A justiça determinará em quais casos o réu deverá participar de grupos reflexivos e, para estes casos, o descumprimento da medida obrigatória gera ordem de prisão
Gabriella Feola
publicado em 17 de Fevereiro de 2020
O Plenário do Senado aprovou o projeto de lei 9/2016 que permite aos juízes determinar que homens autores de violência contra mulheres frequentem grupos de reeducação e tenham acompanhamento psicossocial de maneira obrigatória. O projeto de lei é um complemento à Lei Maria da Penha (Nº11.340) e segue para a sanção presidencial.
“As duas alterações promovidas pela Câmara [reeducação e acompanhamento psicossocial] não modificaram o propósito do projeto original. A frequência a esses grupos de apoio e reeducação não apenas contribui para reduzir as reincidências, mas concorre também para a proteção emocional do próprio agressor, que terá oportunidade de se reeducar para conviver melhor com a sociedade em geral e com sua família em particular”, escreveu o relator do projeto, senador Arolde de Oliveira (PSD-RJ)
“As duas alterações promovidas pela Câmara [reeducação e acompanhamento psicossocial] não modificaram o propósito do projeto original. A frequência a esses grupos de apoio e reeducação não apenas contribui para reduzir as reincidências, mas concorre também para a proteção emocional do próprio agressor, que terá oportunidade de se reeducar para conviver melhor com a sociedade em geral e com sua família em particular”, escreveu o relator do projeto, senador Arolde de Oliveira (PSD-RJ)
Hoje juízes e promotores já determinam que acusados passem a frequentar os grupos como medida protetiva, ou como parte do cumprimento da pena.
Acontece que como este tipo de determinação não está prevista em lei e, caso o homem não deseje aderir ao programa de reabilitação, cria-se um impasse legal: poderia ele ser preso por descumprir uma medida que não está prevista em lei?
O novo projeto resolve justamente este impasse: caso o homem que cometeu agressão não cumpra a determinação da promotoria, ele pode ser preso e responder por crime de descumprimento da medida protetiva.
Para entender as diferenças e a importância desta mudança na Lei Maria da Penha, conversamos com Sérgio Barbosa, professor e consultor do projeto “Tempo de Despertar” que trabalha com a reeducação de homens que cometeram agressões contra parceiras, e com a promotora Silvia Chakian, Coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
A frequência a grupos e acompanhamento será obrigatória para todos que cometerem agressões?
Silvia enfatiza que será obrigatório apenas para os casos que o ministério público entender que é preciso encaminhamento.
“Não é todo caso e há casos que nem é recomendado que este homem seja encaminhado. Se você tem um grupo reflexivo discutindo a violência contra a mulher doméstica e familiar, naquele grupo em que se fala de lesão corporal, violência, perturbação, você não pode incluir ali um estuprador em série, um feminicida serial. (...) Há de se ter cautela e fixar parâmetros para o encaminhamento.”
O Sérgio explica que, nos grupos em que trabalha, os casos que não podem ser encaminhados são: autores de violência sexual, casos de tentativa de feminicídio ou de feminicídio, casos reincidentes, casos em que o agressor apresente transtornos psiquiátricos ou dependência química.
Qual o efeito dos grupos no combate às violências contra mulheres?
Hoje os dados já evidenciam que a reeducação ou ressocialização do homem que cometeu agressão têm um papel importante na redução da reincidência da violência contra as mulheres e, portanto, a mudança na lei é uma vitória a ser comemorada por todas e todos.
Como a promotora Gabriela Mansur aponta no documentário “O silêncio dos homens”, sem os grupos, 65% dos homens que cometeram uma agressão acabaram reincidindo e cometendo outra. Quando os autores de agressões passam a frequentar os grupos, a reincidência cai para 2%.
A promotora ainda aponta que lutar contra a reincidência de agressões cotidianas, é uma forma de prevenir a morte de mulheres:
“Porque todos os casos de feminicídio vem numa escalada da violência, se você consegue impedir de alguma forma aquele homem de continuar neste ciclo, você consegue evitar a morte de uma mulher.” (Mansur, G.)
Gabriela ainda lembra como a reeducação é, em alguns casos, demanda das mulheres que sofreram violência:
“Foram as próprias mulheres vítimas de violência - e isso é muito importante falar - que me deram a luz de trabalhar com os agressores: 'Conversa com ele', 'Promotora, chama ele aqui'.” (Mansur, G.)
