Correio
Por Edvan Lessa
O celular de Preta, 41 anos, emite um toque polifônico e não tem touch screen, o que a faz, invariavelmente, ser vista como alguém conectada ao passado. Acostumada a não receber sms úteis, a dona de casa vacila com o aparelho no dia da entrevista. Quando consigo contato, me diz: “Acho melhor falar desse assunto pessoalmente”. Mas devido à peregrinação entre Salvador e o Recôncavo, cuidando da sogra, é por chamada de voz que a artesã narra suas memórias perduráveis sobre aborto.
Ela abortou uma vez há quase 20 anos e, pouco depois, sofreu um aborto espontâneo. “A senhora se lembra do aborto que realizou?”, eu indago, numa primeira vez em que nos encontramos. “Ah, não dá para esquecer”, devolve, com um longo silêncio em seguida. Isso porque, ela me diria depois, o episódio foi marcado por uma tentativa arriscada, dolorosa e solitária de abreviar uma gestação não planejada.
Segundo o professor Rosires Andrade, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), quanto mais abortos, maiores os riscos de hemorragia, infecção com posteriores complicações como dor pélvica, infertilidade e até mesmo a morte da mulher. “Nos países onde o aborto foi descriminalizado ou legalizado, isso foi resolvido, pois assim as mulheres estão tendo acesso a um serviço hospitalar adequado e fazendo a interrupção da gestação conforme normas internacionais, baseadas em evidências científicas”, reforça.
Silêncio
Mais velha do que as irmãs Violeta e Anil, que já assistiram o aborto uma da outra, Preta afirma ter escolhido não falar com ninguém sobre a intenção de descontinuar a gestação, tão logo a descobriu. “Se eu fosse pedir opinião, ninguém ia deixar eu fazer, diriam que é crime, como mainha sempre dizia. Mas ninguém estava na minha pele…”, confidencia.
Olhar para a prática, no entanto, significa direcionar o olhar para onde o debate não está, no entendimento de Camila Mantovani, da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto. “O debate não é ser a favor ou contra a prática. Todos são contra, inclusive as mulheres que optam por isso”, acentua.
“O debate é: O que fazer diante da realidade de que uma proibição não tem diminuído o número de abortos e ainda tem matado as mulheres?”, problematiza.
Na visão de Débora Diniz, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, a reprodução de padrões considerados hegemônicos de moralidade influenciam o tom do debate sobre aborto. “Enquanto a pergunta persistente for sobre ser ‘a favor ou contra’ o aborto, não será possível acolher as razões íntimas e singulares de cada mulher, seu contexto familiar e sua saúde, que seguirão sendo urgências apesar de qualquer julgamento moral”, realça.
Revés
Mãe de dois filhos, Preta fez a laqueadura em 2003, um procedimento médico de esterilização para mulheres que têm certeza de que não desejam uma gravidez futura, após o caçula nascer. Aliás, ter um segundo filho, hoje com 15 anos, foi condição posta pelo médico para recorrer ao procedimento, sem precisar pagar. Uma vez que Preta não estava mais disposta a reviver o revés do aborto inseguro, planejou ser mãe para fazer a ligadura.
Esse procedimento de esterilização, segundo a legislação brasileira, está disponível na rede pública para as mulheres com mais de 25 anos ou dois filhos vivos. Se a mulher for casada, é necessário o consentimento do cônjuge. A lei atual proíbe a laqueadura durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.
De acordo com a professora Melania Amorim, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), as mulheres que abortam não têm uma percepção diferente de maternidade e muitas já são mães, apesar do julgamento da sociedade. “Muitas podem vir a engravidar e levar uma gravidez a termo [de 37 semanas a menos de 42 semanas completas de gestação] no futuro. O que ocorre é que naquele dado momento a gestação não se encaixa em sua perspectiva de vida e pode corresponder a um verdadeiro pesadelo quando não é planejada ou desejada”, denota.
O número de gravidezes não planejadas ou indesejadas, no entanto, ainda é grande no país. Com base na pesquisa nacional de demografia e saúde, feita pelo Ministério da Saúde em 2006, 46% das mulheres entre 15 e 44 anos tiveram uma gravidez não planejada, sendo que 18% foram não desejadas – situação mais frequente entre as mulheres menores de 20 anos. O Brasil segue a tendência mundial, já que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que no mundo ocorrem 56% de gravidezes não planejadas, uma das razões que podem levar as mulheres à decisão de interromper a gestação.
A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) mostra um perfil da mulher que aborta – católica, com filhos, em algum tipo de relacionamento estável – diferente do que se costuma imaginar. “Isso contraria o que o senso comum diz: que essa é uma mulher jovem, irresponsável, que exerce a sexualidade dela de forma leviana e que não usa contracepção”, expõe Greice Menezes, do MUSA, grupo de pesquisa sobre gênero e saúde do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
De acordo com ela, o número de abortos tem diminuído desde a década de 1990 porque as mulheres estão deixando de engravidar. No SUS, houve uma queda de 6,7% no número de internações por complicações de um aborto, passando de 225 mil em 2008 para 210 mil em 2017 e uma queda de 2,7% no número estimado de internações por aborto. Os dados foram extraídos de uma nota técnica emitida pelo Ministério da Saúde sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que discutiu, no Supremo Tribunal Federal (STF), a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
Ainda conforme o documento do Ministério da Saúde, entre 1992 e 2009 também houve redução do número de internações e complicações por aborto. A redução do número de hospitalizações foi de 41%; a redução na taxa foi de 53% e dos casos graves 69%.
