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sexta-feira, 2 de agosto de 2019

COM O PERDÃO DE DEUS

Por Edvan Lessa

A casa onde Violeta mora já não treme sob os gritos das irmãs com quem conviveu até a fase adulta, mas ela não admite o inteiro silêncio. O ar retém o cheiro do cachimbo da mãe e Violeta fuma o pacaia como se fosse para manter-se viva. Cada aresta lembra um acontecimento marcante da história da dona de casa de 39 anos e seus olhos se perdem entre passado e presente quando o assunto é maternidade.
“Ser mãe é bom. Pela companhia do filho, por tudo”, reflete Violeta, ao lembrar das duas gravidezes desejadas, aos 17 e aos 25 anos. “Mas tem momentos que a gente engravida que não…”, ela emenda, sem terminar o pensamento. A fala de Violeta tem alguns hiatos quando o assunto é aborto. Ao longo da sua vida reprodutiva, entre os anos 2000 e 2018, antes e depois dos filhos, ela descontinuou seis gestações. A primeira interrupção, há 18 anos; a mais recente, há sete meses.
“O ideal é que nenhuma mulher precise se submeter a um aborto. Pior ainda mais do que um. No entanto, existem inúmeras situações na vida de uma mulher nas quais ela pode ter uma gravidez não programada, indesejada e não quer levar a gravidez adiante”, ressalta Rosires Andrade, presidente da Comissão Nacional Especializada de Violência Sexual e Interrupção da Gestação Prevista em Lei, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). “Muitas vezes continuar a gravidez pode significar um fardo inaceitável para aquela mulher. Precisamos respeitar a vontade dessa mulher”, adverte. 
Hoje solteira, Violeta se separou do pai do seu filho mais velho por conta das traições do ex-parceiro. Passou cerca de 10 anos com um novo companheiro, quando veio a caçula, mas sofria constante violência física e rompeu após ele a trair, quase assassinar uma amante e fugir em seguida. “Logo no início da gravidez, ele queria que eu tirasse. Como eu não tirei, ele tentou me dar murro na barriga, isso com três meses de grávida. Só aos seis meses ele aceitou a filha”, conta.
Para Violeta, a decisão de prosseguir com a gestação de um companheiro que lhe deixava marcas roxas, principalmente no tórax, foi tão consciente quanto nos outros relacionamentos em que ela recorreu à interrupção da gravidez. A primeira delas, após um companheiro afirmar que romperia o namoro caso ela engravidasse. Violeta o amava muito.

