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quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Inteligência artificial e redes colaborativas no combate à violência contra a mulher

Beatriz Bevilaqua

O Brasil vive hoje uma verdadeira epidemia de feminicídio. A violência acontece em casa, nas ruas, no transporte público e em tantos outros lugares da cidade ou mesmo do campo. Só no ano passado 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento. Os dados são de um levantamento do Datafolha encomendado pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)  para avaliar o impacto da violência contra as mulheres no Brasil. Os números são aterrorizantes, mas a tecnologia surge como uma ferramenta que pode ajudar e até mesmo salvar vidas em momentos de emergência.

É o caso do Malalai, um aplicativo que analisa a segurança da rota planejada pela usuária em seu deslocamento pela cidade. O sistema analisa cinco questões referentes ao caminho desejado: se as ruas são movimentadas, se há policiamento fixo nas proximidades, edificações com porteiros ou estabelecimentos comerciais abertos, trechos com má iluminação pública ou ocorrências de assédios ao longo da rota sinalizada. As informações apresentadas no aplicativo são geradas de forma colaborativa pelas próprias usuárias da ferramenta.
Dos 10 países mais violentos do mundo para mulheres, sete estão na América Latina. O Brasil ocupa a quinta posição, com um agravamento dos índices entre mulheres negras, em média, 24% maior. “Acredito haver uma conexão entre cultura patriarcal, desigualdade social e, no caso do Brasil, racismo, que coloca estas mulheres em situação de maior vulnerabilidade. É uma tríade. Ou ciclo vicioso”, avalia Priscila Gama, fundadora do Malalai.
A Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, define a violência contra mulheres como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. A ativista de Direitos Humanos e presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB SP, Claudia Luna, ressalta outras formas de agressão ao público feminino.
“No caso das mulheres LBTs (lésbicas, bissexuais e transexuais), temos uma violência mais específica que são os estupros corretivos e coletivos, que tem por objetivo corrigir a sexualidade destas pessoas. Quando uma mulher lésbica sofre um estupro, a mensagem é a de que através do ato sexual violento ela seria corrigida da sua homossexualidade, a ponto de aprender a ser a mulher que ela não é”, explicou Claudia.
Esta reportagem vai trazer um panorama da violência contra a mulher hoje no Brasil.

