Por Edvan Lessa
O esposo de Oliva, 38 anos, costuma se irritar quando ela conversa com alguém acerca dos relacionamentos anteriores à união dos dois e, mesmo na ausência dele, a dona de casa abafa as memórias e se furta de falar da intimidade. Sem um diálogo aberto com a mãe sobre temas considerados tabu, a mais velha descobriu uma gravidez, aos 19, cogitou interrompê-la e Oliva foi a última da família a saber.
Ao mesmo tempo em que reconhece a importância de orientar as filhas a partir das próprias experiências, Oliva menciona o constrangimento de conversar a respeito de assuntos ligados à sexualidade. “Eu nunca falei sobre o aborto que fiz, ou sobre sexo, por vergonha. Quando isso é mostrado na novela e as meninas estão presentes eu fico constrangida”, admite.
Oliva diz que havia suspeitado da gravidez de Turquesa, filha mais velha, mas quando confrontou a primogênita, ela mentiu. Segundo a própria jovem, a descoberta da gestação ocorreu aos seis meses e por isso declinou da ideia de abortar, após pesquisar na internet e ler que um aborto àquela altura traria riscos para a sua saúde.
“Lamentavelmente, enquanto não se legalize o direito a um aborto seguro e legal, o que se vê é que crescem buscas na internet por procedimentos caseiros sem supervisão médica, que colocam em risco a vida dessas mulheres”, argumenta Graciela Natansohn, pesquisadora e coordenadora do GIG@, grupo de pesquisa em Gênero, Tecnologias Digitais e Cultura da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Ao realizar buscas no Google e Facebook utilizando as palavras “aborto Bahia” e “aborto Salvador”, os resultados apontam para uma página e um grupo na rede social, respectivamente. Nenhum deles têm informações transparentes ou robustas o suficiente, se comparados a serviços na internet no qual mulheres podem ter acesso a informação sobre aborto seguro com comprimidos.
Apesar de inicialmente buscar ajuda online, foram mulheres próximas que auxiliaram a filha de Oliva a lidar com a descoberta da gravidez. “Primeiro eu conversei com uma amiga sobre a ideia de interromper e ela me contou do aborto de uma conhecida nossa, uma história triste. Depois, falei com minha tia Violeta, como se quisesse buscar informações para outra pessoa, mas ela suspeitou que era para mim e me disse para não tomar o Cytotec”, conta Turquesa.
Oliva só soube mais tarde que Turquesa procurou duas tias para confidenciar a gravidez e buscar meios de abortar. Por esse motivo, ficou ressentida e não ofereceu amparo à jovem nos meses iniciais da gestação. Mesmo com certa assimetria, mãe e filha vivenciaram percalços envolvendo a maternidade.
Para a antropóloga Débora Diniz, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, histórias como a de Oliva e Turquesa, apesar das diferenças, costumam ser marcadas por silêncio. “As mulheres, por medo se serem criminalizadas e estigmatizadas, não compartilham esse momento de suas vidas com seus familiares, amigos ou conhecidos”, afirma Diniz.
Se tivesse usufruído dos privilégios da filha durante a adolescência, Oliva diz, não teria engravidado precocemente; ela se refere a condições básicas de moradia, acesso à informação e à educação à época de sua primeira gravidez. “Eu estudei até a segunda série, mas isso prova que ter mais estudo não ajuda a fazer as melhores escolhas”, opina.
Aborto em família
Oliva, por sua vez, decidiu pela interrupção da gravidez, aos 14 anos – mesma idade da caçula hoje, após descobrir que o seu namorado estava num noivado com outra mulher. “Se eu não fizesse aquilo, meu maior medo iria se concretizar: ter um filho de um homem sabendo que ele era comprometido. Fiz, me arrependi, mas se fosse hoje não vou dizer que não faria”, sublinha.
Na época, algumas mulheres apoiaram Oliva. Dentre elas, a irmã Coral, testemunha das complicações do aborto da mais nova, que sofreu hemorragia e precisou finalizar a interrupção na maternidade local. “Essa foi uma das situações de aborto mais tristes que eu já presenciei”, conta Rosa. Ainda segundo ela, houve risco de morte da irmã, ao expulsar o feto um dia depois de ter aplicado três comprimidos de Cytotec e ingerido mais dois.