Abandono
Preta morava em Salvador quando se relacionou com o motorista vizinho ao apartamento onde trabalhava como doméstica. A sua receita médica para adquirir o contraceptivo estava vencida, não conseguiu retirá-lo na farmácia e a camisinha não funcionou. Numa viagem ao interior, descobriu a gestação já no terceiro mês e então entrou em contato, por telefone, com o parceiro.
“Quando eu liguei, ele me disse que eu fizesse o que minha cabeça quisesse, que ele não iria assumir. Que ele não estava pronto para assumir e não queria”, reproduz Preta. “Como eu já estava no interior, eu fiquei de pé e mão quebrados, não podia voltar para Salvador porque ele me disse que não iria assumir”, relembra. Certa de que não teria uma criança sem pai, a artesã optou pela interrupção.
Conforme avalia Emanuelle Góes, do Instituto Odara, o abandono dos parceiros é uma realidade entre as mulheres negras e nordestinas que seguem sozinhas mesmo com a presença física do companheiro. “As mulheres que têm que decidir o uso de método contraceptivo, têm que organizar o planejamento reprodutivo e o planejamento familiar do casal”, esclarece.
Ou seja, cabe a mulher, no geral, se precaver e tentar negociar com o companheiro, ainda, um método para ele. “Então, nesse sentido, são as mulheres em geral que têm isso como uma responsabilização, que faz parte desse papel do feminino nessa leitura das questões de gênero”, completa.
Abandono
A situação de vulnerabilidade, segundo Preta, também pesou na decisão de interromper a gravidez. “Não tinha lugar para dormir lá em casa, não tinha o que comer, eu passava dificuldade. Eu grávida, sem o pai querer assumir. Eu dormia no chão, aí eu tive que tirar. Quem ia me querer grávida?”, indaga.
A conselheira Sandra Sposito, do Conselho Federal da Psicologia (CFP), alerta que associar a decisão do aborto ao abandono de um homem recai no estereótipo de que mulheres abortam porque não conseguem criar um filho sozinha. “Procurar uma causa relacionada à presença ou não de um parceiro é reduzir o fenômeno, que é muito mais complexo do que isso”, sublinha. “O aborto é uma escolha da mulher derivada de uma série de motivações que estão na ordem afetiva, socioeconômica e dos projetos de vida dela”, diz.
SANDRA SPOSITOConselho Federal da Psicologia
Riscos
Foi após juntar as economias do trabalho em Salvador e o que passou a ganhar em um novo emprego no Recôncavo que Preta conseguiu comprar seis comprimidos de misoprostol. Ingeriu três medicamentos, introduziu outros três utilizando um aplicador ginecológico e esperou surtir efeito. Ela lembra de sentir fortes dores antes de expulsar o feto dentro do banheiro da casa onde trabalhava e de ficar ensopada de sangue logo em seguida.
Por si só, o aborto não apresenta complexidade técnica, segundo nota do Ministério da Saúde sobre o assunto. No entanto, a clandestinidade expõe as mulheres a situações como a vivida por Preta, que desmaiou ao caminhar 400 metros depois de abortar. De acordo com o seu relato, chegou a ficar em estado grave no hospital, internada por três dias.
Se por um lado há riscos de usar um medicamento que não se sabe o que é, do placebo até substâncias que podem ter efeito prejudicial à saúde das mulheres, há orientações dadas por pessoas não especializadas que expõem as que decidem abortar a perigos banais. Nos três dias que antecederam a compra do Cytotec, além de não se alimentar, Preta recorreu a vários chás e combinações supostamente abortivas, que não funcionaram.
“Tomei chá de alumã com boldo, fel podre de boi, campari com sonrisal, Coca-Cola com sonrisal… O que me ensinavam eu tomava”, enumera. Segundo Rosa Domingues, do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), alguns estudos relataram desfechos negativos para a saúde mental em mulheres que tentaram, mas não conseguiram interromper a gestação – o que não foi o caso de Preta. “Esses desfechos negativos foram verificados tanto durante a gestação, quanto após o parto, depressão pós-parto”, expõe.
Apesar disso, o CFP afirma a impossibilidade de estabelecimento de relação unicausal entre o aborto em si e saúde mental das mulheres, contrariando a ideia de que o aborto produz adoecimento psíquico. Conforme expõe o conselho, a avaliação científica feita pela Associação Americana de Psicologia (APA) indicou limitações metodológicas de estudos que tentam inferir sobre a relação entre aborto e saúde mental.
Atualmente, Preta vive longe das suas irmãs, mas não deixa de visitá-las. Quando isso não acontece, a falha no celular distancia as vozes e a faz ser considerada alguém distante da família. O filho mais velho, de 23 anos, o que lê as mensagens quando surgem, lhe deu um aparelho moderno para facilitar a comunicação de Preta, mas ela não escolhe somente continuar reservada. “É tanta coisa no meu juízo que eu não quero aprender a usar”. E desliga.
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