Relacionamentos Tóxicos

Um dos ditados populares mais reproduzidos pelos brasileiros diz que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Com sua origem em um passado extremamente conservador e machista, a frase sugere que ninguém se envolva nos conflitos amorosos dos outros, não importando a gravidade da situação.
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre os casos de violência contra a mulher no Brasil, 42% ocorreram no ambiente doméstico e após sofrer uma violência, mais da metade das mulheres (52%) não denunciam o agressor ou procura ajuda. Foi pensando neste cenário que um grupo de mulheres fundou o aplicativo Mete a Colher – uma rede colaborativa que auxilia mulheres que vivenciam a violência doméstica. O aplicativo conecta mulheres que precisam de ajuda com outras que podem oferecer apoio de forma voluntária.
Renata Albertim, CEO e cofundadora da empresa, explica que o debate de gênero principalmente sobre violência contra as mulheres cresceu muito nos últimos anos e a internet foi fundamental para isso. “As plataformas digitais vêm ganhando espaço porque conseguem garantir uma rede de apoio segura. O nosso app, por exemplo, exige senha para acessar e as conversas são apagadas a cada 48 horas”, explicou.
Outra iniciativa idealizada no mesmo ano do Mete a Colher (2016) foi o Mapa do Acolhimento fundado por um grupo de mulheres ativistas em resposta ao estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro. A plataforma conecta mulheres que sofreram violência e não podem pagar pelo atendimento a psicólogas e advogadas dispostas a acolhê-las gratuitamente. “A violência de gênero é um problema estrutural do nosso país. O Estado não consegue dar conta da demanda e da urgência do acolhimento a mulheres que sofrem ou sofreram esse tipo de violência. O Mapa surge como uma rede de solidariedade com o objetivo de não deixar que nenhuma mulher fique desamparada”, explica Larissa Schmillevitch, coordenadora do projeto.
A violência contra mulher e a violência doméstica são extremamente democráticas: acontecem em todas as classes sociais. Muitas vezes ela passa despercebida pelas pessoas que não estão instruídas para identificar os processo sutis que geram a violência contra mulher. A psicóloga e especialista em relacionamentos Pamela Magalhães dá dicas de como reconhecer um relacionamento tóxico desde o princípio.
“O abusador independe de gênero ou orientação sexual. Ele pode deixar marcas visíveis com a violência física ou marcas não visíveis, mas profundas através da violência emocional que destrói a autoestima do abusado. É possível perceber por críticas exageradas, silêncios ensurdecedores, comportamentos manipuladores, jogos emocionais, torturas psicológicas e muito controle camuflado de ciúmes. A vítima vai se distanciando cada vez mais dos familiares, dos amigos e de si mesma, criando uma dinâmica doentia entre o abusador e o abusado ”, explica.
Priscila Caldas, idealizadora do aplicativo ELA – que deve ser lançado no segundo semestre deste ano – passou por violência doméstica durante quatro anos. Primeiro foi o ciúme, depois o afastamento, as restrições e por último a agressão física. “Desde quando consegui sair, eu queria ajudar mais mulheres. Então assisti a um filme chamado HER e vi que poderia unir a tecnologia e a psicologia num só lugar. Como eu acabei entrando no mundo tecnológico, decidir fazer um aplicativo com todos os verdadeiros recursos que as pessoas que passam por isso precisam”, explicou.
Muitas outras iniciativas também surgiram neste ano, como a parceria entre o Ministério Público de São Paulo (MPSP) e a Microsoft, que lançaram a campanha #NamoroLegal. Idealizada pela promotora de Justiça Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do MPSP. A ação reúne uma série de dicas para que adolescentes consigam identificar possíveis situações de abuso antes que se tornem violência física. Além de uma cartilha reunindo as informações, o projeto tem como protagonista a MAIA (Minha Amiga Inteligência Artificial), uma assistente virtual desenvolvida por Elo Group e Ilhasoft na plataforma de nuvem da Microsoft. A MAIA usará Inteligência Artificial para conversar sobre relacionamentos abusivos de uma forma leve e descontraída.
O projeto busca fomentar a discussão do empoderamento feminino e mostrar caminhos para que garotas jovens se sintam seguras em seus relacionamentos e saibam como sair deles caso não estejam saudáveis. “Mesmo mulheres adultas, muitas vezes, só percebem que estão em uma relação abusiva quando já estão sofrendo muito, isoladas da família e dos amigos, afastadas do estudo, do trabalho e sem amor próprio. Para as garotas, pode ser ainda mais difícil identificar quando estão sofrendo abuso”, diz Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do MPSP. “Relacionamentos fazem parte da vida, devem ser agradáveis e saudáveis, por isso é fundamental saber impor limites”, afirma.

Homens que participam da luta

Antônio Carlos dos Santos Filho é designer gráfico e pai de uma jovem de 25 anos. Ele foi trabalhar para a Geledés – Instituto da Mulher Negra justamente com o intuito de entender melhor sobre o universo feminino. “Nós, homens, não deixamos de ser machistas, mas aprendemos a criticar nossas ações a partir da convivência com o tema e a respeitar os espaços conquistados pelas mulheres”, disse.
Para Antônio, o debate deveria ser constante para mudar a naturalização do machismo em todos os setores da sociedade, e um dos caminhos imprescindíveis é o da educação “O maior problema que encontramos são os caminhos sutis que levam a essa violência, como o machismo camuflado de ‘amor’ e ‘cuidado’ e que tanto os homens quanto as mulheres são suscetíveis a essas armadilhas”, explicou.
Victor Marcondes é responsável pela criação de textos na Cosmobots – uma plataforma de gestão e criação de chatbots que já apoiou projetos femininos, como o Mapa do Acolhimento, que mencionamos no início desta reportagem. Para Victor, é de extrema importância que as mulheres tenham mais canais com que possam contar com ajuda.
“O Mapa do Acolhimento, vai estar no WhatsApp e isso possibilita que mulheres de diferentes classes sociais e partes do Brasil tenham acesso e possam buscar ajuda a partir desse canal. O fato do WhatsApp rodar nos smartphones mais simples, aumenta essa abrangência. Dando prioridade a esses temas, abrimos portas para que possamos ajudar a construir canais de comunicação para outras causas sociais.”