A mãe de Oliva suspeitava que ela havia iniciado muito cedo a vida sexual e lhe dava conselhos para não se deixar levar pela conversa de certos homens, rememora a dona de casa. “O que eu sei sobre sexualidade aprendi no mundo, não em casa. Mainha e painho não falavam sobre isso”, diz Oliva.
Um dos breves ensinamentos de que Oliva se lembra, repetido pela mãe – debilitada a maior parte do tempo por questões de saúde –, naturaliza a conduta masculina, muitas vezes omissa no planejamento reprodutivo familiar e evasiva numa situação de gravidez não desejada. “Mainha só falava que ‘homem não era boneca’, ou seja, que homem não é brinquedo, mas eu jamais poderia imaginar em consequências como uma gravidez”, completa.
Para Greice Menezes, pesquisadora do MUSA, grupo de pesquisa sobre gênero e saúde do Instituto de Saúde Coletiva (ISC), da Universidade Federal da Bahia (Ufba), estudos mostram que a família, junto com a escola e com os serviço de saúde, são uma instância importante para ofertar aos jovens informações qualificadas sobre temas como sexualidade, gravidez, contracepção e Aids.
“Os pais são interlocutores privilegiados e podem ajudar os jovens, sobretudo quando a gravidez acontece na adolescência, numa idade em que eles não têm recursos financeiros pra arcar com isso”, aponta. “Os pais podem viabilizar o acesso ao aborto seguro; podem acolher a decisão dos filhos, mas é verdade que a gente não pode afastar que os pais podem ser agressores”, acrescenta, referindo-se a casos de violência sexual ocorridos dentro da família.
GREICE MENEZES,pesquisadora do MUSA
Gravidez na adolescência
A tese de doutorado da professora Greice Menezes se baseou em dados da pesquisa GRAVAD, um estudo nacional sobre gravidez na adolescência, elaborado e executado pela coautora Estela Aquino, do ISC da Ufba. Apesar de não estar atualizado, é um diagnóstico considerado referência sobre o tema e que apontou, dentre outras evidências, que a figura materna desempenha papel fundamental na transmissão de informações sobre sexualidade aos jovens, em três capitais: Salvador, Porto Alegre e Rio de Janeiro.
“Os estudos mostram que, pela própria divisão sexual do trabalho na família, as mulheres são as principais responsáveis pelo cuidado da casa e dos filhos e a mãe aparece como uma pessoa muito mais importante do que o pai, como uma fonte dessas informações”, avalia Greice. Ainda de acordo com Menezes, apenas os homens em famílias mais escolarizadas, em Porto Alegre, por exemplo, participam como fonte de informação.
Gravidez adolescente no Brasil
A taxa de gravidez entre adolescentes no Brasil está acima da média latino-americana e caribenha, conforme apontou um relatório da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e da Organização Mundial da Saúde (OMS). No país, a taxa é de 68,4 nascimentos para cada 1 mil adolescentes. No mundo, a taxa de gravidez adolescente é estimada em 46 nascimentos para cada 1 mil meninas entre 15 e 19 anos; na América Latina e no Caribe a taxa é de 65,5 nascimentos, superada apenas pela África Subsaariana.
Para Rosires Andrade, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), é preciso que haja informação para que essas mulheres não tenham mais que se submeter a um aborto clandestino. “Precisa orientação adequada sobre os métodos anticoncepcionais modernos, em especial os métodos LARC, que são os contraceptivos reversíveis de longa ação, altamente eficazes, bastante seguros e que precisam de inserção única, não precisando lembrar diariamente de usar”, explica.
A Febrasgo recomenda que deve haver constante preocupação com a abordagem da sexualidade com a população mais jovem. “Omitir-se a conversar com o adolescente a respeito de anticoncepção ou oferecê-la nas situações necessárias, pode ser considerado uma violação do direito do paciente, já que este sempre deverá ser informado a respeito dos cuidados disponíveis para sua segurança”, explicita.
A OMS também lista uma série de recomendações para reduzir a gravidez na adolescência. Num relatório elaborado pela organização internacional, advoga-se o apoio a programas multissetoriais de prevenção dirigidos a grupos em situação de maior vulnerabilidade e estimula o acesso a métodos anticoncepcionais e de educação sexual.
