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terça-feira, 3 de setembro de 2019

Hedy Lamarr – o atraso tecnológico do machismo

Ciência & Matemática / O Globo

26/08/2019

Marcia Barbosa, Professora Titular – UFRGS e Diretora da Academia Brasileira de Ciências
Marcia Barbosa é a única mulher na sala de reuniões. Ela aprendeu durante estes mais de trinta anos de doutorado que muitos homens, ao se sentirem intimidados, tratam as mulheres como se fossem transparentes, as subestimam e até as agridem. Ela já deveria estar acostumada, mas esta solidão de gênero é como uma lesão antiga que sempre dói em dias frios. Enquanto toma um café e espera os colegas se organizarem, lembra de outra mulher que trilhou um caminho ainda mais tortuoso do que o dela: Hedy Lamarr.

Hedy foi uma jovem judia que cresceu na tranquilidade de um lar burguês do período entre guerras. A família, um tanto liberal para a época, permitiu que a jovem se tornasse atriz, o que era considerada uma profissão não adequada para jovens bem nascidas. Além de uma beleza perturbadora, ela era uma mulher muito inteligente, sabendo identificar papéis que lhe dariam destaque. Os tempos eram turbulentos, o poder de Hitler crescia e Hedy percebeu que como judia estava em risco e que um casamento com uma pessoa poderosa como Friedrich Mandl, um fabricante de armas, poderia proteger a ela e a sua família.
Ela rapidamente percebeu que seu marido a via como um bibelô para decorar os jantares de negociação com líderes nazistas. Ela era proibida de trabalhar, de determinar a dinâmica da casa e até mesmo de escolher roupas e joias para os jantares com militares e políticos. Nestes eventos, misto de política e negócios, ela era a única mulher na sala. Rapidamente Hedy percebeu que sua presença intelectual era ignorada. Líderes, engenheiros e estrategistas nazistas discutiam seus projetos na frente dela como se ela fosse transparente. Ela se tornara uma observadora privilegiada da dinâmica do avanço nazista e das discussões sobre os problemas tecnológicos que os cientistas alemães enfrentavam e absorvia tudo, pois tinha interesse em tecnologia.
Ao tentar conversar com o marido sobre a política do momento ou os avanços tecnológicos, ele, intimidado, respondia com violência. Afinal, no machismo não existe nada mais assustador do que uma mulher que pensa.
Quando Hitler estava prestes a invadir a Áustria, ela foge do marido e de um regime fascista. Viaja sozinha para a Inglaterra, conseguindo, depois, ir para os Estados Unidos. A sua experiência teatral foi a forma de garantir a sua sobrevivência. Ao tentar ingressar na machista indústria cinematográfica americana, alguns produtores ofereciam contratos aviltantes e outros vinculavam as propostas de emprego a ela ceder a tentativas de assédio. Hedy usou sua inteligência para escapar destas duas armadilhas e logrou excelentes contratos.
Apesar de estar segura em solo americano e de ter uma carreira de sucesso, Hedy sofria com as notícias do avanço do nazismo. Quando o povo americano se juntou às forças aliadas, ela sabia que precisava ajudar o esforço de guerra e o faria usando o seu talento em tecnologia. Recordou então as discussões que ouvira nos jantares. Um dos problemas bélicos da época é que os torpedos eram conectados aos navios por um fio o que era muito inconveniente, pois a comunicação elétrica era precária. Uma alternativa era que o navio se comunicasse por rádio com o torpedo. Hellmuth Walter tinha tentado esta ideia, mas o uso de uma única frequência de comunicação era muito ineficiente, pois ao ser descoberta pelo inimigo, este poderia alterar o curso do torpedo.
Certo dia, Hedy, tocando piano com George Antheil, teve uma ideia. Ele iniciava uma melodia e ela ia acompanhando sem nenhum problema. Hedy pensou: e se o navio e o torpedo se comunicassem como duas pessoas em um dueto em um piano, uma acompanhando a melodia da outra? Os pianistas saltam de uma frequência. Para uma pessoa que não conhece a música parece aleatória. Assim sendo, navio e torpedo estariam se comunicando sem que o inimigo pudesse decifrar a frequência de comunicação.
George era não somente um excelente pianista, mas um especialista em sincronização de frequências musicais. Ele conhecia instrumentos e criara a peça Ballet Mécanique, onde diversos pianos tocavam melodias diferentes que formavam uma única composição. Ele era o parceiro ideal para a empreitada de construir o sistema de comunicação sem fio mais tarde conhecido como Spread Spectrum Technology.
Hedy passou a trabalhar com George no desenvolvimento do projeto. O camarim dela deixava de ser glamour e estava repleto de livros de radiomecânica e de sincronização. Finalmente em 1940 os dois apresentaram a patente da nova invenção para a marinha americana. Inicialmente eles se interessaram e tornaram a patente segredo de Estado. Um dia, no entanto, chamaram a Hedy para dizer que não iriam usar a invenção dela, pois os soldados ficariam intimidados com uma arma inventada por uma mulher.
Ela ficou triste, mas continuou sua carreira de atriz e de inventora, aperfeiçoando o formato da asa dos aviões e desenvolvendo aparelhos para deficientes visuais entre outras criações. A tecnologia de comunicação sem fio desenvolvida por Hedy foi finalmente usada pela marinha na crise dos mísseis de Cuba em 1962, vinte anos depois de sua idealização. Ela serviu de base para a comunicação de Wi-Fi, a telefonia celular, o GPS e o Bluetooth. Em 1997, Hedy e George finalmente receberam o reconhecimento da comunidade científica pela grande invenção.
É constrangedor que uma tecnologia que poderia ter terminado a guerra mais cedo não tenha sido usada pelo simples fato de ter sido criada por uma mulher.
Marcia acorda de seu devaneio. Os colegas já estão prontos e ela pode começar a reunião. Ela, a única mulher na sala, não se sente mais só. Hedy Lamarr, Marie Curie, Emmy Noether e tantas outras estão com ela para lembrar aos colegas do atraso tecnológico do machismo.

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