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segunda-feira, 30 de março de 2020

Cuidadoras enfrentam abusos e riscos na pandemia de coronavírus

Número de profissionais cresceu 690% entre 2004 e 2017, e cerca de 85% são mulheres, que muitas vezes realizam tarefas que vão além dos cuidados com pacientes; em 2019, Bolsonaro vetou regulamentação da profissão 
Por Maria Martha Bruno* 
30 DE MARÇO DE 2020
“Não estou perguntando se você pode. Estou dizendo que você vai ficar”, disse uma empregadora a uma cuidadora de idosos semana passada no Rio de Janeiro, tentando obrigá-la a permanecer na residência por dois meses. Em tempos de pandemia de coronavírus, patrões têm usado a Covid-19 para justificar abusos.

A trabalhadora foi orientada pelo Sindicato de Trabalhadores Domésticos de Nova Iguaçu (Região Metropolitana do estado) a não pedir demissão nem assinar qualquer papel. A entidade afirma que a profissional inclusive pode pedir uma rescisão indireta de contrato, justificando ameaça de cárcere privado.
“As cuidadoras são as que mais estão sofrendo. Estão sendo escravizadas. Há filhos que nem iam ver os pais e agora largam cuidadoras na casa, sem poder sair”, diz Zenilda Ruiz, assessora jurídica do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Município de São Paulo. Ela conta que atendeu a uma cuidadora que está sem ir a sua casa há 38 dias, mesmo com filhos pequenos.
A presidente do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do município de São Paulo, Silvia Maria da Silva Santos, afirma que parte de cuidadoras e diaristas a maioria das denúncias de abusos após o início da quarentena na cidade: “As cuidadoras estão ficando sobrecarregadas. Além das ameaças, empregadores acabam pedindo para fazer o jantar e outras atividades, sem ganhos a mais por isso”. 
Quem não enfrenta abusos, passa por mudanças na rotina por causa do coronavírus. Equipamentos de proteção individual, como luvas, máscara e jaleco, mais associados a profissionais de saúde, agora fazem parte do dia a dia de Marlene Adão Tomaz. Quando chega à casa de uma idosa de 92 anos, para dar banho e trocar curativos, ela lava as mãos, deixa os calçados perto da porta de entrada, troca de roupas, coloca os equipamentos e começa a trabalhar. 
Marlene pega três ônibus para chegar a esta residência, na Zona Sul do Rio de Janeiro, e à outra, na Zona Oeste, onde cuida de uma idosa de 82 anos. Em meio à pandemia de coronavírus e ao isolamento social em boa parte do país, a cuidadora tem conseguido chegar aos seus destinos, ao contrário de várias colegas que, com as restrições de mobilidade, chegaram a ser barradas em estações de trem do Rio por não conseguirem apresentar um documento que provasse seu vínculo empregatício. Com funções que transitam entre as de enfermeiras e empregadas domésticas, estas profissionais sempre tiveram que lidar com informalidade laboral, cargas de trabalho exaustivas e rotinas estressantes.    
Em trabalhos anteriores, Marlene foi vítima de abusos semelhantes aos enfrentados por trabalhadoras domésticas:



“Na casa de um dos idosos, eu não tinha alimentação. Precisava levar a marmita, mas a filha dele não me deixava colocar na geladeira. Como almoçava muito tarde, às vezes a comida azedava”. 
“É cansativo, é estressante. Eu tinha muita insônia. Ia dormir tarde, acordava 3h da manhã e ia trabalhar sem ter dormido. Acho que estava precisando de um tratamento psicológico. São muitos pacientes com debilidades e doenças graves. É muita coisa que cansa a mente da gente”, diz Marlene, sobre sua saúde nos tempos em que cuidava de vários pacientes durante a semana.

