REVISTA IHU
28 Fevereiro 2020
Enquanto pelo mundo se organiza a quarta greve feminista em centenas de reuniões, atividades e assembleias, ouvir Silvia Federici é inspirador. Em um intervalo de sua caminhada pelo mundo compartilhando leituras e contagiando força, Silvia nos recebeu em sua casa, em Nova York, para conversar sobre a atualidade das lutas feministas, as revoltas populares dos últimos meses, as tensões do feminismo com a esquerda e os pontos mais relevantes de seu último livro.
A entrevista é publicada por Zur, 20-02-2020. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Nos últimos anos, esteve viajando e em permanente contato com companheiras e organizações feministas da América Latina e Europa. Como você vê a luta feminista hoje?
É um momento muito importante, muito particular. Não apenas na América Latina, embora lá haja mais impacto. É o momento em que se dá o encontro do movimento feminista, com toda a sua diversidade, com as lutas populares, com os movimentos sociais que, desde os anos 1980, cresceram em resposta ao ajuste estrutural, à política extrativista, ao neoliberalismo. Esse encontro surge de uma situação concreta muito forte, que é o fato de todas essas políticas terem impactado sobretudo as mulheres e a reprodução da vida.
Então, as mulheres estão em primeiro lugar, não apenas como vítimas da espoliação, mas também como lutadoras, como protagonistas da resistência. E, além de protagonizar a resistência, precisam fazer acertos com os homens dos movimentos, das organizações mistas. E é aqui que ocorre o encontro com o feminismo, a contribuição do feminismo.
Criou-se, assim, um feminismo novo, um feminismo que eu acredito que seja muito poderoso porque tem uma visão anticapitalista, que reconhece toda uma história de opressão, tem uma visão descolonizadora. É um movimento que, por fim, abarca todos os aspectos da vida. Não é um movimento que se concentra no trabalho como é tradicionalmente entendido, ou seja, vinculado à produção, mas que se preocupa com o campo, o corpo, com o que acontece na comunidade. E não é apenas oposição, é um movimento que constrói.
Eu acredito que essa é a sua grande força, é o que lhe permitiu crescer nesses anos, apesar do fato de que a onda de fascismo à direita continua crescendo. Cresce porque está criando uma nova infraestrutura que nunca foi vista em movimentos revolucionários dominados pelos homens: toda essa criatividade, a capacidade de recuperar saberes tradicionais, de criar vínculos afetivos.
Penso que é um movimento que tem bases muito fortes, por isso continua agregando mulheres que vêm de diferentes lugares, como na Argentina e no Uruguai: das organizações sindicais, da economia solidária, das companheiras indígenas, dos camponeses. Isto é uma força. O movimento feminista é o que traz as lutas hoje, na América Latina, sem dúvidas, mas isso, de uma maneira diferente, também está acontecendo em outros lugares.
Justamente nos últimos meses, houve na América Latina uma série de levantes populares em defesa de uma vida digna. Talvez os casos mais claros são os do Chile e Equador, mas não são os únicos. Como podemos ler esses processos de luta a partir de uma perspectiva feminista que coloca a reprodução da vida no centro?
Eu acredito que uma perspectiva feminista é importante exatamente por isso, porque se concentra no que é mais fundamental, seja como objetivo ou condição da luta: a mudança da reprodução da vida cotidiana, da reprodução social - não apenas da reprodução doméstica - em todos os lugares. Porque a reprodução significa trabalho doméstico, sexualidade, afetividade, significa também meio ambiente, natureza, campo, agricultura, cultura, educação.
O feminismo abrange uma gama muito ampla de temáticas ligadas à reprodução da vida que são o fundamento de qualquer mudança social, que são o fundamento de qualquer luta. Não pode haver uma luta bem-sucedida sem mudar esses que são os aspectos mais importantes da vida. Por isso, acredito que nesses levantes que ocorreram no Chile, no Equador, a participação das mulheres é muito importante, especialmente olhando a longo prazo, olhando esses movimentos não como uma rebelião momentânea que amanhã cairá, mas como movimentos que expressam uma revolta muito profunda, que expressam um dizer “já basta” muito profundo a este sistema tão injusto, tão violento. E pensando a longo prazo, a perspectiva e as atividades das mulheres são fundamentais.
Essas lutas feministas das quais estamos falando, anticapitalista ou de um feminismo popular, preocupam-se com uma diversidade de assuntos. Interessam-se não apenas pelos problemas das mulheres, mas também pelo conjunto das relações sociais e com a natureza. Não obstante, muitas vezes se tenta localizar nossas vozes de mulheres em luta como setor, como se só pudéssemos falar sobre os temas das mulheres. Em particular, este é um conflito com a esquerda. Como você avalia a relação entre feminismo e esquerda?
