãos Alzira, Geraldo e Celito, o grupo Lírio Selvagem foi o primeiro dos interioranos a seduzir uma multinacional, a Philips, em 1978. “Começamos a fazer esse som acústico, e em São Paulo era o auge da discoteca. Estávamos num outro lugar mesmo, vivíamos intensamente a pureza de falar sobre o amor com a natureza”, explica Tetê, que abraçou a urbanidade vanguardista e a tem alternado sempre com o canto de pássaros e de indígenas, predominante no mais recente CD, Outro Lugar.
“Meu canto tem essa coisa ancestral que vem do choro da índia. Convivi com isso também, em Cuiabá ia nas aldeias, ouvia música indígena”, conta, evocando mais um fator da distância cautelosa mantida por um Brasil que não quer conhecer o Brasil em relação aos sons do Centro-Oeste.
A irmã mais nova, Alzira Espíndola, atualmente com 60 anos, começou no Lírio Selvagem, virou Alzira E e hoje espera dissolver a identidade individual na banda Corte, em que é autora, cantora e baixista entre quatro rapazes, três deles integrantes da Bixiga 70, moderna big band paulistana de afrobeat.
“Eu sou de Mato Grosso do Sul, mas sou da parte ‘não’ de lá. Tenho essa dignidade de ser a parte do ‘não’ sempre. Não convivo com certas coisas, não aceito, não crio em função de certas coisas”, diz, explicando a preponderância do “não” no agressivo, roqueiro e vital álbum Corte.
“Não me interessa mais ser Alzira E. Eu quero ser Corte”, ela afirma, diante dos olhares apaixonados de parceiros intensamente inspirados pela vanguarda urbana dela e de Itamar Assumpção.
Com a liberdade criativa que priva com joyces, lucinas e tetês, Alzira fala de assunto tabu para a síndrome de adolescência eterna do rock-n’-roll (e, por que não?, da MPB): “Eu, hoje, como aposentada, vejo o quão difícil é. Isso não existe, é assumir que a pessoa não tem mais objetivo na vida”.
No palco, ela esbanja energia, seja no show de música caipira e fronteiriça que faz com a irmã Tetê, seja nas polcas-rocks e rocks-guarânias altamente poéticos do Corte. Cheguei/ e a chegada nem é lugar/ nem é morada nem é andar/ coração reconhece a praia/ a canção é dor que desmaia/ por acaso eu cantei a vaia que o outro me dá, raspa, rascante, nos versos do parceiro baiano Tiganá Santana, em Cheguei.
Nenhum comentário:
Postar um comentário