Para quem acompanha os trabalhos dos grupos, fica claro que não é uma forma de atenuar a responsabilização masculina, mas uma estratégia baseada em dados para reduzir a violência na sua raiz, mudando as crenças e comportamentos que levam o homem a agir dessa forma.
Gabriela ainda ressalta que o acompanhamento psicológico para as vítimas também é essencial e não é excluído quando se pensa em acompanhar e reeducar o agressor:
“Óbvio que nós vamos falar da mulher, trabalhar com o empoderamento feminino e com toda a parte de proteção e assistência a essa mulher que sofre violência (aliás eu dedico meus dias a isso). Porém nos temos que falar do outro lado da violência: quem é este homem que está agredindo? Porque ele está agredindo estas mulheres? Como fazer para que ele não agrida mais?” (Mansur, G.)
Silvia reitera a eficácia e a importância dos grupos, mas também fala sobre os desafios a serem superados na coleta de dados precisos sobre a reincidência:
“A gente só tem conhecimento do que ingressa no sistema penal e isso não necessariamente significa que este homem não reincidiu, porque é alta a notificação. Então a gente precisa fazer um acompanhamento por um tempo maior destes homens e talvez encontros posteriores com os mesmos homens que participaram para que a gente possa aferir de forma mais real essa reincidência.” (Chakian, S.)
O efeito da cadeia:
Todas as formas de violências são graves e precisam ser olhadas com cuidado pela lei, mas, neste enfrentamento jurídico é preciso identificar a diferença de características entre os tipos de violência contra as mulheres para saber como responsabilizar estes diferentes perfis de agressores, visando a menor reincidência e maior segurança para as mulheres.
Em uma reportagem da Agência Pública, o psicólogo responsável por um dos grupos reflexivos comenta:
“Eles entram na cadeia com raiva das mulheres que agrediram e saem de lá com raiva de todas as mulheres do mundo, de todos os policiais do mundo, de todo o sistema prisional. Com essa revolta, a chance deles agredirem a mesma mulher ou outras eleva-se ao extremo.” (Vale ler a reportagem inteira depois. Fica aqui o Link)
Em “Posicionamentos críticos e éticos sobre a violência contra as mulheres”, Benedito Medrado reitera “a punição não tem ajudado na “prevenção” nem na compreensão da situação” (MEDRADO: 2008, p. 83).
Entendendo a diferença de casos e dos entendimentos judiciais, Silvia explica que, em sua vara, se recomenda a participação em grupos aos agressores que estiverem cumprindo medida protetiva, mas é possível que juízes, mesmo decretando prisão possam determinar, posteriormente, a participação do autor da violência a grupos de reeducação.
Como funcionam os grupos reflexivos?
Pedimos que Sérgio e Silvia nos contassem um pouco da prática de como estes grupos funcionam na prática
Silvia conta que há uma variedade de grupo e de forma de funcionamento e que cada cidade ou estado pode ter o seu modelo e forma de operar. Sérgio dá detalhes explicando que “hoje estes grupos funcionam hora financiados pelas prefeituras, pelo poder público, ou por editais: editais criados em agências financiadoras que combatem a violência [contra mulheres]”.
Ainda há a possibilidade de que a condenação de alguns casos envolva multa a ser paga pelo autor da violência e que este valor seja destinado para o financiamento de grupos de reeducação.
Sobre os encaminhamentos Silvia conta que os homens podem ser encaminhados para os grupos como parte do cumprimento da pena, ou como medida protetiva. A promotora esclarece que a sua vara faz os encaminhamentos como medida protetiva. Nestes casos, assim que a mulher realiza a denúncia, o autor da agressão vai ser intimado comparecer a uma audiência coletiva na qual são apresentados os trabalhos dos grupos e dá-se a opção dos intimados escolherem qual opção preferem.
Ainda seguindo a promotora a adesão tem sido alta em sua vara, graças à audiência explicativa e ao trabalho junto dos advogados de defesa que recomendam e incentivam que seus clientes participem dos grupos.
O homem que cometeu violência deverá participar cerca de 10 a 20 encontros, dependendo da determinação judicial, que podem ser realizados semanalmente ou a cada quinzena.
