por Antonio Luiz M. C. Costa — publicado 05/10/2018
A semana trouxe duas vitórias importantes para as mulheres na ciência: pela primeira vez conquistaram, no mesmo ano, o Nobel de Física e o Nobel de Química
Mario Tama/Cole Burston/Getty Images North America/AFP
Frances H. Arnold e Donna Strickland: dupla conquista feminina no Nobel
Na terça-feira 2 a canadense Donna Strickland foi a terceira mulher a ganhar o prêmio de Física, depois de Marie Curie em 1903 e Maria Goeppert-Mayer em 1963. Ela dividiu uma metade do prêmio com Gérard Mourou (orientador de seu trabalho desenvolvido como tese de doutorado em 1985) por criar um método de gerar pulsos laser ultracurtos e de alta intensidade que abriram novas áreas de pesquisa e conduziram a muitas aplicações industriais e médicas e hoje são usadas rotineiramente em todas as cirurgias oculares a laser. A outra metade foi concedida ao estadunidense Arthur Ashkin – o mais idoso vencedor do Nobel, com 94 anos – por outra pesquisa sobre lasers dos anos 1980 que resultou em pinças ópticas capazes de manipular objetos tão minúsculos quanto vírus, bactérias e organelas celulares.
No dia seguinte, a estadunidense Frances H. Arnold foi a quinta mulher a conseguir o galardão de Química – a primeira foi igualmente Marie Curie, em 1911. Recebeu metade do prêmio como pioneira da evolução dirigida de enzimas, trabalho de 1993 com o qual se reproduziu e acelerou em laboratório o processo de mutação e seleção natural para forçar bactérias a segregar enzimas previamente projetadas a partir das quais se pode obter a fabricação ambientalmente menos agressiva de substâncias químicas, produtos farmacêuticos e combustíveis renováveis. A outra metade foi dividida entre o estadunidense George Smith e o britânico Gregory P. Winter pela criação em 1985 do método de seleção e isolamento de (vírus) bacteriófagos (phage display), usado para injetar informação genética em bactérias e forçá-las a produzir as proteínas desejadas.
No dia seguinte, a estadunidense Frances H. Arnold foi a quinta mulher a conseguir o galardão de Química – a primeira foi igualmente Marie Curie, em 1911. Recebeu metade do prêmio como pioneira da evolução dirigida de enzimas, trabalho de 1993 com o qual se reproduziu e acelerou em laboratório o processo de mutação e seleção natural para forçar bactérias a segregar enzimas previamente projetadas a partir das quais se pode obter a fabricação ambientalmente menos agressiva de substâncias químicas, produtos farmacêuticos e combustíveis renováveis. A outra metade foi dividida entre o estadunidense George Smith e o britânico Gregory P. Winter pela criação em 1985 do método de seleção e isolamento de (vírus) bacteriófagos (phage display), usado para injetar informação genética em bactérias e forçá-las a produzir as proteínas desejadas.
A dupla conquista, obtida com pesquisas de enorme importância teórica e prática, importa mais por chegar quando os avanços recentes do feminismo na ampliação do espaço para as mulheres em posições de prestígio – e também campanhas por igualdade e respeito, como a #MeToo iniciada em 2017 – despertam em conservadores com privilégios ameaçados uma reação amarga cujo papel no crescimento de movimentos neofascistas por todo o mundo, inclusive no Brasil, EUA e Europa, onde partidos de extrema-direita são hoje parte de coalizões de governo em países como a Áustria e a Itália.
Não se pense que esse é apenas um movimento de gente idosa e menos educada. Há jovens inteligentes com acesso a cursos superiores e toda a informação possível que aderem com paixão ao reacionarismo simplesmente por estar em posição de se beneficiar dos retrocessos. Recentemente, o historiador francês Christian Ingrao mostrou, no seu livro “Crer e Destruir”, como uma alta porcentagem dos comandantes da SS, tropa de elite nazista, eram criminosos e assassinos fardados com títulos de doutorado no bolso: juristas, economistas, filólogos, filósofos e historiadores. Médicos e biólogos tiveram um papel ainda mais notório na construção das justificativas supostamente científicas para o racismo e o antissemitismo – e também, apesar de isso ser menos lembrado, para a supremacia masculina e a homofobia.
Os cientistas de hoje não estão imunes ao canto dessas sereias. Na sexta-feira 28, a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (ainda conhecida como Cern, pela sigla em francês de seu nome original de Conselho Europeu de Pesquisa Nuclear), hoje o maior e mais importante centro de pesquisa em física no mundo, organizou na Universidade de Pisa uma conferência chamada “Teoria de altas energias e gênero” com uma preleção ministrada pelo italiano Alessandro Strumia, até então um respeitado colaborador e pesquisador de 48 anos.
