Na cultura pop, mulheres são frequentemente objetificadas e descartadas. Mas mesmo quando não somos feitas de vítimas, as alternativas deixam muito a desejar.
Por Brit Marling
Eu me mudei pra Los Angeles para me tornar atriz aos 24 anos. Estas são as descrições dos papéis para os quais fiz teste: “magra e atraente, esposa de Dave”; “garota robô, um feito notável da engenharia”; “seus seios são grandes e ela está vestindo um suéter vermelho.”
Pus enchimento no sutiã para esse último. Mesmo assim, não peguei o papel.
Depois de um tempo, ficou difícil dizer qual era a maior fonte da minha depressão: não fazer parte de um filme de terror em que eu tinha três falas e morria na página 4 ou o simples fato de estar fazendo teste para interpretar esse tipo de papel. Depois de dezenas de audições e nenhuma chamada de retorno, minha mãe sugeriu que eu colocasse silicone nos seios. Na perspectiva dela, eu havia me afastado de um trabalho cobiçado na Goldman Sachs e escolhido uma profissão onde me tornaria uma matéria-prima. Ela queria ajudar a me vender melhor.
Depois de um tempo, ficou difícil dizer qual era a maior fonte da minha depressão: não fazer parte de um filme de terror em que eu tinha três falas e morria na página 4 ou o simples fato de estar fazendo teste para interpretar esse tipo de papel. Depois de dezenas de audições e nenhuma chamada de retorno, minha mãe sugeriu que eu colocasse silicone nos seios. Na perspectiva dela, eu havia me afastado de um trabalho cobiçado na Goldman Sachs e escolhido uma profissão onde me tornaria uma matéria-prima. Ela queria ajudar a me vender melhor.
Mas eu não estava atraída pela atuação porque queria ser desejada. Estava atraída pela atuação porque achava que ela permitiria que eu me tornasse a pessoa completa e confortável comigo mesma que me lembrava ser na infância — uma que podia imaginar livremente, escutar profundamente e sentir com todo seu coração.
Continuei a fazer testes e a falhar. Minha depressão se aprofundou. Minha auto-estima despencou. Meu namorado ficava bêbado e socava a parede, fazendo buracos nela bem ao lado da minha cabeça. Ele cuspiu na minha cara. Eu permiti. Ele se dissolveu em lágrimas nos meus braços. Eu permiti. E depois eu vasculhei as cinzas de sua raiva e da raiva do pai dele para ajudá-lo a encontrar o perdão que ele tanto precisava para seguir em frente. Eu estava fazendo o teste para ser a “esposa de Dave”. Eu me tornei a “garota robô, um feito notável de engenharia”.
Depois de um dia fugindo de homens com motosserras em salas de teste e uma noite fugindo do homem com quem eu dividia a cama, decidi que não ia mais fazer audições. Eu senti que tinha que escrever meu caminho pra fora desses papéis ou não encontraria meu caminho no mundo real também. Eu não poderia ser aquilo que não enxergava na tela.
Então, fui à biblioteca pública de Los Angeles e comecei a ler livros e assistir filmes sobre como escrever dramas pra tela. Eu me agarrei desde Jodie Foster em “Silêncio dos Inocentes” de Jonathan Demme” a Holly Hunter em “O Piano” de Jane Campion”.
Mas fora algumas exceções, fiquei chocada com o número de narrativas dramáticas que assassinavam suas personagens femininas.
Em “Os Corruptos”, ela toma uma jarra de café fervente na cara e depois é baleada nas costas. Em “Chinatown” a bala rasga seu cérebro e sai por seus olhos. E caso isso pareça uma tendência do passado, considere o noir mais recente “Blade Runner 2049”, onde a femme fatale holográfica é deletada e as demais mulheres são esfaqueadas, afogadas e estripadas como peixe.
Até a vivaz Antígona, a corajosa Joana d’Arc e as libertárias Thelma e Louise têm fins trágicos, em grande parte por serem vivazes, corajosas e libertárias. Elas podem desafiar reis, recusar sua beleza e se defender contra a violência. Mas é um desafio para um roteirista imaginar um mundo em que essas mulheres livres possam existir sem consequências brutais.
Vivemos em um mundo que é reflexo direto das histórias que contamos. Quase quatro mulheres por dia são assassinadas nos Estados Unidos pelas mãos de seus parceiros ou ex-parceiros. Uma em cada quatro mulheres na América foi vítima de estupro.
Eu sou uma dessas quatro. Nossas narrativas nos dizem que as mulheres são objetos e objetos são descartáveis, por isso somos sempre objetificadas e frequentemente descartadas.
