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terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Apesar de evolução, publicidade ainda reforça estereótipos sobre a população negra, aponta estudo

Pesquisa mostra que mercado da publicidade no Brasil passou a investir em maior representação, mas ainda precisa melhorar
A população negra representa 54% dos brasileiros. Ainda assim, o grupo é um dos menos representados na publicidade e na mídia. De acordo com o estudo TODXS – Uma análise de representatividade na publicidade brasileira, feito pela agência publicitária Heads em parceria com a ONU Mulheres, a publicidade brasileira ainda reforça estereótipos e continua a não representar a real diversidade da sociedade. Esse é o caso de Núria Kiffen, de 22 anos. Nascida em Angola e criada no Brasil, a atriz conta que quase desistiu da carreira por não se enxergar nas telas. “Pensei em desistir, pois olhava para os lados, ligava a televisão, assistia a novelas e publicidades e não me via representada”, contou. Kiffen só retornou à profissão recentemente, com a ajuda de um coletivo negro. “Estou em processo de empoderamento, muito por influência de mulheres negras que frequentemente falam na internet”, relatou.

De acordo com o estudo, que ocorre a cada seis meses e que, atualmente, está na sétima onda, há de fato um impacto efetivo das discussões sobre igualdade de gênero e raça na publicidade brasileira, mas o avanço ainda está longe de representar o ideal. “As discussões estão tendo um impacto efetivo na comunicação das marcas, mas, por outro lado, ainda estamos muito distantes de um ideal de equidade e representatividade da sociedade brasileira como um todo. Até porque 55% da população brasileira se declara negra”, contou Bárbara Ferreira, gerente de planejamento da Heads.
Foram monitorados 2.149 comerciais veiculados nos canais de televisão de maior audiência do país durante uma semana. O melhor resultado foi entre as protagonistas negras, que chegou a 25% de participação nas peças publicitárias. “Esse é um dado que celebramos porque, em relação à primeira onda, a representatividade da mulher negra era de apenas 4%. Esse é um dado que mostra que existe, sim, um processo de evolução e mudança, mas que acontece em uma velocidade menor do que esperávamos”, relatou Ferreira.
Em relação aos homens, o salto foi menor: de 1% na primeira onda para 13%. A pesquisa mostrou que o número de atores negros em papéis coadjuvantes é muito maior do que em papéis de destaque. Para a gerente da agência, um dos fatores para a disparidade entre homens e mulheres está no fato de que alguns movimentos de empoderamento, protagonizados por mulheres, tiveram impacto direto na representatividade da comunicação de algumas indústrias. “O movimento de empoderamento feminino trouxe discussões e se tornou uma pauta que acompanhou também os movimentos de discussão do empoderamento da mulher negra de fato”, contou.
Outro ponto do estudo foi a permanência dos estereótipos na publicidade. Apesar de o número de comerciais que empoderam ser maior do que os que estereotipam, ainda há um grande número de estereótipos, especialmente no âmbito feminino. Ferreira conta que a mulher negra é três vezes mais estereotipada que os homens. “Quando a pessoa recebe 5 mil mensagens por dia, ela não tem condições de refletir sobre todas essas mensagens. A publicidade interfere na maneira como percebemos o que é bonito, feio, sobre nossa própria realidade e sobre como a julgamos”, defendeu.
Para o mestre em comunicação e cultura da Universidade de São Paulo Carlos Augusto Martins, a imagem do negro na publicidade está ligada a estereótipos clássicos, como como o trabalhador braçal, o atleta ou a mulata sexualizada. Para o pesquisador, essa visão teve origem no século XIX, quando o negro figurava na publicidade sendo vendido como mercadoria ou ainda nos anúncios de fuga. “Nos últimos anos, é possível notar uma diminuição da publicidade ligada a tais estereótipos, o que não significa que a imagem do negro passou a ser valorizada. Em larga medida, nos anúncios em que o negro não aparece estereotipado, acaba tendo uma imagem meramente neutra”, afirmou.
Martins aponta que a publicidade, assim como outros segmentos da mídia, acaba por atuar na retroalimentação do racismo, o que ajuda a refletir o preconceito presente na sociedade. ”O ideal seria uma publicidade que desse visibilidade à verdadeira composição racial da população brasileira, deixando de perpetuar a imagem do branco como padrão ideal de sucesso e beleza”, apontou.

