Vox estimula o veto parental, de lógica similar à do Escola sem Partido, e investe contra atividades de prevenção a assédio homofóbico, abusos sexuais e gravidez de adolescentes
PILAR ÁLVAREZ / NOOR MAHTANI / VIRGINIA VADILLO
Madri / Múrcia - 22 JAN 2020
Tudo começou com uma foto. Em abril de 2018, a então secretária da Educação de Múrcia, Adela Martínez Cachá (PP), posou para a imprensa local em uma escola com membros do coletivo LGTBI No Te Prives (“não se prive”), que dá palestras para prevenir o assédio e a homofobia nas instituições de ensino. “O Fórum da Família [organização católica ultraconservadora] exigiu que fosse pedida a permissão dos pais para que seus filhos participassem de nossas palestras”, diz Eva Illán, educadora social do coletivo. Tanto ela como a associação de diretores de escola de Murcia, a ADES, situam esse episódio como a origem do veto parental, uma figura legal que tem sido usada com intenções similares às do movimento Escola sem Partido no Brasil.
As famílias precisam autorizar as oficinas e palestras dadas durante o horário escolar sobre violência de gênero, direitos LGBTI, assédio na escola, xenofobia... No Brasil, o Escola sem Partido não conseguiu aprovar uma lei nacional contra “doutrinação” nas escolas, mas seu efeito se faz sentir no cotidiano dos professores, que passaram a ter as aulas policiadas por alunos e seus pais. Na Espanha, embora a medida não corresponda a um clamor das famílias (as queixas sobre esse tipo de atividade são pontuais em todo o país), sua implementação tem vítimas. Quem dá essas palestras dentro e fora de Múrcia tem sido alvo do partido Vox ou sente os efeitos da polêmica.
As famílias precisam autorizar as oficinas e palestras dadas durante o horário escolar sobre violência de gênero, direitos LGBTI, assédio na escola, xenofobia... No Brasil, o Escola sem Partido não conseguiu aprovar uma lei nacional contra “doutrinação” nas escolas, mas seu efeito se faz sentir no cotidiano dos professores, que passaram a ter as aulas policiadas por alunos e seus pais. Na Espanha, embora a medida não corresponda a um clamor das famílias (as queixas sobre esse tipo de atividade são pontuais em todo o país), sua implementação tem vítimas. Quem dá essas palestras dentro e fora de Múrcia tem sido alvo do partido Vox ou sente os efeitos da polêmica.
García organiza uma contação de histórias em Múrcia há mais de 20 anos e todos os meses recebia pedidos. Neste ano letivo, não: “Atribuo isso ao fato de as escolas estarem organizando menos atividades por causa do problema burocrático e organizacional envolvido na coleta de autorizações dos pais e no gerenciamento do que fazer com crianças que não recebem a autorização”, explica. Cerca de 165 organizações assinaram um manifesto contra o veto: “Não podemos tornar opcionais na escola valores que no nosso país não são há mais de 40 anos”. Estas são algumas das atividades que estão entre os alvos do Vox:
“Há alunos que não entram nas minhas palestras”
No Te Prives. Palestra LGBTI (Múrcia)
As palestras do No Te Prives são dadas desde 2010. São divididas em duas sessões. “Na primeira, esclarecemos conceitos como o que é o sexo biológico, o gênero, a orientação afetivo-sexual”, explica a educadora Eva Illán. Nas outras, “os preconceitos são desmascarados e é explicado como lidar com a rejeição da diferença e como respeitá-la”. No ano passado, deram 200 palestras em 28 escolas. Alcançaram 3.000 alunos. Neste trimestre, começaram a notar o efeito do veto dos pais: “Já existem estudantes que não entram”. À pergunta sobre o que perdem se não comparecem, ela responde: “A oportunidade de ouvir algo que podem não ouvir em casa, de serem críticos. Ouvir alguém lhes dizer que não há nada errado em não ser heterossexual, que você pode viver naturalmente”.
