Desempregada, a operadora de caixa Bruna Reche, 28, tem recusado ofertas de trabalho nos últimos meses. Não que a situação financeira da família esteja confortável, pelo contrário: as contas atrasadas estão se avolumando e as compras para a casa, ficando mais raras. O problema é outro: como conciliar o serviço no comércio com o horário da creche de Alice, sua filha de três anos?
"Só tenho experiência em comércio. E as vagas que consigo são todas para o período da tarde e da noite, em shoppings. Já recusei várias ofertas boas, porque preciso buscar minha filha às 16h30 na creche. Não tenho com quem deixá-la", conta Bruna, que vive na Brasilândia, na zona norte paulistana.
Seu marido, que atua na área de tecnologia da informação, também não consegue buscar Alice, pois chega por volta das 20h em casa.
Histórias como a de Bruna são comuns entre mães e pais que trabalham em períodos que não se encaixam com o horário de entrada e saída de creches e escolas públicas — na rede particular normalmente há mais flexibilidade de horário, embora encontrar unidades noturnas seja difícil.
Mas como resolver essa questão? O Estado deveria proporcionar vagas para crianças no período noturno? Deixar uma criança na escola até tarde funciona do ponto de vista educacional?
Na semana passada, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou um projeto de lei que autoriza a Prefeitura a criar mais um turno em creches da cidade — algumas unidades ficariam abertas até as 23h, recebendo crianças cujos pais trabalham até mais tarde. A nova lei, porém, ainda precisa da sanção do prefeito Bruno Covas (PSDB).
Caso haja aprovação, seria a primeira vez que a maior cidade do país teria um serviço como esse para crianças tão novas.
'Pedi demissão'
Para Bruna, uma creche que funcione até as 23h resolveria parte do problema. "Para mim, uma creche assim seria ideal, pois eu poderia ficar com Alice em casa até as 14h. Depois, eu a buscaria à noite", explica.
A comerciária, que esperou dois anos por uma vaga para a filha em uma unidade municipal, conta que a incompatibilidade de horários a obrigou a pedir demissão de seu último emprego, há pouco mais de um ano.
"Eu saía às 22h do shopping, mas a aula da Alice acabava às 16h30. Eu precisava pagar uma babá para ficar com ela até meu marido chegar, o que custava R$ 500 por mês. Eu ganhava R$ 1.200. Fiz as contas e vi que não valia a pena. Isso sem contar que eu trabalhava todos os fins de semana. Pedi demissão por não ter onde deixá-la", diz.
Desempregada, agora Bruna só participa de seleções para vagas que sejam compatíveis com a creche da filha — mas ela não tem tido sucesso. Por outro lado, a situação financeira da família piorou bastante apenas com a renda do marido.
"Estamos com duas contas de água e uma de luz atrasadas. Antes de falar com você, tomei um café sem açúcar porque não temos dinheiro para comprar", diz.
A comerciante Maria Aline Macedo, 21, vive situação semelhante com seu filho de dois anos. Ela tem uma loja em Paraisópolis, maior favela de São Paulo, além de estudar à noite. "Meu filho sai às 16h30 da creche. Mas depois eu vou estudar. Preciso deixá-lo com uma babá e com minha mãe", diz.
"É ruim você depender de outras pessoas para ficar com seu filho, mesmo que seja um parente. Minha mãe está mais velha e tem os afazeres dela. Também não quero deixar com uma pessoa que não é preparada, que não é um profissional da área. Eu fico receosa", diz.
Déficit de vagas em creches
A cidade de São Paulo tem um déficit de 9.670 vagas em creches para crianças de zero a cinco anos. Essa fila já foi bem maior e diminuiu nos últimos anos, principalmente com a expansão massiva das unidades conveniadas — creches administradas por entidades privadas que recebem dinheiro da Prefeitura para educar crianças. O sistema foi adotado tanto pelo ex-prefeito Fernando Haddad (PT) quanto pelo atual, o tucano Bruno Covas.
Se por um lado as conveniadas são uma maneira mais fácil e rápida de criar vagas, por outro, elas têm sido alvo de críticas por apresentar mais problemas estruturais, irregularidades e falhas em planos pedagógicos em comparação com a rede municipal.
O novo projeto de lei aprovado em São Paulo autoriza o período noturno nos dois modelos. Inicialmente, o programa funcionaria em caráter de testes em seis ou dez unidades de bairros mais pobres — o horário começaria às 14h para crianças que fiquem até mais tarde. A partir daí, caso a procura aumente, ele poderia se expandido para outros pontos.
Segundo Secretaria Municipal da Educação, o projeto de lei ainda será analisado pelo prefeito, "que pode decidir ou não por sua sanção".
Para o vereador Gilberto Nascimento Jr. (PSC), autor do texto, há uma demanda importante pelo turno da noite em escolas infantis, principalmente entre a população mais pobre. "Se existe essa procura, essas crianças não podem ficar abandonadas pelo poder público", explica o parlamentar, que é membro da Comissão de Educação da cidade.
"Andando pelos bairros pobres, nós vemos muitas mulheres solteiras que têm filhos e que trabalham no comércio ou estudam à noite. Elas não têm onde deixar as crianças e acabam pagando para outras pessoas, na maioria das vezes sem qualificação. Quais os riscos que essas crianças estão expostas e quais os problemas pedagógicos que elas enfrentam?", questiona.