Aumento de idosos e profissão em alta

Em 2017, o extinto Ministério do Trabalho mostrou que havia 34.051 cuidadores de idosos no país, um aumento de 690% na comparação com 2004, quando eles eram 4.313. A “Pesquisa para uma Política Nacional do Cuidado”, divulgada pelo DataSenado em dezembro do ano passado, afirma, contudo, que não existem estimativas confiáveis do número de cuidadores de pessoas com doenças raras e com deficiência, grupo que também necessita destes profissionais.
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Assim como enfermeiras e domésticas, a classe é predominantemente formada por mulheres. Entre os 1.153 profissionais cadastrados pela Associação Brasileira dos Empregadores de Cuidadores de Idosos (Abeci), 85% são mulheres e 15% são homens. Segundo a Associação dos Cuidadores de Idosos da Região Metropolitana de São Paulo (Acirmesp), nos cursos de capacitação acompanhados pela instituição, salas de aula possuem, em média, 27 mulheres em um total de 30 alunos.
No final do ano passado, o país possuía 34 milhões de pessoas com 60 anos ou mais (16,2% da população), justamente o grupo de maior risco durante a pandemia de coronavírus, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD) do IBGE. O órgão estima ainda que, em 2060, o percentual de brasileiros com 65 anos ou mais chegará a um quarto da população. De acordo com o DataSenado, 41% dos brasileiros conhecem alguém que precisa da ajuda de um parente ou cuidador para realizar atividades do dia a dia, como comer, tomar banho ou trocar de roupas. 
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Dúvida, angústia e queda nas recomendações

Cristina Alves, diretora-superintendente da Acirmesp, conta que a pandemia de coronavírus causou outras mudanças no dia a dia das profissionais, como a dispensa por familiares que preferem eles mesmos cuidar de idosos e pessoas com deficiência.
“As cuidadoras estão em um momento de dúvida e angústia. Aquelas que não têm filhos, às vezes podem ficar mais tempo na casa do idoso e até dormir, se houver condições para isso. Mas esta decisão tem que ser da própria cuidadora. E a pessoa não pode trabalhar 24h. Ela precisa de um período de descanso”, alerta.  
Adriano Machado, presidente da Abeci, afirma que desde o dia 13 de março a recomendação de profissionais a familiares caiu a quase zero, enquanto aumentaram a tensão e as dúvidas das cuidadoras, a maioria delas sobre procedimentos de higiene no trabalho. “Há muitas profissionais que não queriam trabalhar. Temos ainda famílias que não querem cuidadoras e outras famílias propondo que eles durmam nas casas dos pacientes.”

Vulnerabilidade trabalhista

Em 2019, o Senado aprovou o projeto de lei 1385/2007, que regulamentava a profissão. No entanto, o texto foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro, com a alegação de que, ao criar condicionantes para a profissão, o texto restringiria o livre exercício profissional, garantido pela Constituição. Entre as determinações do projeto, a obrigação de que a cuidadora tivesse ensino fundamental completo e curso de qualificação na área.
Sem a regulamentação da categoria, a classe fica em um limbo legal e, vezes responde às regras determinadas pela PEC das Domésticas, vezes pelas normas gerais de trabalho (quando a profissional é celetista). Há ainda as que são cooperativadas e as microempreendedoras individuais (MEIs).  
No entanto, a informalidade total é corriqueira. Em um dos trabalhos, Marlene Adão é contratada por uma empresa. Celetista? “Praticamente não tenho vínculo nenhum! A gente só tem vínculo quando querem reclamar alguma coisa, mas na hora do direito não tem nada. Eles não assinam carteira, nem pagam FGTS. Eu pago meu INSS como autônoma”, ela explica. No outro trabalho, ela divide os rendimentos com outra cuidadora, que fica na casa da idosa na maior parte do tempo. 
A advogada Clarissa Franco, especializada em Direito Médico e da Saúde em Brasília (DF), afirma que a maioria das profissionais ganha por diária. “A rotatividade barateia a contratação. Ninguém quer comprometimento com as leis trabalhistas. Após a contratação, existe ainda uma exploração muito grande pelos tomadores de serviço, com desvios de função e abusos”, ela diz. “Não é incomum que cuidadoras sejam obrigadas a executar tarefas como cozinhar e limpar a casa. Há também muitos casos de assédio sexual”, completa. 
Ela afirma que a melhor forma de a profissional se proteger é deixar as funções nitidamente estabelecidas no contrato de trabalho. “Provar os abusos na Justiça é complicado, porque é uma palavra contra a outra. Além do mais, muitas cuidadoras são pessoas humildes que desconhecem os limites de suas atribuições. A melhor saída é especificar quais são essas funções no papel e fazer um contrato com o tomador de serviços, mesmo se a pessoa for autônoma”, aconselha. 
*Maria Martha Bruno editora da Gênero e Número

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