Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

"Não existe uma relação simples de 'mais testosterona = mais masculinidade'"

Para Cordelia Fine, autora de "Homens não são de Marte, mulheres não são de Vênus" e "Testosterona Rex", é um equívoco científico explicar as diferenças de gênero pela presença de testosterona

Nove perguntas para Cordelia Fine

1. O que é o Testosterona Rex?

O Testosterona Rex nos diz que características como competitividade e propensão a assumir riscos evoluíram mais fortemente nos homens porque aumentaram seu sucesso reprodutivo em nosso passado ancestral. Essas qualidades são, portanto, incorporadas ao cérebro masculino e alimentadas pela testosterona. Escolhi o apelido Testosterona Rex por dois motivos. Primeiro, porque "Rex" significa rei e essa visão parece dar uma explicação do por que os homens ainda tendem a ter mais poder e riqueza do que as mulheres. Mas também porque o conjunto de ideias em que se baseia o Testosterona Rex está agora cientificamente extinto.
2. Há um padrão de distinção entre os dois sexos que possa ser explicado pela presença da testosterona?
É interessante que essa seja a pergunta que fazemos com frequência: como a testosterona cria diferenças entre os sexos? A testosterona certamente afeta o cérebro e pode influenciar no comportamento e, claro, nos nossos corpos. Mas não existe uma relação simples entre os dois. Em primeiro lugar, há mais diferenças nos níveis biológicos de testosterona entre os sexos do que, de fato, no comportamento que diferencia homens e mulheres. Não existe uma relação simples de ‘mais testosterona’ = ‘mais masculinidade’, já que alguém pode ser muito masculino em um campo (como assumir riscos físicos), mas não em outro domínio (como assumir riscos financeiros). Os níveis de testosterona no sangue são apenas uma parte de um sistema muito complexo, influenciado por muitos outros fatores biológicos. A testosterona é apenas um dos muitos fatores que alimentam a tomada de decisões. Além disso, embora muitas vezes pensemos que o comportamento é "abastecido pela testosterona", ela está sendo conceituada como "intermediária" para os efeitos do mundo social no cérebro e no comportamento. Os níveis de testosterona – tanto em mulheres quanto em homens – respondem ao nosso contexto social e à forma como interpretamos esse contexto social. E, é claro, em que tipos de situações nos encontramos e como as interpretamos é parte do que chamamos de "gênero".
3. Qual a relação entre o machismo e o Testosterona Rex?
Como mostro repetidamente no livro, a pesquisa nesta área certamente foi impactada de modo negativo por estereótipos de gênero, assim como por uma tendência a diferenciar comportamentos masculinos e femininos. Por exemplo, a pesquisa de tomada de riscos se concentrou em formas mais tipicamente masculinas de assumir riscos e apenas relativamente os biólogos se interessam pela importância da competição pelo sucesso reprodutivo feminino. Sempre que debatemos a igualdade de gênero, o Testosterona Rex nos diz que os limites naturais para o que podemos alcançar serão definidos pelo fato de que os homens, e não as mulheres, evoluíram para competir por status e recursos, e as mulheres para cuidar.
4. De que forma o feminismo combate o Testosterona Rex?
O feminismo tem um objetivo político enquanto o Testosterona Rex é um equívoco científico. No livro, eu combato o Testosterona Rex com ciência. No entanto, acho que é verdade dizer que o feminismo gerou uma grande contribuição ao garantir que as mulheres pudessem finalmente praticar ciência. Ao longo do meu livro, há exemplos de mulheres cientistas que aplicaram um olhar crítico a modelos científicos, examinaram mais de perto pressupostos e preconceitos de gênero não examinados, fizeram novas perguntas e geraram conhecimentos que contribuíram para o avanço da compreensão científica na área das diferenças de sexo.
5. Quais as diferenças entre sexo e gênero e como elas se manifestam socialmente?
Tanto na ciência quanto na linguagem cotidiana, os termos “sexo” e “gênero” são usados às vezes de maneiras intercambiáveis. Uma maneira útil de distinção entre eles é que "sexo" se refere aos componentes genéticos e hormonais - basicamente, o “material” biológico envolvido na criação de indivíduos com sistema reprodutor masculino e feminino. São “categorias sexuais” para se referir a alguém que tenha um sistema reprodutivo masculino ou feminino (embora em uma pequena porcentagem da população não seja capturada por esse binário). Já o termo “gênero” se refere às expectativas socialmente construídas relativas aos papéis, identidades e comportamentos associados a ser masculino ou feminino.
6. Por que as mulheres não podem ser "mais parecidas" com os homens?