“Fomos chamadas de pedófilas”
Skolae. Palestras de educação sexual (Navarra)
O plano de coeducação Skolae, aprovado em 2017 pelo Parlamento de Navarra e premiado pela Unesco, possui quatro eixos: atitude crítica em relação ao sexismo, autonomia pessoal e independência econômica, liderança e empoderamento e educação sexual e prevenção da violência de gênero. A partir das eleições de 2018, esta última ocupou parte da campanha eleitoral dos partidos Cidadãos, PP e Navarra Soma. O conceito “jogos eróticos infantis”, entre parênteses junto com outras dinâmicas, incendiou a opinião pública. Grupos católicos e evangélicos o denunciaram. Duas ações estão pendentes de julgamento na Câmara de Contenciosos Administrativa do Tribunal Superior de Justiça de Navarra (TSJN). Vox o resgatou nos últimos dias.
Marian Moreno é uma das coautoras do Skolae. Testemunhou perante o juiz. “Não sei o que as mentes sujas da ultradireita acham que sejam estes jogos, mas o termo se refere à descoberta que os bebês têm de seu próprio corpo, algo que até recentemente era castigado. Este conceito, tratado a partir da sexologia, é a base da prevenção do abuso sexual infantil. Aprende-se a estabelecer limites e a dizer que não”, explica Moreno, que desde 2018 não tem redes sociais devido à perseguição que sofreu: “Já sofremos as consequências do que pode acontecer com um veto parental. Fomos ameaçadas e chamadas de pedófilas, doutrinadoras…”. Ela considera que o discurso do Vox é “uma arma de longo alcance” contra a igualdade e a escola pública. “Estamos preparadas para o ressurgimento dessas ameaças”.
“Eu mostraria aos pais do veto como ajudo meninas de 14 e 15 anos a dar à luz”
Associação de Parteiras de Múrcia. Educação Afetivo-Sexual (Múrcia)
Pedro Morillas, que preside a Associação de Parteiras de Múrcia, viu como este curso dá continuidade ao projeto de educação afetivo-sexual com o qual o curso anterior alcançou, juntamente com as associações Cepaim e Columbares, 1.500 adolescentes de dois distritos de Múrcia. Foi feito a pedido das escolas, preocupadas com as inúmeras práticas de risco entre os adolescentes, muitos deles em situação vulnerável. Nenhuma das duas escolas voltou a entrar em contato com os organizadores para repetir as palestras deste curso, apesar da satisfação demonstrada tanto por professores como por alunos. “Eu me senti muito frustrado, porque há uma enorme carência de conhecimento no campo afetivo-sexual entre os adolescentes”, lamenta. “Quanto aos pais que não querem autorizar seus filhos a ir a este tipo de palestras, eu os levaria comigo à sala de parto quando ajudo meninas de 14 e 15 anos a dar à luz.”
“Há centros que não nos chamam por temer represálias”
Serise. Palestras de sexologia (La Rioja)
Um tuíte do Vox pôs em andamento uma campanha de “ódio e difamação” contra duas sexólogas. “É assim que doutrinam menores de seis anos em sexologia nas escolas de La Rioja. É por isso que o veto parental é fundamental”, afirmou o partido ultraconservador na mensagem. Anexou um vídeo, que já passa de 187.000 reproduções, com áudios manipulados, das palestras das fundadoras de Serise Sexologia: Bárbara Sáenz e Ruth Arriero.
Sáenz lamenta o “assédio diário em redes sociais e por correio eletrônico” que começou há um ano e se intensificou desde o último fim de semana. “Embora, até agora, não tenha ultrapassado o virtual, o medo está aí desde que nos ameaçam nas redes com agressões físicas”, conta. Ambas colocaram o caso nas mãos de seus advogados. “Sempre há alguém da direção em nossas sessões. Se o que o Vox diz fosse verdade, teriam nos cortado no primeiro minuto”, critica Sáenz. “Já há centros que não nos chamaram mais por temer represálias.”
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