Na contramão do que recomendam órgãos nacionais e internacionais, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse, em março, que iria rever o conteúdo de uma caderneta, distribuída na rede pública há mais de dez anos, voltada à saúde do adolescente. A declaração ocorreu após o presidente Jair Bolsonaro considerar que o documento mostrava imagens inapropriadas para meninos e meninas.
A Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab) informou não desenvolver campanha em relação à gravidez precoce e que as ações relacionadas a saúde reprodutiva são responsabilidade dos municípios.
Contracepção
Passado o ressentimento de não ter sido a primeira a saber que a filha estava grávida, Oliva é hoje uma grande força na criação da neta. Se por um lado ela não isenta a mais velha de suas próprias responsabilidades, cuida da pequena enquanto a mãe sai para trabalhar. A experiência diária, por outro lado, evoca o temor de uma nova gravidez dela própria e a dona de casa chega a tomar diariamente mais de um remédio anticoncepcional.
“Já tomei injeção [contraceptiva], mas não me dei porque o local da aplicação ficava duro e eu sentia muitas dores. Não confio no DIU ou na tabela e a laqueadura eu não faço porque a recuperação é a mesma de fazer uma cesárea”, justifica. Com o seu parceiro, o mesmo que promove certo silenciamento de suas memórias, ela ao menos desfruta da autonomia de não ter que transar se não se sentir devidamente precavida.
O depoimento de Oliva sobre prevenção traz implícito algumas questões no debate sobre gravidez não planejada e o direito à interrupção. Conforme apontam pesquisadoras, há a sentença da mulher que geralmente é a única a se responsabilizar pelo planejamento reprodutivo do casal. Segundo, a fala oculta a possibilidade de uma mulher vir a engravidar utilizando regularmente o remédio anticoncepcional.
Os exemplos da subjetividade nos métodos escolhidos para contracepção existem dentro da própria família de Oliva, sobretudo dentre as irmãs que já abortaram. A irmã Violeta substituiu métodos convencionais, como a injeção anticoncepcional e os comprimidos, por beberagens caseiras, baseadas em conhecimento popular.
Enquanto isso, a própria filha de Oliva, contrariando o seu juízo de valor, engravidou ao abrir mão dos remédios de contracepção, após interpretar de maneira equivocada o diagnóstico de um ginecologista. “Eu não me preocupava em me precaver porque eu tenho cistos no ovário e o médico disse que eu teria dificuldade para engravidar”, justifica Turquesa.
Conforme explica Greice Menezes, mulheres jovens também podem ser alvo de discriminação nos serviços de saúde, dificultando o acesso a medicamentos. “Profissionais de saúde podem considerá-las jovens demais com uma demanda de contracepção”, expõe a pesquisadora.
Descriminalização
Férteis, tanto Oliva quanto outras três irmãs, que já abortaram, ainda podem engravidar. “Até a menopausa, as mulheres têm riscos de engravidar, mantendo relações sexuais. Portanto, não querendo engravidar, devem usar anticoncepcionais”, corrobora Rosires Andrade.
Dentre as suas irmãs que já interromperam uma gravidez, Oliva tem a opinião mais categórica contra a descriminalização. Ela, no entanto, admite que pensa assim por achar que não vai mais passar por um aborto inseguro e que essa opinião não ajuda outras mulheres relegadas à clandestinidade.
A raiz de tanta preocupação com uma gravidez, ainda hoje, está numa sobrecarga conhecida entre mulheres: o trabalho doméstico compulsório e o cuidado integral dos filhos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mulheres trabalham, em média, três horas por semana a mais do que os homens, combinando atividades remuneradas, afazeres domésticos e cuidados de pessoas. “Filho é muita responsabilidade e aqui em casa sou eu para tudo”, dispara a dona de casa.
Com o desabafo, ela admite outra interpretação ao alerta de sua mãe, de que “homem não é boneca” porque não deve ser considerado mero objeto, isento do trabalho doméstico e da criação dos filhos. “Na outra encarnação eu quero ser homem para tirar certas responsabilidades das costas”, ironiza Oliva.
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