Penso que isso é fundamental, acredito que a esquerda não quer ver. Os interesses masculinos tornam cegos os homens que projetam sobre as mulheres o que é sua própria situação: são eles que representam somente um setor, um tipo particular de luta. O que me parece importante do movimento feminista é que abriu os olhos e descobriu todo o universo da reprodução da vida. É um movimento que realmente olha não apenas para um setor da vida dos trabalhadores, um setor do proletariado no capitalismo, mas também para sua totalidade. Nos anos 1970, no início, falava-se de reprodução como trabalho doméstico, mas nas últimas três décadas vimos que a reprodução é tudo. É o cultivo, as sementes, o campo, a saúde, a educação, a infância, a qualidade do ar, as estruturas afetivas, etc.
A contribuição do feminismo tem sido também apontar as desigualdades, porque o capitalismo é produção de escassez, não produção de prosperidade, e produção de desigualdades. O capitalismo produz não apenas mercadorias, mas também divisões e hierarquias como sua condição primária de existência. Por isso, o feminismo nos dá uma perspectiva mais ampla, que não é setorial, mas visa a totalidade da vida. Claro que falamos de um feminismo anticapitalista, não um feminismo de Estado criado pela Organização das Nações Unidas e os governos para recrutar mulheres para as novas formas de desenvolvimento capitalista. É muito importante esclarecer isso, porque hoje também há um feminismo de estado, um feminismo institucional. Não falamos desses feminismos.
A menos de um mês do dia 8 de março, em muitos países estão sendo preparadas paralisações, mobilizações e ações. Quais são os desafios diante da próxima greve feminista e, de maneira mais geral, para manter aberto esse tempo de luta?
Para mim, o mais importante é sempre o processo, não a data, mas o processo de construção. O dia 8 de março é a manifestação do que se fez, é um momento simbólico muito importante, mas o mais importante é o que se constrói no processo de contatar mulheres que, embora muitas vezes tenham interesses comuns, não se encontram, o processo de criar novos espaços. Também é um momento de se aprofundar no que queremos.
Então, por um lado, criar concretamente novas formas de organização, novos espaços, porque o espaço é fundamental, ter lugares onde possamos nos encontrar. Por outro lado, o programa, o que queremos, porque ainda temos muitas coisas a definir. Por exemplo, ainda se fala muito pouco no feminismo sobre a situação da infância, que para mim é trágica hoje, é uma situação de crise muito forte. Precisamos articular mais nosso programa, seja na forma de oposição ao que está sendo feito, seja na forma de construção, de compreender o que queremos, que tipo de sociedade e relações queremos.
E, como sempre, o terceiro objetivo é superar as divisões de todos os tipos que ainda existem entre as mulheres: raciais, da diversidade sexual, de idade entre jovens e idosos, etc. Esse é um objetivo muito importante, porque as divisões e hierarquias são o que mais nos enfraquece e a arma mais poderosa que eles têm para criar novos conflitos, para mostrar que temos interesses diferentes, para fazer com que nossas energias se dispersem nas lutas sectárias entre nós.
Já que você mencionou, como enxerga as relações intergeracionais no movimento feminista?
Sou otimista, porque viajei muito e vejo que na Espanha, na Argentina ou aqui em Nova York, mulheres jovens participam de minhas conversas. Tenho 77 anos e em minhas apresentações a maioria, 80%, são mulheres muito jovens, de 19, 20 anos. Parece-me que há um desejo de se conectar. Nos anos 1970, em movimentos mistos, dizia-se “nunca confie em alguém com mais de 30 anos”. E, bom, eu posso entender o motivo, mas felizmente isso não acontece agora com o feminismo.
Há um desejo de compreender, de se conectar com pessoas mais velhas. Embora ainda a problemática dos idosos esteja sendo tocada muito superficialmente. Hoje, os idosos, principalmente as mulheres mais velhas, vivem uma crise muito forte. Muitas delas trabalharam a vida toda ajudando os homens a viver e a morrer, e quando precisam de ajuda, porque não podem mais trabalhar, não têm mais recursos porque passaram a maior parte de suas vidas trabalhando sem nenhum benefício.
Nos Estados Unidos, as mulheres idosas são as que mais ocupam os abrigos do estado. São situações verdadeiramente trágicas, sobretudo as daquelas que não são autossuficientes, que geralmente vivem em condições terríveis. Eu acredito que isso, como a situação da infância, não se problematizou o suficiente no movimento feminista. Apesar do movimento reunir, hoje, mulheres de várias idades, ainda é uma problemática que deve ser incluída. Porque se falamos de violência, a miséria econômica e emocional em que vivem muitas mulheres idosas é uma forma de violência.