Mulheres Negras

Segundo Maria Sylvia, presidente da Geledés – Instituto da Mulher Negra, os números de feminicídio contra mulheres negras indicam que o racismo é um fator que impacta de forma letal as mulheres negras. “A vulnerabilidade social é consequência direta das desigualdades no Brasil. Essas vulnerabilidades são um forte obstáculo, dificultam o acesso das mulheres a políticas públicas que as ajudem a sair de situações de violência, até porque, a meu ver a vida diária está permeada por variadas formas de violência, como a falta de moradia digna, a falta de saneamento básico, o desemprego ou o subemprego. São situações que exacerbam o contexto de violência contra a mulher”, explicou.
A Geledés – Instituto da Mulher Negra e a Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos desenvolveram em parceria o aplicativo PLP 2.0 para coibir a violência contra a mulher. Este app faz a interligação das mulheres em situação de violência que receberam medida protetiva nos processos com base na Lei Maria da Penha, o Poder Judiciário e o órgão de Segurança Pública (Polícia Militar). É uma forma de Direito e tecnologia andarem juntos para prevenir casos de violência.
“A vulnerabilidade social em nosso país pesa não só para as mulheres, mas para as minorias, e de forma rude. O equilíbrio está na educação, desta forma, enquanto estivermos carentes de educação, leis duras serão necessárias. Não deixe de procurar um profissional especializado e denuncie o agressor. A mulher merece ser respeitada e ter justiça”, completa a advogada Patrícia Barreto, coordenadora do Oi Advogado, um aplicativo que conecta pessoas comuns a advogados para consultas sobre como resolver determinada questão jurídica.

