POR JOANNA BURIGO 29 DE DEZEMBRO DE 2018
Sensibilizada para a boa escuta por serpentes que lamberam suas orelhas quando, criança, dormia no Templo de Apolo, Cassandra tornou-se uma intelectual perspicaz. Apolo, no entanto, chateado por seus avanços sexuais terem sido por ela recusados, lança sobre a inteligente moça uma maldição: que ninguém jamais acreditasse em suas previsões. Assim, mesmo tendo sido precisa na formulação de que Troia seria ocupada, vencida e destruída, foi desacreditada por todos e considerada louca. Soa familiar, sim?
Outro ser fantástico com que frequentemente se compara feministas são as bruxas. Felizmente a comparação já não é exclusivamente derrogatória. Hoje sabemos que mulheres consideradas bruxas eram as que detinham importantes saberes e viviam de forma independente do poder masculino. Assim, bruxa é elogio.
No entanto, quando se concretizam nossas presciências, oriundas das análises que fazemos com “ouvidos de Cassandra” – quer dizer, com observações sagazes de fatos já postos – somos também chamadas de bruxas.
No entanto, quando se concretizam nossas presciências, oriundas das análises que fazemos com “ouvidos de Cassandra” – quer dizer, com observações sagazes de fatos já postos – somos também chamadas de bruxas.
Isso não é de todo mal, mas nossos alertas não advêm de feitiçaria, e sim de prestarmos atenção na realidade. Onde homens são intelectuais, nós somos bruxas? Há um padrão duplo de tratamento aí. Ninguém pensa, por exemplo, em chamar Noam Chomsky, de mago. E nossas análises – como as dele – não necessariamente vêm da intuição, mas do intelecto.
Evoco Cassandra e as bruxas porque fazer uma retrospectiva de 2018, para feministas, chega a ser entediante. No passado recente apontamos, repetidamente e com bastante precisão, para as sombras de um futuro que hoje se faz nitidamente presente.
Alertamos sobre a onda conservadora antes que a maré virasse porque conhecemos os movimentos do patriarcado. Levantamos discussões sobre fascismo porque sabemos que projetos de poder masculino não raro se constituem dessa forma.
Promovemos debates sobre políticas de identidade por vivermos sob a força hegemônica da masculinidade branca – os poderosos não são hologramas, afinal, e suas identidades tendem a ser marcadas assim, e isso não é coincidência.
Troia está em chamas
Foi em 2018 que executaram Marielle Franco. Em seu último texto, publicado no livro Tem saída? (Editora Zouk, 2017), ela afirma: “Registra-se que o termo sobrevivência aqui utilizado vai além da manutenção da vida, mesmo frente à grande onda de feminicídio existente, no ano de 2015, por exemplo, em que 65,3% das mulheres assassinadas eram negras. Ou seja, a sobrevivência aqui apresentada diz respeito também às condições de morar, alimentar-se, viver com saúde, vestir-se, ter acesso às escolas, condições de trabalho, mobilidade corporal e condições de acesso a diversões e artes. Sobreviver, portanto, ultrapassa qualquer visão economicista do termo e alcança as múltiplas dimensões da vida.” (p. 90)
O texto é profético? Não exatamente. Marielle certamente queria mais do que sobreviver, e viveu para que outras também pudessem almejar isso. Mais para Cassandra do que para bruxa, a parlamentar simplesmente apontava na direção da realidade. A mesma realidade que fatalmente a silenciou. Mas sua voz ecoa pela força das lutas de mulheres, que sabem, com convicção e provas, que loucura mesmo é não acreditarem no que dizemos.
O ano começou, aliás, com a explosão do movimento #MeToo. A frase, criada muito antes da hashtag ser empregada por mulheres de Hollywood, e com o mesmo propósito – angariar massa crítica de denúncias de abusos, visto que ninguém crê numa Cassandra só – foi articulação da ativista do feminismo negro estadunidense Tarana Burke.
Apesar das polêmicas inócuas que este fenômeno engendrou – como a carta de francesas confundindo a exposição orquestrada de padrões de violência de gênero com policiamento de sedução – a campanha foi muito bem-sucedida, e teve resultados concretos para além de uma (também importante) mudança na forma com que abordamos assédio.
Uma reportagem especial do New York Times revelou que 201 homens acusados, depois de investigações comprobatórias, foram demovidos de seus cargos, e metade destes foi preenchida por mulheres.
