28/02/2020
Dançarinas negras e latinas estão usando seus corpos, mentes e convicções para mudar o mundo do balé, por dentro e por fora.
Apesar de documentar o declínio do balé no fim do século 19 e nos mostrar o sofrimento das dançarinas pelas mãos dos patronos – homens ―, os trabalhos do artista francês Edgar Degas deixaram de lado esse contexto horrível, pelo menos na imaginação popular. Hoje em dia, as cenas são imediatamente reconhecidas e simbolizam tudo o que o balé significa – o que é belo, perfeito, imaculado ―, tudo isso codificado pela pele branca.
Até hoje, o balé valoriza atributos físicos e emocionais que separavam a nobreza europeia dos cidadãos comuns – elegância, delicadeza, respeito à etiqueta e à hierarquia, postura ereta. Então parece que balé e pele branca são inseparáveis. Divorciá-los significa nada menos que extinguir essa forma artística.
Algumas pessoas envolvidas com esse mundo reforçam essa ideia, favorecendo a homogeneidade e dizendo que dançarinos e dançarinas negras na companhia poderiam acabar com a simetria que tanto agrada aos olhos de alguns. Outras simplesmente rejeitam pessoas negras afirmando que elas têm silhuetas inadequadas. O impacto cumulativo dessas crenças é sentido especialmente por dançarinos aspirantes não brancos.
A estudiosa de dança Brenda Dixon Gottschild explica isso em seu livro “Digging the Africanist Presence in American Performance” (entendendo a presença africanista na performance americana, em tradução livre). Para Gottschild, trata-se de um problema sistêmico, um caso de negros sendo “interrogados, julgados e condenados com base em uma estética branca”.
No balé, uma coluna estritamente reta é o princípio básico do qual todo movimento flui e para o qual todo movimento deve retornar. Já as danças africanas animam o corpo com uma relativa “igualdade democrática”. O resultado, afirma Gottschild, é que os padrões europeus consideram as tradições da dança negra “vulgares, cômicas, descontroladas, indisciplinadas e, acima de tudo, promíscuas”. Isso permitiu que o balé normalizasse em seu cânone estereótipos raciais e de gênero.
Em 2018, quando a estrela do English National Ballet, Precious Adams, recusou-se a usar a meia-calça rosa regulamentar (ela exigia uma que combinasse com seu tom de pele marrom), sua insistência enfureceu os puristas. Em dezembro de 2019, o Teatro Bolshoi, da Rússia, defendeu o uso do blackface na montagem de La Bayadère. Produções modernas continuam vendendo estereótipos orientais. O tradicional e adorado balé “O Quebra-Nozes”, encenado todo fim de ano, usa bigodes Fu Manchu e dedos indicadores estendidos (com a intenção de indicar palitinhos).
Nomeado para chefiar o Paris Opera Ballet em 2014, o coreógrafo Benjamin Millepied, responsável pela coreografia do filme “Cisne Negro”, enfrentou muita resistência ao tentar dar mais diversidade a uma companhia de 150 brancos e que remonta à corte imperial de Louis XIV. Sua recusa em permitir que bailarinos se apresentassem de blackface incomodou os conservadores do balé ― o zelo reformista de Millipied provocou seu pedido de demissão pouco mais de um ano depois de assumir o cargo.
Apesar de sua indiferença histórica em relação à política de raças, o balé mostrou que pode exigir representação. Hoje é um fato conhecido que Misty Copeland tenha se tornado a primeira negra e ser a bailarina principal do American Ballet Theatre, de Nova York. Mas existem vários outros exemplos.
Fundado após o assassinato de Martin Luther King em 1968 pelo visionário coreógrafo Arthur Mitchell, o Dance Theatre of Harlem (DTH) acabou com uma regra de 300 anos ao vestir os dançarinos com meias-calças e sapatilhas da cor de suas peles – itens que até hoje são marca registrada de suas produções.
A releitura dos clássicos Firebird (1982) e Giselle (1984) da DTH são momentos decisivos na história moderna do balé. O primeiro colocou a obra-prima de Stravinsky de 1910 no Caribe; a segunda trocou a paisagem original da Renânia pelo sul escravagista dos Estados Unidos.
A crise coletiva de consciência com o segundo ato de O Quebra-Nozes, de George Balanchine, levou a promessas públicas de eliminar o yellowface das produções. O The Black Iris Project, premiado coletivo de balé do coreógrafo e estudioso da arte Jeremy McQueen, encenou várias produções comoventes focadas nas experiências vividas pelos negros. Hiplet, um híbrido de balé com hip-hop concebido pelo coreógrafo Homer Hans Bryant, junta a energia do hip-hop com o controle preciso do balé.