Transporte com segurança

Você sabia que 97% das mulheres (isso mesmo, quase todas as mulheres brasileiras) já sofreram algum tipo de assédio no transporte público e privado no Brasil? É o que diz o levantamento deste ano do Instituto Locomotiva e do Instituto Patrícia Galvão. “O simples fato de ser mulher e usuária de transporte público nos coloca em risco e reprime nossas possibilidades de ascensão, nos negando um direito básico, o de ir e vir”, disse Simony Cesar, fundadora do NINA Mobile uma tecnologia que nasceu para mapear e denunciar os casos de assédio sexual que acontecem diariamente no transporte público brasileiro.
Filha de uma mãe cobradora de ônibus que saía da zona norte do Recife, todo dia, às 4h da manhã. Como rodoviária e usuária de transporte público, sua mãe passava mais de 12h vulnerável dentro da frota urbana. Simony se sentia impotente diante da situação em que a mãe e várias mulheres ficavam. Foi então que o projeto NINA surgiu em 2016 enquanto Simony estudava na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O nome foi uma homenagem a cantora americana Nina Simone, famosa ativista pelos direitos civis dos negros e das mulheres, principais vítimas de violência no Brasil.
Mas a ideia não era ter um aplicativo de denúncias com bancos de dados isolados, de baixa efetividade, sem retorno concreto para a sociedade. Com os primeiros testes dentro do campus, ficou claro que a NINA deveria ser uma tecnologia integrada a qualquer aplicativo, um SDK (Software Development Kit), que pode ser inserido nesses apps como uma espécie de botão e/ou ícone, deste modo, a tecnologia integraria usuários, empresários de diversos aplicativos de transporte das cidades e o poder público para que pudessem dar respostas efetivas de forma emergencial, mas também preventiva.
“Acabamos de publicar os primeiros resultados da utilização da tecnologia NINA no aplicativo Meu Ônibus em Fortaleza para denunciar assédio sexual. Foram quase 1 mil denúncias em quatro meses de operação, o que dá uma média de um caso a cada três horas. As vítimas são mulheres e 56% dos crimes ocorrem dentro dos ônibus, os demais nas paradas e terminais”, disse Simony. Esses dados mostram o quanto a mulher não tem segurança na mobilidade urbana e precisava de uma ferramenta para denunciar, punir agressores e prevenir esse tipo de crime. A capital cearense tem agora as informações iniciais para mapear zonas de risco.
Fortaleza é a quinta maior capital do país, vem se destacando no cenário nacional da mobilidade e abraçou a proposta. Mas foi apenas a primeira cidade a testar essa parceria entre poder público (prefeitura e polícia), empresários do transporte e usuários. “Queremos a NINA em todo o país, e vamos expandir para outros modais também como transporte por aplicativo. A tecnologia tem potencial para unificar a mobilidade urbana e migrar para políticas públicas. O tipo de dado gerado pela NINA Mobile é inédito no Brasil, pois consegue acessar casos reais de crimes sexuais ocorridos no sistema de transporte público, bem como entender a hora em que ocorrem, os locais, as características, o perfil das vítimas, entre outras informações”, explicou Simony.
E não é somente no transporte público que os crimes acontecem. Conversei também com a Gabryella Corrêa, fundadora da Lady Driver, serviço de transporte exclusivo para mulheres, em que todas as motoristas também são mulheres.  Assediada por um motorista chamado via aplicativo, Gabryella transformou a experiência em solução que ajuda a proteger outras mulheres de viverem a mesma experiência.
“Checamos a veracidade de todos os cadastros que entram no app, tanto motoristas quanto passageiras. Nos outros apps qualquer passageiro pode fazer um cadastro falso e cometer crimes com os motoristas. Na Lady Driver é diferente, temos um cadastro rigoroso, por meio do nosso sistema checamos a veracidade do cadastro na polícia e na Receita Federal. Se não for real, a passageira não consegue finalizar o cadastro e chamar uma corrida. Esse método é extremamente seguro e graças a ele não temos violência e assédio dentro do nosso app”, assegurou Gabryella.
A empresa está concentrada somente em São Paulo, mas já tem mais de 1 milhão de downloads, mais de 45 mil motoristas cadastradas e faturamento de R$ 10 milhões em 2018. A Lady Driver foi eleita pelo jornal Financial Times o maior app de transporte feminino do mundo.
Gabryella explica que empreender no Brasil é extremamente difícil, no ecossistema de startups sendo mulher, fazendo uma empresa para mulheres, mais difícil ainda. “Historicamente, o acesso a investimento para startups fundadas por mulheres é bem inferior ao dos homens. Além disso, surgimos em um momento de crise no país, o que poderia ser ruim, mas como a nossa empresa gera renda para muitas mulheres, conseguimos superar a crise e trazer oportunidades”, explicou.
Devido ao sucesso e à necessidade de um serviço de mobilidade para mulheres, a empresa captou R$ 10 milhões até o momento, sendo que R$ 2,4 milhões de investimento vieram por equity crowdfunding. Agora com mais de dois anos de operação em São Paulo, o maior mercado para apps de transporte no mundo, Gabryella se sente confiante para expandir o serviço a outras capitais do Brasil e da América Latina.
Estes são alguns exemplos de mulheres que fizeram de suas experiências traumáticas uma oportunidade de superação, vencendo seus medos e ganhando voz e espaço no ecossistema de startups. Eu, Beatriz, jornalista que escreve este texto, passei por um relacionamento abusivo em 2016 e fui mantida sob cárcere privado após terminar o namoro. Por muito tempo, senti vergonha e nunca falei publicamente sobre o ocorrido. Esta reportagem dedico a todas as mulheres que assim como eu, lutam todos os dias pelo direito e pela dignidade de ser quem a gente é. Que sigamos assim. E como dizia Simone de Beauvoir: “Que nada nos limite. Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância”.
AUTOR
Jornalista e comunicadora de empresas disruptivas e startups. Nos últimos anos fiz a comunicação de grandes empresas de tecnologia como Google Apps For Work (atual G Suite), a escola de programação francesa Le Wagon e a aceleradora Startup Farm, considerada uma das mais prestigiadas aceleradoras da América Latina. É empreendedora na área de PR, consultora de comunicação e colunista do Portal Startse. Escreve sobre empreendedorismo e apoia projetos de inclusão da mulher na tecnologia.

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