Em um editorial primoroso para a Revista Themis dedicada ao pensamento de Kimberlé Crenshaw e publicada em dezembro, uma das fundadoras da ONG, Denise Dora, salienta que “O feminismo é hoje o maior, talvez único, movimento global que mobiliza pessoas em todos os lugares do mundo, em campanhas e manifestações. Quem, senão o movimento feminista, foi capaz de convocar uma marcha global contra os retrocessos da era Trump, no dia de sua posse como presidente dos Estados Unidos? Quem, senão o feminismo, levantou a existência dos casos de assédio sexual através de denúncias em série no mundo todo com a campanha #metoo? Quem, senão o movimento feminista, chamou brasileiras e brasileiros a votarem massivamente #elenão contra o machismo e incitação explícita à violência contra as mulheres? O feminismo produz a derrubada do patriarcado racista, que agoniza em praça pública com seus últimos defensores medievais.” (p. 08)
Na América Latina o movimento feminista vem crescendo em número de corpos e visibilidade. As pibas argentinas formularam campanhas cuja eficácia, se ainda não pode ser mensurada pela transformação radical de políticas públicas que asseguram direitos para mulheres, certamente causou ondas de choque e maciça adesão social.
Desde #NiUnaMenos contra o feminicídio, passando pela maré verde em defesa da descriminalização do aborto, até a mais recente mobilização em prol da separação entre Estado e Igreja, marcada pelos pañuelos naranjas (lenços alaranjados), assembleias, cursos e agremiações de manifestantes só fazem aumentar.
No Chile, feministas organizadas ocuparam universidades, escolas e parlamentos durante o que foi chamado de paro (greve) feminista , em protesto contra abusos e machismo dentro das instituições.
E no Brasil, polarizado por disputas simplificadas entre espantalhos de esquerda e direita, foi pelas mulheres que veio a clivagem alternativa para análises do cenário político.
Primeiramente, é preciso notar que este foi o primeiro pleito da nossa história em que duas mulheres negras concorreram à presidência: Marina Silva (Rede) e Vera Lucia (PSTU).
Embora, como tenham colocado Winnie Bueno e Sthéfani Luane, “O silenciamento a respeito da importância que as candidaturas de Vera Lúcia e Marina Silva estão vivendo agora falam bastante a respeito da construção social em nosso país. A branquitude detém o poder de nomear o que é e o que não é um problema social e ao silenciar os significados dessas candidaturas, a mídia coloca as contestações de mulheres negras em um limbo político.”
Mas também não posso deixar de mencionar o gigante movimento #EleNão. Como eu e Rosana Pinheiro-Machado escrevemos em um artigo publicado no Intercept, essa não foi uma simples hashtag, mas um extraordinário fenômeno capilar e de base, ao mesmo tempo microscópico e a maior manifestação já feita por mulheres no Brasil, que organizou atos políticos e serviu de ponto de convergência para nossa adesão a discussões eleitorais.
Além disso, nossas estratégias para aumentar a participação feminina na política institucional parecem estar vingando: mulheres agora ocupam 15% dos assentos das casas legislativas, e a presença das que explicitamente se identificam como feministas também cresceu: reportagem do Catarinas anuncia a eleição de 36 congressistas federais que estarão no meio da bancada considerada a mais conservadora de nossa história.
Ainda assim, o ano termina com a assombrosa história do médium João, que se diz de Deus. Não da cura, ou da natureza, do amor, da vida, da luz: de Deus. É claro que as ações do homem poderiam ser igualmente perversas e violentas se ele não fosse de Deus; não é no nome que está a perversão do homem. Porém é revelador que seja justamente atrás de Deus que ele tenha escolhido esconder sua violência. Homens protegidos pela fabricação de auras divinas são encarnações incontestáveis do poder patriarcal, que historicamente emprega religião para eclipsar sua corrupção.
É urgente que todos consigamos enxergar e questionar valores patriarcais. Em 2018 apenas vivenciamos concretamente a exponencialização de seu obscurantismo – que tem na aniquilação de mulheres uma forma de fazer política. E tudo isso vem sendo exaustivamente apontado por tantas Cassandras. Não acredita quem tem a misoginia como norte.
Apesar disso, contudo – ou ainda, por causa disso, sigo convicta de que temos saída deste vale de sombras. Assim como estou convicta de que quem segura as lanternas indicando rotas, são as mulheres. Bruxas e Cassandras, sigamos avante!
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