E, em 2019, Charlotte Nebres, cujos pais vêm de Trinidad e das Filipinas, tornou-se a primeira negra a ser escalada para o papel de Marie na tradicional produção anual do Quebra-Nozes do New York City Ballet.
As empresas que produzem materiais usados pelos bailarinos também estão acordando para a questão. Empresas tradicionais, como Freed e Gaynor Minden, já oferecem sapatilhas de ponta em diversos tons. Fabricantes de meias-calças mais recentes, como NudeBarre e Ballet Cafe Naturals, também estão servindo um mercado que tem cores de pele que vão do marrom ao negro.
O HuffPost US conversou com algumas bailarinas não brancas sobre seus segredos de estilo e beleza para entender como elas trazem a individualidade para um estilo de dança baseado na uniformidade dos corpos e em padrões exigentes de auto-apresentação.
Cortney Taylor Key
Key, que mora em Nova York, lembra de sentir a conexão e o desafio do balé desde muito pequena. “Adoro a realeza do balé, a teatralidade e as histórias, apesar de achar que muitas dessas histórias contadas pelas mulheres não brancas não são suas”, disse ela ao HuffPost.
“Lembro de ver Lauren Anderson com Julie Kent em uma revista e me surpreender com o talento e a beleza dela. Fiquei espantada porque ela era parecida comigo, marrom e tonificada. Eu sentia a energia dela através da página. Quando entrei para o Dance Theatre do Harlem, vi bailarinas pardas como Charmaine Hunter, Endolyn Taylor, Lisa Attles, Bethania Gomes e Yvonne Hall. O DTH fez uma apresentação na primeira universidade em que estudei. Fiquei muito impressionada com uma bailarina em particular, e hoje ela é uma amiga querida e uma das minhas dançarinas prediletas: Paunika Jones.”
Key se preocupa com o fato de que os recursos destinados às artes estejam diminuindo, o que pode ter impacto na visibilidade de negros e pardos no balé. “Acho que o governo deveria financiar o acesso de crianças não brancas a todas as formas de arte clássica desde muito cedo. Se negros e pardos tivessem mais acesso, não haveria tamanho choque cultural. Não seria tão estranho ver alguém fazendo algo em que você só pensa e guarda para si mesmo. Às vezes, ver é crer. Se mais crianças não brancas vissem o que podem vir a ser, acreditariam que tudo é possível.”
Em sua carreira, Key é implacavelmente autêntica e profissional. Ela insiste que seu cabelo não seja tratado de maneira diferente. “Se você quer uma trança francesa, te dou uma trança francesa. Se você quer coque, te dou coque. O objetivo é caprichar e demonstrar excelência. Farei o necessário para mostrar cabelo encaracolado em seu estado natural e parecer o mais caprichado possível. Esse é o meu objetivo.”
Key aprendeu a pintar as sapatilhas em sua breve passagem pelo DTH, uma experiência que ela classifica de “espiritual”. Ela gostaria que os fornecedores de materiais para bailarinos fossem mais abrangente em relação às diversas cores de pele, não apenas se limitando a algumas tonalidades. “Meu estilo de sapatilha de ponta (Chacott Veronese II / III) só agora é vendido na cor marrom, graças à minha querida amiga Ingrid Silva. Minha esperança é que elas estejam disponíveis em todos os tons, porque as mulheres têm peles com toques de vermelho, roxo e amarelo.”
Hoje em dia, Key trabalha com Paunika Jones para criar um espaço seguro para as mulheres não brancas no balé. O Negus Ballerina Project é uma incubadora de dança cujo objetivo é honrar corpos e vozes de dançarinos subrepresentados nesta forma de arte euroclássica.
Daphne M. Lee
Daphne M. Lee, a vencedora do Miss Black America de 2017, dança profissionalmente há dez anos e hoje faz parte do Dance Theatre of Harlem, de Nova York. “Adoro desafiar o público sobre o que é e quem é uma bailarina”, disse ela ao HuffPost. “Adoro quando as pessoas ficam tipo ‘Ah, você tem que ter arcos altos’ [nos pés] ou ‘Você tem de ser flexível’. Eu não sou nenhuma dessas duas coisas. Acho que adoro derrubar esses mitos. Quero que o mundo (em particular os Estados Unidos) conheça o balé da mesma maneira que conhece o futebol americano, que aprenda mais e respeite mais as artes em geral.”
