Certo dia, a psicoterapeuta britânica Philippa Perry estava na sala de espera do consultório médico e, ao seu lado, viu uma mãe acompanhada de seus dois filhos: uma bebezinha doente, que aguardava a consulta, e o irmão mais velho, de cerca de 3 anos.
"O mais velho ficava constantemente pedindo à mãe coisas que ele sabia que ela não conseguiria oferecer naquele momento", relembra Perry à BBC News Brasil. "'Me dá um brinquedo?', 'me dá um suco?', e a mãe respondia irritada."
Estamos diante de uma mãe obviamente cansada e preocupada com a filha bebê. E, ao mesmo tempo, diante de uma criança de 3 anos que provavelmente estava se sentindo insegura e esnobada diante da atenção da mãe para o irmão menor, argumenta Perry.
Se a mãe tivesse percebido isso, talvez pudesse reagir diferentemente e mudar de rumo a desgastante interação com o filho, diz Perry — conhecida no Reino Unido por livros, colunas e programas na imprensa britânica.
"Ela (mãe) poderia ter dito ao filho, 'estou vendo que você está se sentindo deixado de lado com toda a atenção que estou tendo que dar à sua irmã. Sei que isso é difícil para você'. Isso teria tirado o peso que o menino sentia, de não se sentir amado e entendido."
O argumento de Perry é de que se investirmos tempo e energia em entender, aceitar, acolher e verbalizar os sentimentos vivenciados pelos filhos — mesmo que sejam sentimentos negativos, maus-humores e birras —, economizaremos tempo e energia geralmente gastos em interações pouco produtivas e muito desgastantes, como a da mãe britânica com seu filho no consultório médico.
"As crianças precisam ser entendidas quando estão desapontadas", argumenta ela à reportagem. "Em geral, não permitimos que as crianças tenham outros sentimentos que não a felicidade, porque estamos tão ávidos para que elas sejam felizes. Sem querer, acabamos calando-as quando sentem qualquer outra coisa."
E assim, também sem querer, argumenta Perry, acabamos treinando-as para serem irritantes, ou seja, para tentar atrair a atenção dos pais a qualquer custo, como fazia o menino de três anos da história acima.
"Às vezes, elas (crianças) querem tanto a sua atenção que obter uma atenção negativa sua (com broncas ou brigas) é melhor do que não obter atenção nenhuma", escreve Perry em O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido (e seus filhos ficarão gratos por você ler) (ed Fontanar), que ela lança no Brasil neste mês. Ela também vem a São Paulo em 19 de março para uma palestra sobre criação de filhos, pela The School of Life.
"Você não vai 'mimar' seu bebê se der muitas respostas sensíveis aos sinais dele. Tempo investido no começo (da vida das crianças) as deixa acostumadas a ter sua necessidade de conexão satisfeita. Elas internalizam isso, sabendo que podem confiar nisso."
Mais culpa e menos autoridade para os pais?
O objetivo, diz Perry, não é nem aumentar a culpa tradicionalmente associada à maternidade (ou paternidade), nem dar a impressão de que os pais têm mais uma tarefa para inserir em sua rotina familiar.
"Não quero que você se sinta mal a respeito de como pode ter reagido aos sentimentos de seu filho no passado, mas sim quero enfatizar como é importante reconhecer, levar a sério e validar os sentimentos das crianças", escreve a autora.
"A causa mais comum de depressão em adultos não é o que o que está acontecendo com ele no presente, mas sim que, quando criança, (...), em vez de ser entendido e confortado, ele ouviu que não deveria sentir, ou chorou até cair no sono sozinho, ou foi deixado sozinho com sua raiva. Sua capacidade de tolerar diminui."
Ela defende que, embora esse exercício de validação de sentimentos exija "percepção e prática" — e, portanto, algum esforço e bastante paciência —, ele "economiza tempo no longo prazo" ao reduzir parte das batalhas constantes, estreitar vínculos com as crianças e mudar a mentalidade de que os pais "perderão autoridade" sobre os filhos.
"Dizem, 'ele (filho) não saberá quem é que manda'. Mas, nessas horas, precisamos lembrar que estamos do mesmo lado que eles. Caso contrário, ficamos na dinâmica de 'perder ou ganhar'." Ela argumenta que, quando a dinâmica se limita a isso, o perdedor não desenvolve sentimento de cooperação, só de humilhação. "Ninguém fica bem quando é levado a se sentir bobo ou envergonhado."
