Dinheiro na mão é vendaval. A expressão, imortalizada no samba de Paulinho da Viola, tem uso ainda mais frequente quando quem a utiliza faz referência a uma mão feminina. De brisa à furacão: a relação da mulher com o dinheiro é histórica e culturalmente opressora, com limitações e consequências ainda muito recentes. Até 1962, por exemplo, mulheres não tinham acesso a CPF próprio — o que impactava, inclusive, a vida financeira já que, sem o registro, era impossível abrir conta no banco.
Hoje, mesmo com direitos básicos assegurados graças à luta dos movimentos feministas, o patriarcado ainda estruturalizado social e institucionalmente traz vieses invisíveis difíceis de serem combatidos. Uma pesquisa sobre o comportamento financeiro das mulheres, realizada pelo Banco Itaú em parceria com a Box 1824, mostrou que, mesmo quando ganham mais, a confiança para lidar com o próprio dinheiro não cresce em igual proporção. E a desconfiança feminina é generalizada: está presente em todas as idades, classes e formações. Entre os possíveis motivos causadores da insegurança, o estudo aponta, entre outros, a falta de experiência e a ausência de estímulo social à educação e autonomia financeira.
Hoje, mesmo com direitos básicos assegurados graças à luta dos movimentos feministas, o patriarcado ainda estruturalizado social e institucionalmente traz vieses invisíveis difíceis de serem combatidos. Uma pesquisa sobre o comportamento financeiro das mulheres, realizada pelo Banco Itaú em parceria com a Box 1824, mostrou que, mesmo quando ganham mais, a confiança para lidar com o próprio dinheiro não cresce em igual proporção. E a desconfiança feminina é generalizada: está presente em todas as idades, classes e formações. Entre os possíveis motivos causadores da insegurança, o estudo aponta, entre outros, a falta de experiência e a ausência de estímulo social à educação e autonomia financeira.
Da pré-história à modernidade
Ainda segundo a pesquisa, se durante a pré-história a mulher gozava de certo protagonismo social devido à capacidade, à época mística, de gerar outra vida, a partir da idade moderna suas vozes foram caladas tanto no campo privado quanto na vida pública. Com a labuta por direitos igualitários, as mulheres foram, lentamente, conseguindo conquistar legalmente espaços importantes de atuação — embora ainda estejam longe do cenário de equidade justo e desejado.
A advogada e empreendedora Christiane Baladão sabe, na prática, que embora muito já tenha sido garantido, a ausência de uma educação financeira que comece ainda na infância, para meninas, faz com que a gestão do próprio dinheiro seja um desafio e tanto. Filha de funcionário público, na sua casa, falar de dinheiro era sinônimo de abordar dívidas.
“Quem geria a verba da casa era a minha mãe, com os ganhos do meu pai, obviamente. Lembro muito dele, aliás, sentar à mesa e colocar na ponta do lápis custos do lar. Por mais que eu tenha aprendido desde pequena o significado de despesa, nunca tive informação para compreender o que era dinheiro como rentabilidade”, lembra.
Na época do primeiro estágio, Baladão abriu uma conta corrente vinculada a do pai, para que recebesse a remuneração mensal. Sem nenhuma instrução a respeito de como e quando utilizar a plataforma financeira, a então universitária de Direito entrou no cheque especial. “Tenho recordação de receber o talão de cheque e ir comprar um casaco em zilhões de vezes. Um dos cheques voltou e eu não sabia o que fazer nem para onde correr”.
A associação entre dinheiro e déficit também era frequente na vida de Verônica Oliveira, faxineira, palestrante e proprietária do Faxina Boa. Nascida em uma família de classe média, a primeira recordação que tem sobre o assunto é a de ter feito uma dívida na banca ao lado do colégio, na qual comprava doce e pendurava para pagar depois: “No final do mês, quando a conta veio, era maior do que a minha mesada. E mesmo hoje, quase três décadas depois, ainda cometo erros muito básicos como esse”. Para a empreendedora, que teve o nome sujo dos vinte aos 35 anos, faltam iniciativas públicas que priorizem o ensino a uma relação saudável com o dinheiro — e não o que acontece costumeiramente hoje, com liberação de crédito e incentivo de classes mais pobres para o parcelamento e endividamento.
