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sábado, 12 de janeiro de 2019

A apropriação dos conflitos no âmbito da Lei Maria da Penha

Carolina Assis Castilholi   1 de setembro de 2018
A Lei 11.340/2006, conhecida popularmente como “Lei Maria da Penha”, guiada pela finalidade de dar maior proteção às mulheres em situação de violência, trouxe um aspecto controverso quanto à discussão a respeito da ação penal nos crimes de lesão corporal praticada mediante violência doméstica e familiar contra a mulher.
Isso porque o artigo 41 da lei, ao prever que as disposições da Lei 9.099/1995 não se aplicam aos casos de violência contra a mulher, fixou o delito de lesões corporais decorrentes de violência doméstica como de ação penal pública incondicionada – entendimento que foi pacificado com a edição da súmula 542 do Superior Tribunal de Justiça, que acompanhou o entendimento do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4424.
Assim, uma vez que o procedimento nesses casos passou a prescindir da representação da ofendida, subtraiu dela o poder de escolha sobre a persecução ou não do acusado – e, portanto, a possibilidade de decidir ativamente acerca da melhor forma de solucionar o conflito em que se envolveu.

Contudo, em muitos casos a ofendida não deseja ver seu ex-companheiro punido, seja a fim de preservar filhos que tenham em conjunto, ou até mesmo por se reconciliarem após episódios isolados de violência e decidirem reatar o relacionamento, de modo que a punição criminal do agressor se torna uma nova vitimização para aquela mulher que já sofreu todos os danos oriundos da violência. Em ambos os casos, a vontade da mulher ofendida é absolutamente irrelevante para o início do procedimento ou mesmo para o seu desfecho.
Nils Christie (1977, p. 3-4) destaca a apropriação do conflito que acontece no sistema de justiça atual. O símbolo máximo dessa apropriação é o fato de que na maioria dos tribunais superiores as partes envolvidas nem sequer comparecem ao julgamento de seus próprios casos, e nos atos judiciais oficiais, em geral, as partes são representadas e têm poucas oportunidades de se expressar.
Participação plena no próprio conflito pressupõe elementos do Direito Civil; o elemento-chave num procedimento criminal é justamente que o procedimento é convertido de algo concreto entre as partes em algo entre uma dessas partes e o Estado.
A vítima é tão completamente representada que ela é retirada da arena para a maioria dos procedimentos, reduzida a um desencadeador do processo. A vítima perde seu caso para o Estado e então tem negado seu direito de participar em um dos mais importantes rituais de sua vida. (CHRISTIE, 1977, p. 3)
No entendimento de Chirstie (1977, p. 8-9) as decisões sobre a relevância e sobre o peso do que é considerado relevante deveriam ser trazidas de volta para decisões livres nos tribunais, permitindo que as partes decidam o que consideram relevante. E isso é exatamente o que deve acontecer se a vítima for reintroduzida no caso.
A atenção centrar-se-á sobre as perdas da vítima. Isso leva a uma atenção natural quanto à forma como tais perdas podem ser suavizadas e a uma discussão sobre a restituição. O ofensor tem a possibilidade de mudar sua posição de ser um ouvinte da discussão – muitas vezes altamente ininteligível – de quanta dor ele deve receber, para a de um participante em uma discussão de como ele poderia melhorar a situação.
Baratta se coloca de forma semelhante a Christie quanto à posição da vítima no sistema de justiça penal, ao indicar “a quase total expropriação do direito de articular seus próprios interesses”.

Privatização dos conflitos

O autor afirma que “resulta injustificada a pretensão do sistema penal de tutelar interesses gerais que vão além dos da vítima” (BARATTA, 1987, p. 12-13), remetendo ao conceito de “privatização dos conflitos” e defendendo a ideia de sua reapropriação, ao considerar as possibilidades de substituir a intervenção penal pelo direito restitutivo e por acordos entre as partes em instâncias comunitárias de reconciliação (BARATTA, 1987, p. 17).

Conflitos e Lei Maria da Penha

Zaffaroni (2003, 384-385), por fim, afirma que
No [modelo] punitivo a vítima fica de lado, ou seja, não é considerada pessoa lesionada, mas sim um signo da possibilidade de intervenção do poder das agências do sistema penal (que intervém quando quer, assim como atua sem levar em conta a vontade do lesionado ou vítima). O pretexto de limitar a vingança da vítima ou de suprir sua debilidade serve para descartar sua condição de pessoa, para tirar-lhe a humanidade. A invocação à dor da vítima não é senão uma oportunidade para o exercício de um poder que a respectiva seletividade estrutural torna bitolado e arbitrário. (…) A história da legislação penal é a história de avanços e retrocessos no confisco dos conflitos (do direito lesionado da vítima) e da utilização desse poder confiscatório, bem como do enorme poder de controle e vigilância que o pretexto da necessidade de confisco proporciona (…).
Ao desconsiderar a vontade da vítima, o sistema processual penal toma para si o controle do caso, sob a alegação de protegê-la de ameaças ou dissuasões que dificultariam sua denúncia. Desse modo, em vez de priorizar a oferta de condições para que a vítima manifeste espontaneamente seu posicionamento, o Estado faz uso de sua autoridade para excluir a ofendida de um procedimento no qual ela tem papel central.
Ante o exposto, resta evidente que para proteger efetivamente as vítimas de violência doméstica e familiar e resguardar as mulheres de toda forma de opressão, como previsto no §1° do artigo 3º da lei, é necessário priorizar sua vontade, dando a elas suporte – com medidas protetivas e de assistência – para uma tomada de decisão livre; e assim, permitir à vítima, quando for o caso, encerrar uma situação que apenas lhe provoca mais sofrimento.

REFERÊNCIAS
BARATTA, A. Princípios do Direito Penal mínimo para uma teoria dos Direitos Humanos como objeto e limite da lei penal. Buenos Aires, p. 623–650, 1987.
CHRISTIE, N. Conflicts as property. The British Journal of Criminology, v. 17, 1977.
ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N. Direito Penal Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v. 1

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