Rota insegura

Sem um método contraceptivo eficaz, acompanhamento médico e sob a clandestinidade, Violeta buscou um contato na cidade onde reside. Na cidade natal, comprou misoprostol, o Cytotec. Seguiu, então, recomendações sem nenhum rigor científico, compartilhadas por mulheres próximas: jejuar e deitar com o quadril mais elevado do que a cabeça antes de ingerir ao menos três comprimidos por via oral e depois introduzir a mesma quantidade na vagina com um aplicador de creme ginecológico.
O misoprostol é o medicamento recomendado pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para interrupção da gravidez até 12 semanas, nos casos de aborto previsto em lei, isto é, gestação decorrente de estupro, risco de morte materna e feto anencéfalo. No Brasil, o único medicamento a base de misoprostol registrado junto a Anvisa é o Prostokos, da farmacêutica Hebron, que tem uso restrito a hospitais. O Cytotec, encontrado no mercado paralelo, não tem registro no país.
“O problema da ilegalidade é saber a procedência do medicamento bem como as doses contidas, pois ele não é vendido em farmácias; apenas hospitais credenciados o tem para uso. Ele promove fortes contrações uterinas, que descola o saco gestacional e provoca o abortamento”, esclarece Rosires, da Febrasgo.
 “Depois que descobri a gravidez, tomei remédio para perder, mas não sabia que estava com 6 meses. Meu namorado estava aqui na hora, então chamei ele e mostrei o que tinha acabado de fazer”, relembra Violeta. De acordo com ela, foi preciso repetir a ingestão dos medicamentos porque da primeira vez não fizeram efeito. O parceiro só voltou atrás do que havia dito quando viu Violeta ensanguentada, já com o feto nas mãos.
Ausência do Estado, relações de gênero abusivos, e uma série de decisões sem supervisão especializada, baseadas em conhecimento popular, resultaram na exposição de Violeta a tantas gravidezes indesejadas. Segundo Violeta, nenhum companheiro costumava se preocupar com a sua contracepção. Quando não tinha camisinha, ela não se sentia confortável em recusar uma transa e deixar o parceiro “no branco”, como ela define.
Para se ter uma ideia, há pelo menos cinco anos ela não vai a um ginecologista. Cerca de 20% das brasileiras acima dos 16 anos não vão ao ginecologista com regularidade – conforme pesquisa encomendada pela Febrasgo. O recomendado é uma vez ao ano.
As principais razões para isso, segundo o estudo feito em novembro do ano passado e divulgado em fevereiro deste ano, são o fato da mulher se considerar saudável em 31% dos casos, mesmo sem ter sido avaliada, e 22% delas acharem que não é importante ou necessário.
“É difícil eu ir ao médico, meus remédios são caseiros”, conta Violeta. Ainda de acordo com a dona de casa, os remédios contraceptivos foram suspensos após comentários de conhecidos acerca de possíveis riscos à saúde. Ela também não aderiu às injeções anticonceptivas com receio de engordar e não se submeteu à laqueadura por terem lhe dito que o procedimento poria fim à libido.
Para evitar a gravidez, passou a se precaver lavando o canal vaginal e a tomar água com sal imediatamente após as relações sexuais sem camisinha; a ingerir chás que antecipavam a menstruação e, segundo a dona de casa, limpavam o útero.
“Eu tomo chá de bom-pra-tudo, chá de boldo, chá de espinho cheiroso. Eu não ando sentindo dor no pé da minha barriga, não tenho corrimento, nem inflamação”, garante.
Estudos que obtém das mulheres suas experiências com o aborto apontam para o uso de chás, muitas vezes, tóxicos ao fígado ou ao rim, segundo Greice Menezes, pesquisadora do Musa, grupo de pesquisa sobre gênero e saúde do Instituto de Saúde Coletiva (ISC), da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Conforme a pesquisadora explica, os itinerários daquelas que podem pagar pelo aborto em clínicas de alto padrão, assim que suspeitam da gravidez, acaba sendo mais curto se comparado ao caminho das mulheres que se valem de beberagens abortivas para fazer descer a menstruação atrasada.
“Essas mulheres estão negociando uma certa desordem no corpo que pode ser regulada com o uso do chá para, depois, se não der certo, fazer o teste da gravidez, da farmácia ou teste sanguíneo; até a ultrassonografia, que vai definir a gravidez ou não”, elenca.

Insegurança

Segundo a última Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), divulgada em 2016, uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez ao menos um aborto na vida. A maioria fez aborto quando jovens, entre 20 e 24 anos, e hoje já tem filhos. Há, ainda, uma distribuição desigual do risco com a maior concentração entre as mulheres mais jovens, mais pobres, nortistas e nordestinas, negras e indígenas.
Nas pesquisas, ressalta a PNA, são altas as taxas de não resposta quando as mulheres são perguntadas sobre terem feito mais de um aborto: 15%, 2010, e 18%, 2016. Por isso, relatos como o de Violeta e de algumas de suas irmãs, nesta série, são raros.
No mundo são feitos mais de 25 milhões de abortos inseguros, isto é, 45% do total, segundo estudo da OMS. A maioria é realizada em países em desenvolvimento da África, Ásia e América Latina. Quando abortos são feitos de acordo com as diretrizes e padrões da OMS, o risco de complicações severas ou de morte é insignificante.
Cerca de 55% de todos os abortos de 2010 a 2014 foram conduzidos de maneira segura, isto é, foram realizados por profissionais da saúde treinados, usando métodos recomendados pela OMS e de acordo com a duração da gravidez. Quase um terço, 31%, foram “menos seguros”, realizados por um profissional treinado usando um método inseguro ou desatualizado, como a curetagem, ou por uma pessoa não treinada que, no entanto, utilizou um método seguro, como o misoprostol.
Após o aborto de Violeta, o relacionamento acabou e ela teve que lidar sozinha com as implicações da própria decisão. Ela não chegou ao hospital para fazer curetagem –  um procedimento para esvaziar o útero de resíduos que pudessem causar problemas à sua saúde –, recorrendo a uma bebida com álcool e diversos tipos de ervas chamada “meladinha”, que a mãe ensinou a fazer e recomendava para uso durante o resguardo após uma gestação. Não foram encontradas informações científicas disponíveis sobre a eficácia da bebida.