“Eu ganho, ela gasta”
O número de lares chefiados por mulheres aumentou 47%, entre 2012 e 2019, segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Comum (PNAD), contrariando o dito popular que abre esse bloco. Entretanto, mesmo em uma crescente de chefes de família femininas, a discrepância de remuneração entre os gêneros ainda é escancarada: uma pesquisa do IBGE comprovou que, em todas as ocupações selecionadas, mulheres têm ganho inferior aos homens — mesmo com a desigualdade salarial em queda entre 2012 e 2018, elas chegam a receber, no País, em média, 20,5% a menos que eles.
Frente às desigualdades socioeconômicas gritantes, iniciativas femininas educativas e informativas estão brotando com o intuito de transformar realidades femininas. Foi o caso de Baladão e de mais três profissionais que se juntaram para criar o podcast Dinheiro Explícito.
“É uma oportunidade e um espaço para falar de dinheiro de uma forma mais leve, prática, mais desconstruída da forma como é usualmente abordada no meio acadêmico. No podcast, conversamos de uma forma mais real sobre o assunto, de um jeito que a temática se aproxime das mulheres, para ajudá-las, inclusive, contando casos e soluções que nós mesmas passamos”, explica a podcaster Gabriela Ferreira, doutora em Administração e fundadora da Design de Conexões — cujo propósito é apoiar pessoas e empresas no desenvolvimento de mentalidade empreendedora para inovar com impacto. Também no caso de Ferreira, a educação financeira não era assunto corriqueiro em casa. “O discurso regente era trabalhar para ter dinheiro. Era o dinheiro como fim, não como meio. Ele vinha com essa ideia de sacrifício, estava associado ao cansaço. Precisamos repensar e rever essa lógica”.
Quando o podcast foi ao ar, as apresentadoras perceberam, principalmente por meio do engajamento no Instagram do projeto, que as incertezas quanto às possibilidades de uma gestão financeira saudável faziam parte, de uma forma ou de outra, do cotidiano de quase todas as mulheres que conheciam. Limite do cartão, juros, conta poupança entre outros termos passavam longe do entendimento feminino de forma efetiva.
Muitas das minhas clientes no escritório de advocacia, por exemplo, não sabem até hoje como precificar seu trabalho ou seu produto. E essa também era uma dificuldade que eu tinha, lá no começo. Comecei então, nessas trocas, a identificar desafios comuns. E entre uma das grandes dificuldades, estava, claro, a de falar sobre dinheiro, sobre quanto ganhamos, quanto queremos ganhar. É necessário despi-lo e criar o hábito de conversarmos sobre o assunto porque o dinheiro é, potencialmente, uma plataforma de independência, principalmente para mulheres em situação de vulnerabilidade, diz Baladão.
O pensamento vai ao encontro de dados recentes do Observatório da Mulher contra a Violência (OMV) em conjunto com o Instituto de Pesquisa DataSenado: segundo o estudo Aprofundando o olhar sobre o enfrentamento à violência contra as mulheres, o número de mulheres que afirma não ter procurado ajuda aumentou — de 15% em 2013 para 27% em 2017 — e um dos motivos listados foi a dependência econômica. Muitas delas têm medo de não conseguirem se sustentar e sustentar os filhos ou ainda relatam vergonha da reação da família, dos amigos e da sociedade em geral.
Mudança
Em 2017, um levantamento realizado pela DSOP Educação Financeira mostrou que as mulheres já são maioria entre os participantes de cursos de educação financeira — representando, em média, 58% dos inscritos. “Conquistamos a liberdade econômica, na década de 70, de termos nossa própria conta bancária. Agora, precisamos nos educar financeiramente pra saber exatamente o que fazer com ela”, reforça Baladão.