A luta feminista está sendo muito forte em muitas partes do mundo, mas ao mesmo tempo há um avanço, conservador no melhor dos casos, diretamente fascista em outros. Como fazemos uma leitura feminista desse processo?
Se colocarmos essa violência de hoje no contexto do século XX, sem irmos para o século XVI ou XVII, podemos ver que o capitalismo, em qualquer uma de suas fases de desenvolvimento recente, sempre foi muito violento: duas guerras mundiais, em que morreram quase 50 milhões de pessoas, a tortura em massa como sistema de domínio na América Latina, a partir dos anos 1960, todas as guerras que tanto governos democratas como republicanos dos Estados Unidos impulsionaram, etc. Penso que é importante contextualizar isso para não pensar que é uma novidade, para ver que, sobretudo quando se sente ameaçado, intimidado, o capitalismo precisa estender essa violência.
E hoje o capitalismo se sente ameaçado. Primeiro, porque há anos se queixam de que o nível de lucro não é suficiente, então é um capitalismo em crise. Em segundo lugar, porque há um avanço, porque o feminismo é a ponta de diamante de uma insurgência internacional. São anos e anos de insurgência contínua. Da Primavera Árabe até hoje, é uma insurgência que sempre precisa de mais tortura, guerra, prisão. Então, vejo toda essa violência como uma resposta que não é uma novidade, mas a resposta habitual do capitalismo que se sente em crise, que sente que seus fundamentos estão em perigo e enfrenta movimentos internacionais que, sem serem coordenados, têm as mesmas temáticas. Porque do Brasil ao Chile, passando pelo Equador, Líbano, Haiti, há uma resistência ao empobrecimento, à miséria, à violência policial e do estado.
Não é por acaso que quando as companheiras no Chile disseram “o estuprador é você”, com uma grande coragem, porque fazer isso no Chile não é o mesmo que fazer em outros países, isso circulou imediatamente. Essa internacionalização e circulação imediata das perguntas, objetivos, slogans, formas de organização nos diz que há uma insurgência, um dizer “basta” que é muito geral. Penso que os Bolsonaro e todas essas iniciativas da igreja e econômicas são uma resposta. Não se pode impor uma austeridade brutal, uma espoliação brutal por anos e anos, expulsar milhões de pessoas de suas terras, sem organizar um enorme dispositivo de violência.
Para além da periferia da pele
Acaba de publicar “Beyond the periphery of the skin”, seu último livro. Nele, contrapõe uma noção de corpo da maneira como foi pensado pelo capitalismo - isto é, como máquina de trabalhar e, no caso das mulheres, como máquina de procriar -, com o corpo conforme concebido pela imaginação radical coletiva, em particular pelo feminismo, a partir dos anos 1970. O que significa hoje o corpo como categoria de ação social e política?
Gosto da ideia de corpo-território, porque imediatamente nos dá uma imagem coletiva. Não somente porque é o primeiro local de defesa e conecta o discurso do corpo com o discurso da terra, da natureza, mas porque coloca o discurso do corpo como uma questão coletiva. Então, o discurso do corpo é sobre quem governa quem, sobre quem tem o poder de decidir sobre nossas vidas.
Eu penso que essa é uma das perguntas fundamentais, de fundo, na luta. Porque existe um estado que deseja controlar cada minuto, não apenas no trabalho. No caso das mulheres, invade nosso corpo, nossa realidade cotidiana, de forma cada vez mais intensa e mais opressora do que no caso dos homens. O problema do aborto é muito exemplar. Então, eu acredito que pensar o corpo a partir de uma visão feminista, hoje, é particularmente crucial para determinar quem tem a possibilidade de decidir sobre a nossa vida.
Corpo significa vida, significa reprodução, significa afetividade. Tudo envolve a temática do corpo: a comida, o sexo, a formação, a procriação. Então, a luta pelo corpo é a luta pelos aspectos mais fundamentais da vida. Por isso, acredito que assombra tantas mulheres com uma intensidade tão forte, porque aqui se decide quem é o patrão de nossa vida. Somos nós ou é o estado?
Mas você enfatiza a reivindicação do corpo de forma coletiva, em recuperar a capacidade de decisão coletiva sobre nossas vidas ...
Sim, capacidade coletiva, absolutamente. Sozinhos somos derrotadas. Por isso, é necessário sair de casa pela luta. Não pelo trabalho, sair de casa pela luta, sair de casa para se reunir, sair de casa para enfrentar todos os problemas que temos sozinhas.