A partir do relato de Violeta, nenhuma contração provocada pelo Cytotec lhe é tão marcante quanto a memória de exibir o frasco com o feto para as pessoas que chegavam à sua casa, na época. “Eu não sabia o que fazer depois de ter abortado, então peguei um frasco, coloquei álcool e o deixei em cima do armário com o feto”, narra, com a voz embargada.
Passados três dias, e de ter percebido que dera luz a um menino, trocou o frasco de vidro por uma caixa de papelão. Dividiu com a irmã Rosa o segredo e, cúmplices, fizeram o sepultamento no local mais apartado de olhos não familiares e o mais próximo possível dos seus: O quintal da irmã.
De acordo com a antropóloga Débora Diniz, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e responsável pela PNA, o principal estudo sobre interrupção da gestação no Brasil, o aborto na clandestinidade implica em desumanização para mulheres como Violeta.  “A falta de suporte, de acesso à informação e de cuidados em saúde levam essas mulheres ao desespero, a ter de seguir uma decisão tomada pelo medo de ser descoberta e denunciada. Não é assim que nenhuma necessidade de saúde deveria ser enfrentada”, sublinha Diniz.
Na última semana de agosto do ano passado, dias após realizar a entrevista com Violeta, a dona de casa confidenciou, via rede social, que estava de resguardo porque havia abortado novamente. A gravidez interrompida veio após um envolvimento casual. Ainda segundo a dona de casa, era o primeiro mês da gestação e não foram necessários cuidados médicos. “Eu tomei meladinha para limpar o útero”, comentou.
 “É exatamente o fato de o aborto ser ilegal que leva as mulheres a abortar mais de uma vez”, afirma a professora Melania Amorim, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). “Quando o aborto é legalizado e elas procuram o serviço de saúde, entram no que chamamos de ‘rota crítica do aborto’ e são acolhidas, podem sair da situação de vulnerabilidade que provocou o abortamento e, principalmente, ter acesso a métodos contraceptivos de elevada efetividade, os quais são prescritos ou no caso do DIU [dispositivo intrauterino] inseridos já durante a internação”, recomenda.

Lar católico

Nascida em lar católico com uma mãe muito devota e contrária a decisão de abortar, Violeta sempre se viu livre para decidir sobre o próprio corpo, mesmo sem uma vivência no debate sobre feminismo. Embora reconheça a autonomia nas respectivas circunstâncias em que agiu na ilegalidade – isto é, perante a lei, contra os artigos 124 e 126 do Código Penal –, a dona de casa fala que cometeu uma série de erros.
Quando começamos a conversar sobre a sua história, os olhos marejados traduziam certa tristeza. Um relato específico, no entanto, esboçou o sentimento de culpa. Na crença de Violeta, o feto natimorto de seis meses, expulso do útero espontaneamente em 2015, após uma gravidez planejada, foi uma punição de Deus.
Para a socióloga Maria José Rosado, uma das coordenadoras da organização feminista Católicas pelo Direito de Decidir, há argumentos retirados da doutrina católica que permitem às mulheres decidirem por um aborto, recorrendo à sua fé, e não abrindo mão dela. “Discordamos das considerações da Igreja Católica e do Papa Francisco de que o aborto é um pecado”, expõe Rosado.
“Essa maravilhosa capacidade que só nós mulheres temos de fazer um outro ser humano coloca sobre nós a responsabilidade de fazer um outro ser humano quando de fato teremos condição de criá-lo com dignidade. Pecado é não tratar de forma digna essa capacidade que foi colocada em nossos corpos”, arremata.
O aborto sempre existiu e não é condenado na Bíblia, segundo a professora de Letras, mestre em Sagradas Escrituras, María de los Ángeles Roberto. Segundo María, o patriarcado eclesiástico se opõe ao aborto legal porque tenta proibir as mulheres de decidir sobre seus próprios corpos e desejos. “A expressão ‘a Bíblia diz’ ou ‘Deus diz’ é comum entre padres ou pastores. Eles usam isso para as mulheres obedecerem aos seus maridos ou aos seus superiores masculinos”, salienta.





