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domingo, 19 de janeiro de 2020

A culpa é minha?

  • Vida simples                           EUGENIO MUSSAK
Esse sentimento, que nos habita desde sempre, pode ser aliviado quando pensamos, de maneira profunda, nos motivos pelos quais ele está ali

Tem um sentimentozinho que teima em aparecer às vezes, e fica revirando em meu peito como um computador procurando conexão, causando um mal-estar sem sentido. Estou falando do sentimento de culpa. Volta e meia percebo que sou visitado por esse hóspede emocional indesejado que, pela lógica, não devia vir, pois não foi convidado. Só que ele chega de repente, ocupa os espaços e incomoda. E o pior não é o incômodo que causa, aquela dor emocional que fica ali, como uma pedra no rim, lembrando que existe, e que sua única função é mesmo doer.

O pior é a repercussão que provoca no futuro. Uma pessoa com complexo de culpa tende a sabotar seus planos para não se culpar ainda mais pelo sucesso ou felicidade que, por ventura, venha a conquistar, em detrimento de outros. Claro, há uma diferença entre complexo, que já entra para a categoria das doenças da alma, e o sentimento, que é normal, pois todos somos esse fantástico cadinho de emoções que se entrelaçam, se complementam, se alternam.

Não sentir culpa não seria normal, me consolo… Mas o duro é achar que se está no limite entre o normal e o preocupante. Uma coisa é sentir-se eventualmente culpado por não ter correspondido a uma responsabilidade ou à expectativa dos outros, como chegar atrasado a um compromisso, ou se esquecer do aniversário de alguém da família. Outra é carregar no peito uma sensação quase permanente de culpa pelos males do mundo.

A tal culpa

O velho Freud já ensinou que esse sentimento começa a ser formado junto com o superego. Em outras palavras, a partir do momento em que começo a me dar conta de que as pessoas ao meu redor têm expectativas a meu respeito, começo também a perceber que não vou conseguir atender a todas elas, e junto vem a tal da culpa.

Na verdade, parece que não temos como fugir disso, pois faz parte da estrutura de nossa personalidade, e não seria normal não sentir. Quem se desvincula do interesse ou do sentimento do outro está em outra categoria, esta, sim, patológica e preocupante, a psicopatia.

Freud aprendeu com Darwin que, no início da civilização, a estrutura social ainda era constituída de bandos, as hordas primevas. Nelas, para que houvesse o mínimo de organização, alguém tinha que mandar, e esse alguém, claro, era o mais forte, o dominador. E ele tinha algumas prerrogativas, entre elas a de usufruir de todas as fêmeas como seu harém pessoal. A ninguém mais esse direito era dado, nem a seus filhos, razão pela qual eles eram expulsos da tribo quando atingiam a maturidade sexual.

Mas esse fortão não durava para sempre. Seus filhos, com aliados insatisfeitos, algum dia voltavam para a tribo, matavam o dito-cujo, e o devoravam. Pronto, começou a confusão de sentimentos, pois o prazer da vingança necessariamente vem acompanhado pela culpa, principalmente porque mataram quem, ao seu modo, dava equilíbrio e ordem ao grupo e, em geral, não conseguiam substituí-lo, e o vácuo do poder era fomentador da desordem. Curiosamente, o déspota continuava exercendo seu poder, mesmo após ter sido vencido e abatido, e o fazia através da culpa que se instalava entre seus algozes. A coisa é antiga.

Cuidado com a frustração

Quando Freud explica o complexo de Édipo é disto que ele fala: o desejo libidinoso pela mãe e o impulso de eliminar o pai. A culpa surge dos dois lados. Na verdade, esse sentimento deriva da justaposição entre o id, que só quer saber dos seus interesses em busca do prazer máximo, e o superego, que nada mais é do que o limite social e a expectativa do outro. E vamos concordar que os dois são bem importantes e até fundamentais para o próprio equilíbrio social. Não daria para viver em um lugar onde cada um cuidasse apenas de seus interesses.

Por outro lado, descuidar de seus interesses geraria outro sentimento desagradável: a frustração. Aliás, é justamente do ato de cuidar de seus interesses que vem a promoção do bem comum, por vias tortas. Segundo Adam Schmidt foi justamente a vontade de se dar bem que estimulou o padeiro a fazer o melhor pão. Assim ele venderia mais. Para conquistar o cliente é preciso agradá-lo. Esse pensamento faz parte dos fundamentos da economia.

Ok, o padeiro e seu cliente estão satisfeitos quando o pão é bom. Mas bem que o padeiro gostaria de fazer um pão mais barato e cobrar mais por isso. Ganharia mais dinheiro. Só que neste caso perderia os clientes. Se isso acontecer, ele se sentirá culpado. Se fizer tudo o que os clientes querem, experimentará a culpa de se sentir explorado. E agora? A saída é o equilíbrio possível, mas é bom lembrar que ele depende da maturidade, e esta se alcança com o tempo, não sem risco, perigo e sofrimento.

A primeira separação. Culpa?

Pronto, a biologia, a economia e a psicologia se uniram para explicar por que sentimos culpa. Então relaxa, tá? É normal. Mas não dá para diminuir um pouquinho?

Estou pensando sobre isso e escrevendo este texto em um bar no lobby de um hotel fantástico em Las Vegas. Acontece que, quando cheguei e presenciei essa alegria que paira no ar – o lugar é uma espécie de Disneylândia de gente grande –, bateu um sentimento estranho. Senti, confesso, aquela culpa retirada do capítulo “será que eu mereço?”. E quem não veio, como estará?

Claro, tem um dado a mais, e grandão: esta é a primeira viagem do casal sem o filho pequeno. O Erik ficou em São Paulo, com a avó. Com a tia. O tio. E o primo. E a babá. Ah, e os bichinhos da casa. E a casa. E os brinquedos. É claro que ele está bem e se divertindo. Eu sei disso.

Mas vá explicar para meu emocional. Será que ele está mesmo se divertindo? Deve estar sentindo nossa falta.  Imagine quando acorda pela manhã e o papai e a mamãe não estão. Vai achar que foi abandonado? Para sempre? Provavelmente, mas isso só dura até que a avó o chama para tomar lanche e brincar.


Não tem jeito. Viver é lidar com sentimentos, quase sempre bons, muitas vezes nem tanto. E a culpa faz parte deles. Mas daria para diminuir pelo menos um pouco a culpa ruim? Já sei! Vou mudar os nomes. Vou chamar a culpa verdadeira de responsabilidade, e a culpa bobinha de saudades. Assim fica mais fácil lidar com o fato de que não sou perfeito, nem quero ser.

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