Segundo ele, ainda não há uma estimativa do tamanho da demanda pelo serviço na cidade, nem quanto custaria aos cofres públicos estender o horário — novos educadores teriam de ser contratados, além de vigilantes particulares para o apoio de segurança. "Nós acreditamos que esses dados serão coletados conforme o período de testes comece", afirma o vereador.
Para ceder uma vaga, a Prefeitura teria de analisar individualmente cada caso. "Não é uma vaga para a pessoa que quer ir para balada e não tem onde deixar o filho. É uma vaga permanente, com plano pedagógico como são as outras", diz o parlamentar.
'Não funcionou'
São Paulo não seria a primeira cidade a adotar as creches com horário estendido — países como Suécia contam com o serviço há décadas.
No Brasil, uma das pioneiras no modelo foi a cidade de Pomerode, no interior de Santa Catarina. Há alguns anos, a Prefeitura implantou uma unidade que funcionava até à meia-noite em uma área industrial, onde, em tese, haveria uma grande demanda pelo serviço. Porém, o município decidiu encerrar as atividades da creche noturna no ano passado. Por quê?
Porque ela não funcionou, segundo Jorge Luiz Buerger, secretário de Educação de Pomerode. "Primeiro, não tinha demanda. Havia apenas três crianças no período da noite. Do ponto de vista econômico não fazia sentido, pois nós gastávamos muito para manter a unidade funcionando até tarde, com mais funcionários. Preferimos investir o dinheiro em outras melhorias", diz.
O outro motivo do fechamento, explica Buerger, foi educacional: não houve ganhos pedagógicos. Na maior parte do tempo, os educadores não podiam realizar atividades, pois já era tarde e as crianças estavam cansadas.
"A gente percebeu que não era bom para as crianças. Elas estavam sendo privadas do direito à convivência familiar e comunitária no momento da noite. Também havia sempre a preocupação com a segurança: o diretor da creche, mesmo em casa, precisava ficar sempre alerta", explica Buerger.
A cidade, que tem 32 mil habitantes, encontrou uma alternativa — difícil de aplicar em São Paulo diante do tamanho da população. "Nós negociamos com os empresários para que os funcionários pudessem sair mais cedo do trabalho. Deu certo. Mas, claro, nosso município é pequeno, então, esse tipo de conversa é possível", diz Buerger.
Já no interior de São Paulo, a cidade de Botucatu também estendeu o horário de duas unidades conhecidas "creches do comércio" — na maioria, os alunos são filhos de trabalhadores do setor. Durante a semana, elas funcionam até às 18h — também são as únicas que abrem aos sábados.
"Elas também ficam abertas até às 22h em datas comemorativas, como Dia das Mães ou dos Namorados, quando o comércio na cidade fica aquecido", explica Valdir Paixão, secretário municipal de Educação de Botucatu.
Segundo ele, já houve pedidos para que as unidades funcionem até mais tarde todos os dias. "Mas nós fizemos estudos mostrando que não havia tanta demanda. Nesse ano vamos realizar uma nova pesquisa, mas, do meu ponto de vista, a creche não deveria privar as crianças do convívio com a família", diz Paixão.
Alternativas para creches
Para Cláudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas, as creches noturnas não são uma solução para o problema, pois elas atendem às demandas dos pais, não das crianças.
"A creche surgiu para suprir a necessidade das mães, que começaram a entrar no mercado de trabalho. Mas, depois, ela mudou para um perfil educacional, pois percebemos a importância da criança já receber estímulos desde pequena", explica.
"Hoje, a creche não pode funcionar com um hotelzinho. Ela precisa ter um caráter educacional. Além disso, até do ponto de vista da saúde, não é bom para uma criança se deslocar de um lugar para o outro tarde da noite", diz.
Anna Maria Chiesa, consultora técnica da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, concorda que o sono e o bem-estar da criança devem ser prioridade para o poder público. "Como fica o sono de uma criança em uma creche que funciona até tarde? Nessa idade, ela precisa dormir 11 horas por noite, e mais alguns cochilos durante o dia", diz.
Mas o que fazer, então, com as famílias que não têm onde deixar os filhos durante à noite?
Para a Costin, o rol de alternativas deveria ser ampliado. Ela cita um aumento do tempo de licenças maternidade e paternidade. No Brasil, esse período fora do trabalho é de no mínimo três meses e no máximo seis para as mulheres — para os pais, são apenas cinco dias obrigatórios, com possibilidade de ampliar para 20 caso o empregador seja cadastrado como "empresa cidadã".
"Em alguns países, como a Suécia, o pai e a mãe têm direito ao mesmo tempo de licença, de maneira alternada. Isso ajuda o pai a também criar vínculos com a criança", afirma.
Uma alternativa polêmica, cita Costin, seria a incorporação pelo poder público das chamadas "mães crecheiras", mulheres que abrigam crianças durante o trabalho dos pais — serviço informal comum em comunidades mais pobres.
"Há alguns países em que essas pessoas são treinadas pelo Estado e remuneradas para ficar com as crianças. Como hoje é informal no Brasil, não há preparo e regulamentação para que esse serviço seja de qualidade".
Já Chiesa aponta uma consciência maior da corresponsabilidade pela educação das crianças — e ela não viria apenas dos pais, mas também do restante da família, do Estado e até das empresas. "Há empregadores que já se conscientizaram e trocam mães para horários melhores, aumentam o home office, ampliam o tempo de retirada de leite e até dão mais tempo de licença-paternidade", diz.
"Hoje, um bom lugar para trabalhar não é apenas aquele que cria um lugarzinho para você deixar sua bicicleta, mas também aqueles que dão mais condições para pais e mãe criarem seus filhos", afirma.
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