MARÍA DE LOS ÁNGELES ROBERTO, 

mestre em Sagradas Escrituras
De acordo com a pesquisadora, a Bíblia contém histórias terríveis de estupro de mulheres ou uso de seus corpos como despojos de guerra. “Mas esses textos não são falados, ensinados ou pregados. Tudo o que pode ser um germe da libertação da mulher está oculto”, acrescenta.

Ainda conforme María de los Ángeles Roberto, biblicamente não há textos contrários ao aborto, então, essa questão deveria ser tratada pela igreja do ponto de vista pastoral, do cuidado, do acompanhamento, da atenção e do encaminhamento. Existem apenas dois textos na Bíblia que relatam situações de aborto, Êxodo 21:22-23 e Números 5:11-31, e nenhum deles com caráter punitivo para a mulher que aborta.

“Na primeira passagem fica nítido que no abortamento sofrido pela mulher, que foi envolvida na briga entre dois homens, não é considerado perda da vida, já que pode ser indenizado. Se fosse considerado assassinato de uma vida, seria pago ‘vida por vida’, pois o que valia era a Lei de Talião”, detalha. No segundo texto, ela diz, trata-se de um abortamento ritual. Se o homem desconfiasse que o filho não era dele, levava a mulher até o sacerdote que a fazia beber uma “água amarga” – abortiva, caso estivesse grávida – e ali mesmo a mulher poderia ser morta por ter traído seu marido.
“Veja: a vida do ‘bebê’ não valia, muito menos a vida da mulher, mas sim, a ‘honra’ do homem supostamente traído! Podemos seguir literalmente a bíblia?”, indaga Maria. Ainda de acordo com ela, não há determinação bíblica de quando a vida se inicia. “Há alguns textos em Salmos, Jó e Isaías que destacam como Deus nos conhece desde o ventre, mas em nenhum momento isso poderia ser utilizado como a caracterização da vida na concepção, pois no Pentateuco os recém-nascidos não eram considerados pessoas”, finaliza.

Filha e tristeza

Violeta mantém diálogo aberto com a filha sobre temas ligados à sexualidade e contribui para a prevenção da caçula tanto quanto pode; fala sobre os riscos de uma gravidez precoce e a alerta acerca das consequências do aborto inseguro para a mulher. Ainda assim, há um tempo antevê uma gravidez não planejada, já que a menina, aos 13 anos, já tem um namorado e vida sexual ativa.
Curiosamente, foram nos quatro meses que separaram a primeira da última entrevista para esta reportagem que o teste de farmácia confirmou a gravidez da filha de Violeta, Carmim. “Eu perguntei a ela o que ela queria fazer, se abortaria, mas a decisão dela e do namorado foram continuar com a gravidez e eu respeitei”, detalha Violeta.
Ao passo em que se reveza entre bicos como costureira e vendedora, e a filha concilia a escola com a maternidade e a venda de bilhetes de rifa, Violeta sabe do risco dela mesma ter que se submeter a uma nova interrupção insegura – ciente, no entanto, de que o fará sem abrir mão da própria fé. “Se eu precisar abortar, peço perdão a Deus e aborto”.

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