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quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Dos estupros que nos devastam e das forças que nos entrelaçam

POR RENATA NÓBREGA   3 DE JANEIRO DE 2019
Rodeada pelas muitas notícias de violações das mulheres no Brasil e no mundo, pensei em uma retrospectiva do estupro, mas não foi possível. Ele não reside no passado. Remanesce imanente e segue ferindo nossas existências todos os dias. Segui na miscelânea de notícias do Brasil e em fluxo cronológico apenas do ano de 2018, já que faltariam palavras e sobrariam lamentos para empreender uma busca global e atemporal sobre o tema.[1]

Janeiro de 2018. Itajubá (MG). Uma jovem comemora seus 21 anos e é estuprada por três homens. Apesar de uma testemunha ter prestado socorro e acionado a polícia militar em situação de flagrância, os violadores foram ouvidos e liberados. Dentre as informações dos policiais, a de que um dos acusados mantinha relacionamento com a vítima e de que a vítima teria ingerido bebida alcoólica naquela noite em que celebrava seu aniversário.[2] A instauração do inquérito dependia da representação da vítima, que resolveu representar formalmente os agressores dois dias após o ocorrido.
Fevereiro de 2018. Recife (PE). Uma jovem de 18 anos irrompe o silêncio que não seria só seu. Em atendimento na rede pública estadual de saúde em Pernambuco foi violada pelo médico que a atendera. As investigações iniciais de logo revelaram que, minimamente, no ano de 2016 ele fez outras três vítimas de abuso sexual em hospital da rede privada onde trabalhava, violando mais outras duas mulheres em 2017. E foi naquele mesmo local que voltou a atacar em 2018, só que embora não fosse o primeiro crime dessa natureza e se utilizando da relação de poder estabelecida naquele contexto de atendimento, aquela jovem de 18 anos seria a primeira mulher que o denunciaria. A sua fala deu voz a um número crescente de outras vítimas cujos processos estão em andamento ou cujas queixas estão em fase de investigação policial.[3]
Março, abril, maio e junho de 2018. Brasília (DF) e Belém (PA). Depois de sete anos, o Superior Tribunal de Justiça[4] restaura sentença condenatória do ex-deputado estadual pelo PFL (PA) Luiz Afonso de Proença Sefer. Condenado em primeira instância nos idos de 2010 por abusar por via vaginal, anal e oral ao longo de quatro anos de uma criança que ele “encomendara” no interior do Pará e que chegou à residência dele aos nove anos de idade, foi inocentado no Tribunal de Justiça do Paraná, por maioria, em 2011. Da decisão do STJ, rasgou-me, dentre outros, a transcrição de trecho do depoimento da vítima perante a autoridade policial: “que, nos primeiros dias dos abusos sexuais, SEFFER toda noite ia para o quarto da informante e metia tal ferro e as vezes só o dedo e passava a beijá-la e passar a mão em seu corpo; Que, aproximadamente depois de uma semana SEFFER passou a lhe estuprar de verdade, lhe penetrando a vagina, mandando fazer sexo oral, o qual ejaculava em sua boca e a informante cuspia, tendo SEFFER mandado a mesma engolir; Que SEFFER antes de lhe violentar por trás, usou o ferro para abrir seu ânus e depois lhe penetrava; Que a informante sentia muita dor, mas não conseguia sair de baixo dele; Que a informante gritava mas SEFFER mordia suas costas, suas mãos e pescoço; Que, SEFFER chupava sua vagina e metia o dedo, também , também metia o dedo sem eu ânus“. Apesar de o STJ ter restabelecido monocraticamente a sentença condenatória em março e de ter confirmado em decisão unânime da Quinta Turma em abril, em junho apreciou pedido de execução provisória da pena e, nesta parte, o relator entendeu que ao condenado não se poderia impor o encarceramento, na medida em que ainda não houve “decisão de definitiva em segundo grau de jurisdição”.

