Em entrevista à DW Brasil durante visita ao país, a chefe da ONU Mulheres para Américas e Caribe, Maria-Noel Vaeza, diz que agressões contra mulheres têm raízes na disputa por poder, do qual homens não querem abrir mão.
- Deutsche Welle
- 25.02.2020
- Nádia Pontes
"Se não há movimento da sociedade civil, incluindo o feminismo, não há democracia", diz Maria-Noel Vaeza
Agressões de cunho sexual contra mulheres ainda acontecem em toda parte, lamenta Maria-Noel Vaeza, diretora regional da ONU Mulheres para Américas e Caribe. Para Vaeza, isso reflete uma infeliz disputa de poder: homens parecem não gostar que elas tenham papel de destaque, afirmou a uruguaia em entrevista à DW Brasil, durante sua visita ao país.
Sua agenda no Brasil, entre 20 e 23 de fevereiro, incluiu encontros com representantes do governo brasileiro, como a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, a fim de debater direitos das mulheres com base na campanha internacional Geração Igualdade – voltada para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030.
Sua agenda no Brasil, entre 20 e 23 de fevereiro, incluiu encontros com representantes do governo brasileiro, como a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, a fim de debater direitos das mulheres com base na campanha internacional Geração Igualdade – voltada para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030.
Foi também o primeiro encontro da representante da ONU Mulheres Brasil, a ucraniana Anastasia Divinskaya, com autoridades brasileiras desde que ela chegou ao país, em dezembro de 2019.
Apesar das diferenças, Vaeza diz que trabalha para aprofundar os pontos em comum com Damares Alves: o combate à violência contra a mulher e a maior participação política feminina. Em toda a América Latina, homens ainda ocupam cerca de 75% dos parlamentos, lembra ela.
DW Brasil: Neste momento em que a senhora visita o Brasil, um caso de agressão verbal de cunho sexual contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, vinda do próprio presidente, causou revolta. O que a senhora pensa, à frente da ONU Mulheres na região, sobre situações como essa?
Maria-Noel Vaeza: Acompanhei um pouco de longe, pois eu soube do ocorrido quando cheguei ao país – estou vindo do Panamá. Esse problema de ataques a jornalistas é preocupante, mas não é um tema novo, já ocorre há algum tempo. E, claro, as mulheres são as que mais sofrem, pois são objeto de agressões de cunho sexual, de depreciação por meio do nosso gênero. Isso, infelizmente, está acontecendo em todos os lugares.
É um problema que precisa ser banido, isso é inaceitável. Isso é o que acontece também com a participação política da mulher, por isso ela é tão baixa: 75% dos parlamentos na América Latina ainda são formados por homens.
Então não há lugares com modelos de papéis de mulheres e, quando mulheres assumem esses papéis, tratam de desacraditá-las. É uma disputa de poder, e os homens parecem que não permitem deixar o poder para as mulheres.
Isso é parte de um mesmo tema. Os homens têm medo das mulheres porque estamos muito preparadas, saímos muito mais preparadas das universidades, temos competências que os homens não têm. E quando entramos no mercado de trabalho, eles ficam nervosos porque demonstramos que somos muito responsáveis e que não aceitamos fazer um trabalho se não sabemos bem do que estamos falando.
Por isso, desacreditar uma jornalista que fez o trabalho dela, para nós, é muito ruim. Assim como desacreditar uma mulher no Parlamento, desacreditar uma mulher por ser uma mulher.
Temos que estar alertas constantemente. E temos que assegurar que esses temas não sejam esquecidos. Os jornalistas também precisam se unir para que isso não aconteça. Não se pode deixar uma jornalista sozinha pelo fato de ser mulher. Creio que essa solidariedade no mundo está se perdendo, precisamos recuperá-la.
Nós, na ONU Mulheres, estamos promovendo muito a sororidade. Acreditamos muito na solidariedade, no fato de estarmos conectadas e aprendermos umas com as outras.
A senhora se encontrou no Brasil com Damares Alves, que tem uma agenda conservadora e é criticada por movimentos sociais e feministas. Há um conflito de agendas entre o atual ministério e a ONU Mulheres?
Não há nenhum conflito. Na ONU Mulheres, nós temos que dialogar com todas as partes, com aqueles que têm os mesmos valores que a gente e também com aqueles que têm outros valores. Em princípio, respeitamos as opiniões. Isso é muito importante.
Há um tema que temos em comum com a ministra, que é a violência contra a mulher. Ela está muito preocupada com o aumento dessa violência, e falamos sobre experiências na nossa região. Esse é um tema sobre o qual podemos conversar.
Creio que esse é o caminho: buscar preocupações comuns, como o caso da violência e a participação política. Tanto ela como nós queremos mais participação política e econômica das mulheres. Sou uma pessoa que gosta de conversar e escutar e respeito opiniões que são diferentes.
Nós temos valores que estão na Declaração Universal dos Direitos Humanos e que também estão no artigo 5 da Constituição Brasileira*. E o Brasil ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Isso é, para nós, muito importante. Então temos pontos em comum e temos que trabalhar em prol deles.
*Artigo 5 da Constituição: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade", inclusive homens e mulheres.
Na América Latina, mulheres têm ido às ruas em diversos países, como na Argentina, a favor do aborto legal, e no Chile, contra o machismo. A senhora avalia esse momento como um fenômeno regional?