Em seu mestrado, Lee pesquisa o papel dos cabelos das negras no balé. “Meu objetivo é desafiar a maneira como os cabelos das negras são incorporados ao reino do balé clássico. As bailarinas costumam usar tranças francesas ou coques; certas companhias permitem que as dançarinas escolham. Mas isso vem com a tradição de manter o cabelo preso, para mostrar o pescoço e retratar a elegância. Posso usar coque se tiver trança nagô? Não podemos esquecer que muitos desses balés são baseados em uma certa textura do cabelo, mas hoje em dia as companhias de dança e os dançarinos estão questionando o que é a beleza no balé no século 21.”
Quando se trata de encontrar roupas de balé para combinar com seu tom de pele, Lee encontrou uma solução. “Sou patrocinada pela Gaynor Minden, então eles ajudaram a desenvolver uma sapatilha de ponta no meu tom de pele. Também recebo collants, roupas de aquecimento e outros materiais. Para mim, o importante é a simplicidade. As roupas têm de me fazer sentir o melhor possível.”
Miranda Silveira
“Precisamos nos levantar por nós mesmas, por nossas irmãs e por aqueles que vieram antes de nós e lutaram para estarmos onde estamos agora”, diz Miranda Silveira, brasileira que integra o San Francisco Ballet. “Sentir-se representada no que você faz para viver é essencial.”
Ela vem de uma família cheia de gingado. “Dança sempre foi muito presente em casa”, contou ao HuffPost. “A gente sempre dançava na sala.” Sua mãe fez parte de uma companhia de jazz de Nova York e seu pai fez aulas de dança, por causa de sua carreira de ator. “Sempre vi o mundo em termos de movimento ― talvez por isso tenha escolhido dançar”, disse ela.
Silveira afirma que, no começo, tinha medo que seu cabelo e seu tom de pele não fossem adequados para o balé. “Meu cabelo é muito encarapinhado, e isso sempre me preocupou em relação ao trabalho. É preciso ter coragem e trabalhar consigo mesma para aceitar que você é você. O que importa é como você dança, não que tipo de cabelo você tem ou qual é a cor da sua pele.”
Silveira usa collants Yumiko, porque eles são bem feitos e duram anos. “Tentei evitar meias cor-de-rosa nos ensaios e só as uso nas performances. Mas a esperança é que, mais cedo ou mais tarde, possamos usar meias-calças e sapatilhas da cor da nossa pele.” (Embora o balé contemporâneo tenha abraçado pernas nuas e sapatilhas em tons da pele, o rosa ainda é a tradição no balé clássico e neoclássico.)
Raven Barkley
Barkley, nascida no Bronx e natural de Charlotte, é bailarina profissional há cinco anos. “O que mais amo em ser bailarina é a beleza de tudo envolve a dança”, disse ela ao HuffPost. “Acho inspirador usar o corpo humano para criar arte e transmitir uma mensagem.” Ela gosta especialmente da ideia de inspirar jovens não brancos: “Adoro receber cartinhas e mensagens durante a temporada do Quebra-Nozes de alguns dos jovens dançarinos na academia. Isso mostra que, de alguma forma, estou cumprindo meu destino.”
No estúdio, ela usa sapatilhas personalizadas da Freed of London na cor bronze. Barkley ficou grata, pois isso significou parar de pintar as sapatilhas. Às vezes ela gosta de usar meia-calça do tom da pele. “Cria uma estética bonita”, disse ela.
A vaselina e suas propriedades restauradoras são indispensáveis em sua rotina de cuidados com a pele. “O Vaselina é definitivamente um clássico. Minha mãe, minha avó e algumas de minhas tias-avós brincavam dizendo que era de ‘se engraxar’ e ir para a cama, ou seja, aplicar um pouco desse derivado do petróleo no rosto e ir dormir.”
Olivia Boisson
“Não compro sapatilhas e roupas com tanta frequência”, disse ao HuffPost Boisson, que faz parte do New York City Ballet. Ela é grata pela mudança de atitude das empresas que produzem calçados especializados para dançarinas, pois isso “faz as meninas sentirem que estão sendo levadas em consideração. É um grande passo para que o mundo do balé seja mais inclusivo. Mais representação ajuda outras jovens a enxergarem a si mesmas nesse papel.”
Como seu cabelo fica preso num coque para as apresentações e ensaios, ela tenta não amarrá-lo com muita força para não quebrar os cabelos delicados da frente. “Para as performances, tenho de usar o cabelo puxado para trás, então molho a frente e adiciono um pouco de condicionador leave-in antes de escová-lo para trás.”
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