A ideia de ir além da periferia da pele tem a ver com postular uma noção expansiva do corpo. Para isso, você discute o corpo expansivo concebido por Bakhtin, que se expande mediante a apropriação e ingestão do que está além dele, e propõe uma ideia igualmente expansiva, mas de natureza radicalmente diferente. Você fala de uma “continuidade mágica” com outros organismos vivos e de um corpo que reúne o que o capitalismo dividiu. Nesse sentido, o corpo seria o ponto de partida para pensar a interdependência?
Não penso em um corpo que quer se apropriar, mas em um corpo que quer se conectar. Não quer comer o mundo, quer se conectar com o mundo. O olhar dos séculos XVI e XVII, do renascimento sobre o corpo, não o entendia como algo completamente isolado, não era uma ilha, mas estava aberto. Podia ser afetado pela lua, pelos astros, pelo vento. Esse corpo que é expansivo porque não está separado do ar, da água. E também está intimamente conectado ao corpo dos outros. A experiência do amor e do sexo é exemplar, mas não é a única que mostra como somos continuamente afetados e nosso corpo muda. A tradição do mau-olhado, por exemplo, tem a ver com o fato de que outras pessoas podem fazer você sofrer, ou podem fazer você feliz, provocam mudança em você.
Não podemos pensar o corpo como os capitalistas o pensam, como a ciência o pensa hoje, ou seja, um corpo que é completamente máquina, que é um agregado de células, e cada célula tem seu programa, cada gene tem seu programa, não é algo orgânico. Minha visão e minha tentativa é promover uma visão do corpo que é exatamente o oposto da visão que hoje domina a ciência. Cada vez mais, tenta-se isolar o corpo em pequenos pedaços, cada um com sua característica. É uma fragmentação. Penso no fracking hoje, quando os cientistas pensam no corpo, fazem uma espécie de fracking epistemológico que desagrega o corpo.
Para mim, o corpo deve se reconectar com os animais, com a natureza, com os outros. Este é o caminho para a nossa felicidade e saúde corporal. Porque a infelicidade, precisamente, inclui o cerceamento do corpo. Há um cerceamento não apenas da terra, como escrevi na obra “Calibã e a bruxa”, mas também dos corpos. Cada vez mais, nos fazem sentir que não podemos depender dos outros, que se deve temer os outros. Esse individualismo exacerbado, que se acentuou no neoliberalismo, é verdadeiramente miserável. Faz com que morramos, porque é uma vida conceitualizada em nome do medo, do temor, em vez de ver que a relação com os outros é um grande enriquecimento.
O último texto do livro, “On Joyful Militancy”, é especialmente belo. Nele, você opõe duas ideias de militância: uma militância alegre, que nos faz sentir bem e se conecta com nossos desejos, versus uma política e uma militância tristes.
Para mim, a militância triste é uma militância que não tem futuro, mas existe. Eu acredito que a militância dominada pelos homens é uma militância triste, é uma militância como trabalho alienado, é uma militância onde se pensa “devo ir para outra reunião” como alguém que pensa “devo ir trabalhar”. É esse companheiro que sente a submissão histórica, não lhe agrada, não tem entusiasmo, não oferece nada, mas faz isso como um dever, como uma obrigação. Isso não é construir outra sociedade.
Podem correr riscos, mas isso é diferente. Às vezes, corremos riscos porque isso oferece algo, muda a nossa vida. Mas mude agora, não em futuro, não daqui a vinte anos talvez, mude agora. Para mim, isso é construir um mundo novo. Não se trata apenas de dizer “não”. A vida muda na maneira como começamos a nos relacionar diferente com outras pessoas e a descobrir coisas sobre nós mesmos. Porque mudamos, fazendo relações diferentes mudamos. E eu acredito que a vida é tão triste para a maioria das pessoas no mundo que não irão acrescentar outra tristeza, preferem morrer à noite assistindo televisão, em vez de ir a uma reunião onde tudo seja dor ou aborrecimento.
O que a partir do feminismo estamos nomeando como política do desejo seria um pouco a antítese dessa militância triste...
Exatamente. É a criatividade, a criatividade da militância. E isto eu experimentei profundamente porque me lembro da diferença que vi, em poucos anos, quando as mulheres deixaram os movimentos com homens, os movimentos mistos. As mulheres mudaram assim (faz o gesto com as mãos). Começaram a falar, cantar, criar, desenhar. Foi como uma explosão de criatividade incrível! Antes faziam todo o trabalho doméstico das organizações. Realizaram muitos trabalhos domésticos nos movimentos com os homens! E, finalmente, foi muito diferente, tornou-se um prazer.
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