Podemos dizer que esse é um fenômeno que começou com os movimentos de 8 de Março [Dia Internacional da Mulher]. Essa data, em todo o mundo, é cada vez mais importante. No Uruguai, meu país, saem mulheres de todos os setores às ruas para mostrar que somos uma força que pode levar o país adiante, que temos que ser consideradas e queremos participar.
Isso acontece no Chile. No ano passado, o 8 de Março lá teve manifestações maravilhosas. Em outubro, novas manifestações infelizmente sofreram com a violência. Também há o movimento de Las Tesis, que ficou mundialmente conhecido e que fala do Estado machista e opressor.
A Bolívia era um país que tinha paridade de gênero no Parlamento, mas houve muitíssima violência contra as mulheres e estamos muito preocupadas. Agora esperamos que, com as novas eleições, as mulheres possam continuar em grande número.
Temos uma mulher na vice-presidência da Costa Rica [Epsy Campbell Barr], que tem sido uma grande líder de movimentos afrodescendentes.
Vimos mulheres nas ruas da Colômbia, onde também vimos uma mulher ganhando a eleição municipal em Bogotá [Claudia López Hernández]. Na Colômbia temos uma vice-presidente [Marta Lucía Ramírez] que está fazendo a diferença e inserindo mulheres em todos os setores em que elas podem ser consideradas.
Em Bogotá, vou participar de uma conferência organizada pela vice-presidente sobre o tema de contratações públicas. Apenas 1% de empresas lideradas por mulheres chegam à contratação pública.
Agora, no Uruguai, a partir de 1º de março, teremos uma vice-presidente mulher [Beatriz Argimón] que é feminista e que tem um compromisso grande em eliminar a violência contra a mulher. Na Argentina, a vice-presidência também é ocupada por uma mulher [Cristina Kirchner].
Ou seja, há muita esperança. As mulheres estão começando a ter papéis muito importantes, mas tudo é muito lento.
No Brasil, movimentos feministas são, muitas vezes, interpretados de forma equivocada, não como a busca pela igualdade de gênero, mas uma tentativa de rebaixar homens. O que poderia explicar essa interpretação?
O que posso dizer é que, se não há movimento da sociedade civil, incluindo feministas, não há democracia. A democracia se constrói com diálogo social, a democracia se aprofunda nesse diálogo, tentando escutar a sociedade civil. A sociedade civil tem um papel de provocar mudanças, de monitorar, de protestar.
Não há avanços na sociedade se não se escuta a sociedade. Por isso os parlamentos são tão importantes, quando estão decidindo sobre políticas públicas. É importante escutar os movimentos sociais.
Há uma tendência na região de criminalizar os protestos. Isso me dá muito medo, pois significa que, quando não se escuta, a violência começa. Eu já vivi numa ditadura, no Uruguai, sei bem o que é isso. Quando fecham o espaço para o diálogo, os governantes se fecham e acham que a opinião deles é a única que vale.
Temos visto muitos problemas na nossa própria região. Mas acredito na democracia, creio que os parlamentos são muito importantes, assim como a independência dos poderes, do Judiciário.
A imprensa tem um papel fundamental. Um papel de brigar pela igualdade de gênero. A imprensa tem que mandar mensagens muito claras de qua igualdade de gênero é boa para a sociedade, para que haja bem-estar e que é ainda um bom negócio para as empresas.
Temos que dialogar e aprofundar a democracia. Depois de 25 anos de governos democráticos na América Latina, não podemos dizer que nossa região está livre de possíveis ataques à democracia. Temos que cuidar, a democracia é muito frágil quando não é cuidada. Temos que passar isso para as crianças, que o caminho não é a violência, mas o diálogo social.
Espero que o Brasil siga esse caminho, tenho fé que isso vai acontecer. Temos mulheres parlamentares excelentes. Ainda são poucas, mas foram eleitas num momento muito importante. Espero que nas próximas eleições, em outubro, mais mulheres sejam eleitas.
Como a senhora avalia as conquistas de direitos das mulheres na região nessas últimas décadas?
Tivemos avanços, muitas leis discriminatórias foram eliminadas nos países. Muitas meninas estão na escola. Em 1970, mulheres tinham em média seis anos de escolaridade, agora são 12. Mais mulheres estão sendo capacitadas, com acesso à educação. A mortalidade materna também caiu com o avanço da medicina, dos cuidados preventivos.
Temos grandes problemas hoje para cumprir a agenda de 2030, ligados à violência, justiça econômica, direitos econômicos das mulheres, autonomia do corpo e educação sexual reprodutiva. Há também o tema das mudanças climáticas, em principal as populações indígenas que são as mais afetadas – elas vivem mais perto da natureza e conhecem a natureza muito melhor.
O tema da tecnologia é fundamental para o futuro do trabalho. Existe um gap muito grande hoje, queremos mais mulheres na tecnologia, esse é o futuro. Quase 80% dos trabalhos futuros terão a ver com inteligência artificial e tecnologia, e as mulheres precisam fazer parte disso.
Os movimentos feministas estão mudando, há mais jovens, mulheres afrodescendentes, indígenas, LGBTs, há uma diversidade que precisa ser trabalhada.
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