Outro argumento de Perry é de que o reconhecimento, a nomeação e a validação dos sentimentos das crianças — "nosso toque, nossa boa vontade, o respeito que demonstramos a eles: respeito por seus sentimentos, pela pessoa que são, por suas opiniões e sua interpretação do mundo" — as deixará, ao crescerem, mais confortáveis a contar para os pais o que está acontecendo na vida delas, em vez de guardar para si.
"A criança precisa que o pai/mãe/cuidador seja um contenedor de suas emoções, (ou seja), ser capaz de testemunhar sua raiva, entender por que está com raiva e talvez colocar isso em palavras para ela, encontrando formas aceitáveis para que expressem sua raiva, sem ser punitivo ou exacerbado por ela. O mesmo vale para outras emoções."
Como ficam os limites?
Ela afirma que isso não significa fazer o que a criança quer, mas ser solidário a sua frustração por não obter o que quer. Tampouco significa, diz ela, deixar de impor limites, inclusive os que sejam relativos a seu próprio bem-estar como pai, mãe ou cuidador.
"Temos nossos próprios limites. Mas devemos nos definir a nós mesmos, em vez de definir as crianças. Você pode dizer 'já me cansei de ficar no parque e preciso ir para casa', em vez de dizer 'você já brincou demais, vamos embora'. Quando nós nos definimos, em vez de definir as crianças, elas tendem a responder. (...) Você pode manter um laço de amizade e ao mesmo tempo dizer 'Eu não me sinto confortável que você saia à noite porque eu não acho que seja seguro na sua idade'."
Perry se define como alguém que deu uma criação rígida à filha, hoje já adulta.
"Eu mesma me desapontava comigo. queria ser o tipo de mãe que dissesse, 'claro, pode fazer isso ou aquilo'. Mas não conseguia, por exemplo, gerenciar dez amigas da minha filha em casa depois da escola. Então limitava. Mas eu não dizia que ela não podia dar conta — era eu quem não conseguia dar conta."
Olhar à própria infância
Perry sugere também que pais prestem atenção a experiências de sua própria infância que podem influenciar a forma como reagem a seus filhos hoje.
"Se não olharmos para a maneira com que formos criados e o legado disso, isso pode voltar para nos atormentar", escreve em seu livro. Ela relembra a experiência de seu próprio marido, que teve dificuldade com a paternidade quando a filha do casal completou quatro anos — justamente a idade que ele tinha quando perdeu contato com o pai.
O caminho natural, diz ela, é que ajamos com nossas crianças do mesmo modo como adultos agiram conosco em nossa infância. "Por isso, precisamos pensar no que funcionou conosco e o que não funcionou. Será que ser colocado de castigo no meu quarto fez de mim uma pessoa mais cooperativa, ou alguém mais ressentida? Não gostamos de lembrar dessas coisas, por isso às vezes empurramos isso para o fundo (da memória)."
No livro, ela diz que quando o comportamento dos filhos causa uma emoção muito forte (raiva, ressentimento, frustração, inveja, pânico, irritação, medo etc), pode ser um sinal de que "não necessariamente seu filho está fazendo algo errado, mas de que as próprias feridas dos pais estão sendo tocadas".
Reconhecer esses gatilhos seria, então, o passo inicial para não deixar que eles guiem nossas reações como pais, diz Perry à reportagem: "Precisamos saber quando um sentimento pertence ao presente ou ao passado e ver se ele está no comando (de nossas ações). É muito fácil repetir padrões. Sob pressão, fazemos como foi feito conosco. Mas somos melhores quando refletimos."
Ela destaca que a maioria dos clientes de seu consultório de psicoterapia "tinha pais gentis, bons e bem-intencionados que — como ninguém lhes disse que isso era importante — não conseguiam estar em sintonia com seus filhos".
"Acho que todos fazemos o melhor com o que nos é dado. Quando temos filhos, costumamos perdoar nossos pais ao ver como é difícil. E, em geral, devemos mesmo perdoá-los. Eles não tinham tanta teoria ou acesso ao conhecimento como se tem hoje. E também fizeram o que foi havia sido feito com eles."
Ela conclui dizendo que, mesmo que a despeito da nossa vontade, nossos pais têm "um enorme poder sobre nós".
"Um elogio — ou qualquer coisa — vindo dos pais tem muito mais peso do que um elogio feito por outra pessoa. É um poder desigual. Nosso trabalho, como pais, é não explorar esse poder."
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