Existem séculos de tentativa e erro dentro da “jornada do herói”, em que um jovem é chamado à aventura, desafiado pelas provações, enfrenta uma batalha clímax e sai vitorioso, transformando-se em um herói. E embora existam padrões narrativos para as aventuras das meninas — “Alice no País das Maravilhas”, “O Mágico de Oz” — essas são poucas e distantes entre si, e no caso das mulheres adultas, menos ainda.
Mesmo quando me vi escrevendo histórias sobre mulheres se rebelando contra o patriarcado, ainda me parecia que o que acabei descrevendo foram os limites do patriarcado. Quanto mais restrita me sentia no mundo real, mais me voltava para a ficção científica, ficção especulativa e fantasia indie.
Eu acabei coescrevendo, produzindo e estrelando dois filmes de baixo orçamento. “Another Earth” e “Sound of My Voice”. Ambas histórias deixaram a realidade distante o suficiente para me dar liberdade mental para imaginar personagens femininas se comportando de maneira nem sempre vistas na tela.
Eu saí do Festival de Sundance com propostas para atuar em projetos que nunca teria tido a chance de ter lido uma semana antes. A maioria desses papéis ainda eram a namorada, a amante, a mãe. Mas havia uma nova personagem em oferta para mim também, uma que sobrevivia a história.
Entra em cena: A Mulher Protagonista Forte.
Ela é uma assassina, uma espiã, uma soldada, uma super-heroína, uma C.E.O. Ela pode estancar uma ferida com um absorvente enquanto foge de algo. Ela tem o talento do MacGyver, mas fica melhor que ele quando veste um top.
Atuar como a Mulher Protagonista Forte mudou tanto quem eu era como o que eu pensava que era capaz de fazer. Treinar para fazer meu próprio trabalho de dublê me fez sentir formidável e respeitada no set. Atuar em cenas onde eu era a chefe demitindo homens tinha gosto de empoderamento. E sempre será melhor estar segurando a arma em cena do que implorando por sua vida na outra extremidade do cano.
Seria difícil negar que existe nutrição a ser extraída de qualquer narrativa que dê força e voz às mulheres, num mundo em que elas frequentemente estão sem os dois. Mas quanto mais eu atuava como a Mulher Protagonista Forte, mais eu me tornava ciente da estreita condição dos pontos fortes das personagens — destreza física, ambição linear, racionalidade focada. Modalidades masculinas de poder.
Pensei nos filmes que assisti e nas histórias que li enterradas nas pilhas da biblioteca. Comecei a ver algo mais profundo e traiçoeiro por trás de todas aquelas imagens de mulheres mortas e moribundas.
Quando matamos mulheres em nossas histórias, não estamos apenas aniquilando corpos femininos. Estamos aniquilando o feminino como uma força onde quer que esteja — nas mulheres, nos homens, do mundo natural. Porque o que realmente se quer dizer quando dizem que querem mulheres protagonistas fortes é: “Me dê um homem, mas no corpo de uma mulher que eu ainda queira ver nua”.
É difícil para nós imaginar a feminilidade em si — empatia, vulnerabilidade, escuta — como forte. Quando eu olho para o mundo, nossas histórias nos ajudaram a imaginar e depois erguer, são essas as mesmas qualidades que foram derrotadas em favor de uma masculinidade exagerada.
Eu também atuei como uma Mulher Protagonista Forte na vida real — como uma analista de um banco de investimentos, antes de vir para Hollywood. Eu usava tailleur, bebia uísque puro e falava sobre as mulheres e homens com que eu estava dormindo como se fossem commodities de um mercado aberto. Enterrei viva a minha inteligência feminina para poder sobreviver. Eu me destacava na minha tarefa linear de ganhar muito dinheiro com muito dinheiro, independentemente das consequências a longo prazo para os outros e para o meio ambiente.
A mulher solitária V.P. do meu andar e minha mentora na época me deu o seguinte conselho quando ela saiu para ser sócia de um fundo de risco: uma vez por semana, abra a porta da sua sala, quando eles finalmente darem uma para você, e faça uma ligação telefônica onde você grita uma sequência de palavrões numa voz ameaçadora.
Ela acrescentou que realmente não precisa ter uma pessoa do outro lado da linha.
Não acredito que o feminino seja sublime e o masculino seja horrível. Acredito que ambos são valiosos, essenciais, poderosos. Mas nós difamamos um, veneramos o outro e caímos em performances exageradas de ambos que causam danos a todos. Como restauramos o equilíbrio? Ou como evoluímos além das limitações binárias como feminino/masculino se apresentam em primeiro lugar?