LUIZ SEFER FOI CANDIDATO À PREFEITURA DE BELÉM EM 2016 PELO PP/REPRODUÇÃO YOUTUBE
Julho de 2018. Linhares (ES). Uma jovem de 21 anos é vítima de estupro coletivo. Dos seis envolvidos, três foram presos em flagrante. Um deles mantinha relacionamento anterior com a vítima e teria “incentivado” o abuso perpetrado pelos demais. Na ocasião do flagrante, foi encontrado no local lençol com mancha de sangue. Além disso, a perícia constatou lesões no pescoço e na vagina da vítima.[5]
Agosto de 2018. Brasil. De acordo com o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública foram contabilizados 60.018 estupros em 2017, representando aumento de 8,4% em relação a 2016. A cada 10 minutos houve pelo menos uma mulher que denunciou ter sido violada no Brasil em 2017.
Setembro de 2018. Brasil. Entra em vigor a lei 13.718. Houve aumento de pena em casos de estupro coletivo e de estupro corretivo. Tornou-se crime a importunação sexual, bem como a vingança pornográfica e a divulgação de cenas de estupro.[6] Meses antes, em junho de 2018, a Câmara dos Deputados veiculou notícia de que o número de estupros corretivos contra lésbicas estaria em ascensão, esclarecendo que isso se verifica mesmo considerando que os dados disponíveis não tratam especificamente de casos de violência dessa natureza e, com isso, possivelmente esse panorama estaria mascarado para menor.[7]
Outubro de 2018. Mogi das Cruzes (SP). Rayane Alves Paulino (foto de capa), aos de 16 anos de idade, aprendiz em indústria automobilística da região, cursava o segundo ano do ensino médio. Foi a uma festa com as amigas. Estuprada e morta, seu corpo foi encontrado em uma área de mata. O acusado, Michel Flor da Silva, de 28 anos, foi preso. Casado, pai de dois filhos e empregado de uma empresa terceirizada de segurança, ele confessou à polícia ter matado a jovem após uma relação sexual entre os dois. Disse que foi consensual, mas que ela se arrependeu e o acusaria de estupro.[8] Rayane morreu no primeiro mês de seu contrato de aprendizagem e, segundo familiares, fazia planos para gastar seu primeiro salário.[9]
Novembro de 2018. Rio de Janeiro (RJ). Presos três acusados de cometer “estupro virtual”. Um deles, além disso, foi acusado estuprar a enteada de seis anos e a noiva, que era dopada antes da violação.[10]
Dezembro de 2018. Abadiânia (GO). Até o dia 23, já se contavam 506 denúncias de violações sexuais de mulheres contra João Teixeira de Faria, o João de Deus.[11]
Assim como tem sido nos anos que se passaram, o fio que entrelaça essa rede de violações guarda na cultura do estupro[12] sua força motriz. Os nós dessas correntes de que nos conectam, porém, pedem nossa força ativa e em tom de sororidade[13] para dar fala a qualquer mulher silenciada e para trabalhar pedagogicamente a redistribuição de papéis e responsabilidades entre os gêneros.[14] Reagir e, nas palavras da congressista Maria do Rosário (PT-RS), considerar cada batalha ganha como “vitória de todas as mulheres” nessa luta.[15]
Brasil. Não à subnotificação do estupro e à todas as violações contra a mulher, por ser mulher e/ou identificar-se como tal. Não ao discurso da culpabilidade da vítima.
Renata Nóbrega é membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia) e juíza do trabalho no TRT da 6ª Região. Foi agente de polícia, delegada e serventuária da justiça federal. Curiosa e precisando de poucas horas de sono para viver, vai deixar para dormir quando morrer. É casada com uma mulher que adora dormir. Mãe de Maria Beatriz, a Biatômica. Mestra em História Social pela Universidade Federal Rural de Pernambuco.



#MexeuComUmaMexeuComTodas

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