Os grupos já não existiam antes? O que mudou?
Mudou que agora, sempre que houver recomendação judicial, passa a ser obrigatório que o autor da violência frequente os grupos, havendo punição legal embasada em caso de descumprimento da medida.
“Em qualquer lugar que este homem é encaminhado como medida protetiva hoje, a hipótese de descumprimento não gerará prisão preventiva. E quando essa iniciativa legislativa for sancionada, ela criando essa possibilidade expressa de medida protetiva de frequência aos grupos reflexivos. Na medida que a nova lei cria essa previsão expressa a medida protetiva como processo e reeducação, o descumprimento gera prisão preventiva.Se ele descumprir ele pode responder por um outro crime, que é o crime de descumprimento de medida protetiva." (Chakian, S.)
A mudança é significativa porque você consegue criar um caráter impositivo para essa política e ai você consegue mais adesão. Ainda que hoje a gente tenha uma quantidade grande de autor de violência que não querem aderir, mesmo diante das orientações, isso vai acabar, porque ai vem uma ordem, uma decisão judicial impondo a frequência e com previsão de consequência para o descumprimento.
Vai ter grupos para todo mundo?
Um balanço anual de denúncias pelo 180 aponta que todo ano são registradas mais de 90 mil ligações, sem contar as outras formas de denúncia.
Se hoje carência já é grande, como foi apontado por Sérgio, com a obrigatoriedade, ela vai se tornar ainda maior.
Para Silvia, apesar da carência de grupos reflexivos e de reeducação, a lei vai impulsionar o surgimento de políticas públicas voltadas para este propósito:
“essa iniciativa vai evidenciar uma carência muito grande no país como um todo e exigir a adequação para que a lei seja aplicada, porque a lei só pode ser aplicada se houver naquela região pelo menos um grupo reflexivo.” (Chakian, S.)
A promotora ainda aponta que para avançar no desenvolvimento destas políticas é necessário avançar na conscientização da importância dessa medida e na capacitação de profissionais para trabalhar com essa questão.
Como atuar no enfrentamento das violências contra as mulheres?
Para quem tem interesse no assunto, separamos mais informações sobre os grupos reflexivos que existem no Brasil, onde encontrá-los e como trabalhar com eles.
Há quanto tempo os grupos reflexivos vêm sendo feitos no Brasil?
Até a década de 1990 o enfrentamento à violência se concentrava na atenção às mulheres que foram vítimas, incentivando a denúncia e buscando a prevenção das agressões.
Na virada do milênio, começaram a surgir iniciativas de ativistas que já atentavam para a importância de trabalhar em paralelo com os homens. Sérgio começou o trabalho com o tema por esta época. Em 2000 Flávio Urra entrou em contato com um grupo misto, de homens e mulheres, que lidava com o tema e passou a defender a importância de trabalhar também com quem cometeu a agressão. Neste mesmo ano Urra trabalhou com Sérgio no Centro de Educação para a Saúde (CES).
Apesar das iniciativas pioneiras, é em 2006, com a promulgação da Lei Maria da Penha, que se começam a ter mais trabalhos de atenção a homens que cometeram agressões. A lei já previa que se trabalhasse com os autores da violência como forma de impedir sua reincidência, mas colocava esta medida de modo taxativo ou obrigatório.
Como posso me capacitar pra conduzir um desses grupos ou trabalhos com homens que cometeram agressão?
O Instituto NOOS tem um curso de capacitação feito para quem tem interesse em trabalhar como facilitador. O curso se dirige a “pessoas interessadas em capacitar-se metodologicamente em ações grupais no campo de estudos de gênero, bem como sua articulação com a problemática da violência doméstica e intrafamiliar.”
Para saber mais sobre o curso, clique aqui.
Se você tem interesse em participar, para consultar as próximas datas de oferecimento, envie um e-mail para secretaria@noos.org.br.
Como criar um grupo reflexivo para homens autores de violência?
A sugestão seria começar pela formação no Instituto NOOS. Em seguida, para entender mais do caráter prático de começar um grupo reflexivo para trabalhar com autores de violência, recomendamos seguir as instruções deste artigo: “Programas de atenção a homens autores de violência contra as mulheres: um panorama das intervenções no Brasil”
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