Em certo sentido, mulheres e homens não são tão distintos ou diferentes quanto às vezes tendemos a pensar. Geralmente, existe uma grande presença tanto de traços considerados ‘masculinos’ quanto de traços ‘femininos’ em ambos os sexos. Assim, muitos homens podem ser mais "femininos" (mais empáticos do que a mulher média ou com preferência por apenas um parceiro sexual) e muitos homens podem ser mais "masculinos" (por exemplo, uma pessoa propensa a assumir mais riscos ou mais competitiva que o homem considerado comum). Portanto, não faz sentido perguntar "uma mulher pode ser como um homem?" A qual homem você se refere? Existem sim diferenças entre os sexos, mas estas se "misturam". Isso significa que não há "homem típico", e simplesmente saber se alguém é homem ou mulher não significa que você sabe como ele é.
7. Qual a diferença entre a sexualidade e a reprodução?
Na maioria das espécies, a atividade sexual é coordenada hormonalmente para aumentar a chance de um coito resultar na concepção. Este não é o caso em humanos. Temos uma enorme quantidade de sexo não reprodutivo e isso tem algumas implicações importantes. A primeira aponta para fins sexuais que vão além da reprodução, como o fortalecimento de uma ligação - somos criados, física e psicologicamente, para o sexo não reprodutivo. Sexo, para nós, não é simplesmente a união de dois potenciais reprodutivos. A segunda implicação é a necessidade de reduzir as expectativas sobre o provável "retorno do investimento" da promiscuidade masculina, já que um homem precisaria ter mais de 130 casos com mulheres diferentes, em um ano, para ter 90 por cento de chance de ultrapassar as chances que um homem monogâmico tem de ter um bebê. Em geral, nas sociedades monogâmicas, o número máximo estimado de filhos que homem pode gerar é de 12 a 16, o que não é muito diferente das mulheres. Assim, parece improvável que a maior capacidade reprodutiva dos homens tenha sido universal em nossa história evolutiva. Podemos perguntar se faz sentido esperar que o potencial reprodutivo de um minúsculo subconjunto de homens, de alguns pontos da história, seja a base de uma essência sexual masculina.
8. Qual teoria sucessora do Testosterona Rex explica da melhor forma as relações entre sexo, ciência e sociedade?
Esses são momentos empolgantes na ciência das diferenças sexuais. Estamos vendo cada vez mais pesquisas empíricas que investigam como o fenômeno social do gênero influencia os componentes biológicos do sexo (como os níveis de testosterona). Estamos vendo críticas conceituais, recomendações construtivas e debates sendo publicados em revistas científicas tradicionais.
9. Como o Testosterona Rex se aplica no caso brasileiro?
A visão do Testosterona Rex de que as diferenças entre os sexos são grandes, fixas e biologicamente fundamentadas está ligada a muitas atitudes que apoiam o status quo (e, portanto, antitéticas a algumas metas feministas). Por exemplo, na pesquisa publicada no início deste ano, meus colegas Lea Skewes (Universidade Aarhus), Nick Haslam (Universidade de Melbourne) e eu descobrimos, em duas grandes amostras da Austrália e da Dinamarca, que as pessoas que defendem o ponto de vista de que "os homens são de Marte, as mulheres de Vênus” relatam maior desconforto com a erosão das fronteiras dos papéis tradicionais de gênero. Eles também aceitam mais a discriminação de gênero no local de trabalho e, ao mesmo tempo, são mais céticos quanto à sua existência. Isso se encaixa com pesquisas anteriores, mas também estávamos interessados em saber se essa visão dos sexos está ligada a ideias sobre como homens e mulheres deveriam ser. Em outras palavras, os "essencialistas de gênero" reagirão negativamente em relação a mulheres e homens que não estão em conformidade com as normas de gênero? Essa reação é conhecida como efeito de “reação”. Previmos que as pessoas que consideram as categorias de gênero como naturais e profundamente arraigadas seriam especialmente críticas em relação a outras que violam expectativas de gênero. Isso é realmente o que encontramos. Os essencialistas de gênero eram mais propensos do que os não-essencialistas a ficar indignados com uma candidata política feminina que foi descrita como alguém em busca de poder, por exemplo, e por um candidato do sexo masculino que não estava. Apenas os homens que buscavam poder e se adequavam ao gênero (isto é, homens ambiciosos) se beneficiaram dessa perspectiva.
Cordelia Fine é professora de história e filosofia da ciência na Universidade de Melbourne, na Austrália, e autora de A mind of its own(2006), Homens não são de Marte, mulheres não são de Vênus (2012) e Testosterona Rex (2017)

Nenhum comentário:

Postar um comentário