Em 2014, eu voltei pra biblioteca e encontrei o livro de Octavia Butler, “A Parábola do Semeador”, um romance de ficção científica escrito em 1993 imaginando um 2020 onde a sociedade teria sucumbido às mudanças climáticas e ao crescimento da desigualdade econômica. A heroína de Butler, Lauren, de 17 anos, tem uma “hiper-empatia” — ela sente, literalmente, a dor das outras pessoas. Esse dom e maldição femininos a prepara para sobreviver a ataques violentos à sua comunidade em Los Angeles e encoraja de maneira bem sucedida uma pequena tribo do norte a recomeçar a vida a partir das sementes que Lauren guardou do jardim de sua família.
Ler a obra da Butler foi como ver a torre de um farol piscando numa ilha de compreensão lá distante no mar. Eu não tinha ideia de como chegar lá, mas eu sabia que ela tinha encontrado algo que salvaria vidas. Ela tinha encontrado uma forma de resistência.
Butler e outras escritoras como Ursula Le Guin, Toni Morrison e Margaret Atwood não se utilizavam da ficção especulativa para colonizar planetas, escravizar novas formas de vida ou extrair minerais alienígenas para obtenção de lucro até o momento que pudesse substituí-los por robôs de inteligência artificial. Essas mulheres usaram os princípios do gênero para mostrar as injustiças do presente e imaginar a nossa evolução.
Com essas idéias em mente, Zal Batmanlij e eu criamos “The OA”, uma série da Netflix sobre Prairie, uma garota cega que é sequestrada e retorna sete anos depois à comunidade em que cresceu com a visão restaurada.
Ela se abre para um grupo de adolescentes perdidos em seu bairro, contando sobre seu cativeiro e as viagens interdimensionais que ela descobriu para sobreviver. Acontece que esses meninos precisam ouvir a história de Prairie tanto quanto ela precisa contar. Pois os meninos enfrentam seu próprio tipo de cativeiro: crescendo dentro das obrigações cada vez mais tóxicas da masculinidade americana.
Com o passar do tempo, eu entendi como moldar uma narrativa exerce uma profunda influência. Histórias inspiram nossas ações. Elas nos concedem existências que são e que não são possíveis, delineiam trilhas que podemos ou não podemos percorrer. Histórias escolhem por quem podemos sentir empatia e por quem não podemos. Pois protegemos aqueles pelos quais sentimos compaixão. Aquilo que objetificamos ou transformamos em mercadoria, acabamos por destruir.
Eu não quero ser a garota morta, ou a esposa do Dave. Mas também não quero ser a mulher protagonista forte, se meu poder for definido em grande parte pela violência e dominação, conquista e colonização.
Às vezes, sinto como ela poderia ser. Uma mulher verdadeiramente livre. Mas quando tento encaixá-la na “jornada do herói”, ela se afasta da imagem como uma miragem. Ela me diz: Brit, a jornada do herói é séculos de precedentes narrativos escritos por homens para mitologizar os homens. Seu padrão é incitar incidentes, tensão crescente, clímax explosivo e desenlace. O que isso lembra você?
Eu digo: o orgasmo de um homem.
E ela diz: Correto. Eu amo o arco do prazer masculino. Mas como você poderia me criar, se eu devo satisfazer apenas a coreografia do desejo de um homem?
E eu digo: É isso aí! Mas então como faço para trazer essa personagem feminina à existência?
Então não ouço mais nada.
Mas mesmo no silêncio eu sonho com respostas. Imagino novas estruturas e mitologias nascidas da coreografia de corpos femininos, corpos sem gênero, corpos de cor, corpos deficientes. Imagino escavar meus próprios desejos, vontades e necessidades, que enterrei tão profundamente para atender aos desejos, vontades e necessidades dos homens ao meu redor, que ainda não tenho certeza de como meu desejo iria alimentar a protagonista mulher de uma narrativa.
Ainda não são soluções. Mas eles são lugares para se cavar.
Escavar, ensinar e celebrar o feminino através de histórias é, dentro de nossa emergência climática, uma questão de sobrevivência humana. O momento em que começamos a imaginar um novo mundo e a compartilhá-lo através de histórias é o momento em que um novo mundo pode realmente vir.
Brit Marling (@britmarling) é o co-criadora e atriz protagonista de “The OA”.
Esse texto foi originalmente publicado aqui, dia 07 de fevereiro de 2020.
Tradução: Andrea Yagui, Tatiana Marra e Ludmila Naves.
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