Equipe da produtora Tela Preta Foto: Instagram / Reprodução
Equipe da produtora Tela Preta Foto: Instagram / Reprodução

Para o pesquisador, é preciso que haja maior presença de profissionais negros nas agências de publicidade, além de uma mudança na postura ética em relação à questão social. “A dimensão humana do negro enquanto cidadão, em geral, é deixado de lado. Desde a década de 90, já se provou que a população negra é um mercado consumidor importante. Mas a publicidade não mudou. Isso demonstra que o racismo no meio publicitário está mais além da questão de consumo. Existe um componente ético que sempre é desprezado”, relatou.
Para a professora de publicidade da Universidade de São Paulo Clotilde Perez, o elemento deixado de lado pela publicidade é a subjetividade. Perez defendeu que há, de fato, mais negros na publicidade, mas que o crescimento é da presença do negro como representante de si próprio, como quando negros fazem campanha de shampoo destinado aos cabelos negros ou quando mulheres negras veiculam sua imagem em anúncios de maquiagem para mulheres negras. “O negro é ainda legi-signo dele próprio e não 'do humano'. Ele é representante do humano, mas apenas de um tipo de humano: o humano negro”, argumentou.
Perez mencionou que a publicidade deve contribuir para a construção de uma sociedade melhor, já que tem a responsabilidade de fazer avançar as relações e de elevá-las a patamares de uma cidadania plena e irrestrita a todos. "A publicidade no Brasil é um caminho privilegiado para esta conquista, mas 'insiste' em não assumir esse papel”, afirmou.
Para a professora, é preciso que as leis sejam aperfeiçoadas, mas também que haja a conscientização de anunciantes, agências e de todos os envolvidos no planejamento, criação, execução, veiculação e pesquisa em publicidade. “O que vemos é uma exacerbação do individualismo em todas as esferas e a incapacidade de enxergar o outro como um igual, ou seja, uma incapacidade de refletir sobre as consequências de suas criações”, contou.
Foi justamente pela busca de maior representatividade na mídia que surgiu o canal Tela Preta. No ar desde novembro desse ano, o objetivo é atender às demandas que o mercado não consegue suprir, criando um conteúdo mais horizontal e que atenda a todos. “Quando falamos em representatividade, não falamos apenas de protagonismo como ator, mas nos quesitos roteiro, produção e direção”, contou Licínio Januário, diretor do canal. Atualmente em veiculação no YouTube, o Tela Preta se propõe a criar novas narrativas para o audiovisual. “Não queremos mais ver um negro com armas, queremos ver o negro falando sobre outras coisas do cotidiano. A população precisa desse respiro”, defendeu Januário.
O diretor contou que toda a equipe do canal é composta por negros, desde a assessoria de imprensa até os apresentadores, roteiristas e produtores. Para ele, o lugar de fala que os negros têm atualmente foi reivindicado durante anos e está sendo conquistado. “Nós obrigamos o mercado a abrir. Esse mérito é nosso. Foi graças a nosso empoderamento intelectual e estético que o mercado começou a abrir os olhos para isso”, afirmou.
Para Januário, ainda há um longo caminho a ser percorrido. O diretor defende que a situação só começará a mudar quando as pessoas perceberem que os negros têm capacidade para assumir cargos de chefia e, principalmente, quando passarem a ser valorizados da mesma forma. “Se eu fosse dono de uma empresa e quisesse atingir as mulheres, eu colocaria uma mulher para estar junto comigo. Só assim a conversa seria horizontal. O mesmo acontece com os negros”, disse.
Uma das produtoras do Tela Preta é Núria Kiffen. A atriz, que quase desistiu da vida da profissão, só voltou a trabalhar na área porque viu no grupo uma oportunidade de ser representada. “Vejo meus e irmãs na correria diária e vejo poucas oportunidades. A conclusão disso tudo é que precisamos fazer o nosso, com nossos diretores negros, escritores, atores, formar nossa tela”, contou.

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