O doutor Strumia saiu-se com um manifesto descaradamente machista e reacionário, na forma de uma palestra acompanhada de slides. Com linguagem e argumentação pretensamente científica, o físico saiu de sua especialidade em abstrusas partículas nucleares e teorias cosmológicas para se aventurar em história, antropologia, biologia e psicologia e pinçar argumentos para afirmar que “a física foi inventada e construída por homens, não se chega por convite”. Para ele, exceções como Marie Curie são bem-vindas “apenas depois de mostrarem do que são capazes, conseguir prêmios Nobel”.
Segundo sua duvidosa argumentação, homens e mulheres têm QI médio semelhantes, mas os extremos de inteligência são mais encontrados entre os homens, de modo que pretender equilíbrio de gêneros na ciência é resultado de “marxismo cultural”, “vitimocracia” e “ideologia” que ignoram a “biologia humana cega”.
Ele se queixou das ações afirmativas que segundo ele, privilegiam mulheres com educação superior mais barata ou gratuita, promoções, financiamento de projetos e acesso a treinamentos. Razão, para ele, de ressentimento pessoal: Strumia alegou que foi preterido para determinado cargo em favor de uma mulher e que quem protestasse seria atacado, repreendido e arriscaria perder o emprego. “Gosto de física e ciência porque todos podem fazer o que querem. Não gosto quando se faz engenharia social para decidir quantos homens, mulheres e categorias devem existir”.
A palestra chocou a plateia, formada na maior parte por mulheres cientistas que trabalham em pesquisas ligadas ao Cern ou aspiram a isso. Os protestos explodiram e pegaram desprevenida a chefia da organização, aliás comandada desde 2016 por uma compatriota de Strumia que é o provável alvo de sua inveja: a doutora Fabiola Gianotti, física de partículas como ele, mas mais célebre por ter liderado em 2011 a equipe do “experimento Atlas” que descobriu o bóson de Higgs, o maior feito conseguido até agora com o gigantesco acelerador LHC, a joia da coroa do Cern. A alusão a Curie não deve ter sido acidental: Gianotti contou muitas vezes que sua paixão pela pesquisa começou ao ler uma biografia da precursora.
A cúpula do Cern desculpou-se, dizendo não ter tido conhecimento prévio do teor da apresentação, condenou as alegações de Strumia como “altamente ofensivas” e na segunda-feira o suspendeu e retirou de seu site toda a apresentação (os interessados podem encontrar os slides copiados em outras páginas). A organização europeia foi seguida pelo Instituto Nacional de Física Nuclear (INFN) da Itália, para o qual “Strumia fez, em um contexto público internacional, declarações prejudiciais à imagem do instituto e, pior ainda, discriminatórias e abertamente prejudiciais à reputação de pesquisadores do sexo feminino e masculino”. O presidente do Conselho Europeu de Investigação (ERC), Jean-Pierre Bourguignon, também condenou Strumia e pediu mais informações ao Cern sobre o incidente, dando a entender que pode lhe cassar a bolsa de pesquisa de 1,8 milhões de euros concedida pelo centro. Talvez o físico italiano que se queixou da “vitimocracia” alegue agora ser uma vítima.
O caso Strumia ilustra uma das armadilhas na qual se pretende aprisionar mulheres e minorias para evitar novos concorrentes. Precisam demonstrar “genialidade verdadeira” antes de serem aceitos – mas como todos sabem, isso é impossível se não tiverem previamente acesso à educação, treinamento e participação e chefia de equipes e laboratórios necessários para fazer ciência, pois os tempos em que era possível fazer grandes descobertas com trabalho solitário em fundo de quintal ficaram para trás há gerações.
Mas isso não é tudo: mesmo depois de produzir trabalhos notáveis, mulheres cientistas têm seu valor ignorado ou desdenhado. Exemplo disso é a própria Donna Strickland: mais de trinta anos após o trabalho agora premiado com o Nobel e uma brilhante carreira como pesquisadora, ainda não é professora titular na Universidade de Waterloo, onde trabalha. E em março, quando alguém quis incluir na Wikipédia um verbete sobre sua carreira, o moderador do site o vetou por julgar que ela não tinha relevância suficiente para essa enciclopédia que recolhe cada minúcia sobre personagens menores do esporte, política e indústria cultural.
Ela foi incluída às pressas, horas depois do anúncio do prêmio. Ao menos desta vez a Academia Sueca lhe fez justiça, ainda que tardia. Muitas outras mulheres que teriam merecido prêmios nessa e outras áreas foram preteridas no passado. Recorde-se ao menos duas das mais injustiçadas: Vera Rubin, astrônoma que revolucionou a física ao confirmar a existência da matéria escura e faleceu em 2016 sem ser devidamente reconhecida e Rosalind Franklin, falecida em 1958, cujo papel na descoberta da estrutura do DNA foi ignorado pelo comitê do Nobel ao premiar James Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins – este, um inimigo pessoal dela – pelo trabalho desenvolvido a partir dos estudos de difração de raio X da cientista, também descobridora das estruturas do RNA, do carvão e da grafite.
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