Além de apostar na educação, as mulheres também estão dando um passo adiante e aprendendo a investir — e não só poupar. É o caso de Mary Vivian Bonfim, primogênita de uma mãe solo de três filhos. “Até meus 14 anos, minha mãe tinha somente o ensino fundamental, mas com o nosso apoio concluiu o ensino médio fazendo supletivo. Sempre atuou como auxiliar de serviços gerais e nos criou com um salário mínimo ou menos. Apesar de nosso pai morar muito próximo, não foi presente emocional e financeiramente e, como era autor de violência doméstica contra a minha mãe, sempre o quis muito longe. Assim a vida me deu muitas responsabilidades desde cedo e eu as abracei”, conta. Ainda muito nova, ajudou a cuidar dos irmãos e da casa. Quando adolescente, passou a auxiliar a matriarca a gerenciar as contas do lar.
Fazia lista de compras e ia aos três mercados próximos do bairro para comparar preços. Hoje, aos trinta anos, divida a residência com a mãe, os dois irmãos, duas sobrinhas, e dois animais de estimação. Tem a maior renda da casa e, por isso, contribui com a maioria dos gastos. “Fiz a distribuição proporcional à renda de cada um, para que houvesse equidade”, explica.
Mesmo com todas as dificuldades, a mãe de Bonfim sempre a incentivou a buscar oportunidades que a fizessem crescer e diz que foi assim que chegou à USP — contrariando estatísticas e enfrentando, no processo seletivo, a meritocracia e uma concorrência privilegiada. Formou-se no ano de 2018 em Nutrição.
“Foi uma luta danada e só foi possível graças a minha mãe, que ia trabalhar a pé para que eu pudesse pegar ônibus até o cursinho e ainda pegou um empréstimo para pagar as mensalidades. Economia, dificuldade, pouco dinheiro, perrengue, tudo isso sempre foi presente na minha vida.” O estalo, então, para começar a estudar sobre educação financeira veio em 2015, depois de ter uma trombose na cabeça e um acidente vascular cerebral (AVC). Na época, era freelancer e trabalhava com eventos. Depois de passar 45 dias internada, teve de lidar com as preocupações financeiras que a esperavam do lado de fora.
“Minha mãe tinha sido dispensada da casa de família em que trabalhava, todo mundo estava desempregado e eu não podendo voltar ao mesmo ritmo de da vida de freela. Foi angustiante demais. Resolvi procurar conteúdos sobre educação financeira na internet”, conta. Participante de uma das rodas do Invista como uma Garota, hoje a nutricionista tem uma reserva de emergência para seis meses montada, investe em fundos pensando a longo prazo com foco em sua independência financeira e, no fim do ano passado, começou a se aventurar na renda variável.
“Investir, para mim, não é sobre ficar rica, mas sobre não passar perrengue. Meu foco é viver confortavelmente e não apenas sobreviver, como sempre foi.”
Criado em 2018, o Invista como uma Garota surgiu para levar o conhecimento adquirido pelas sócias Ana Vitória Baraldi e Victoria Giroto a outras mulheres. “Somos feministas e acreditamos em brigarmos por aquilo que queremos, pelos lugares que gostaríamos de ocupar e sempre soubemos que essa discussão também precisava passar pelo dinheiro, em sermos donas da nossa grana”, diz Baraldi. As rodas são feitas exclusivamente com mulheres em empresas, projetos ou em grupos particulares que resolvem contratar a iniciativa. “Queremos mostrar e refletir sobre o quanto saber lidar com seu dinheiro é essencial para você ter independência, atingir seu potencial e conquistar seus objetivos”, completa Giroto.
Interseccionalidade
Em um país em que mulheres negras recebem menos da metade do salário de um homem branco, qualquer discussão de gênero que não leve em conta a interseccionalidade é rasa — e irresponsável. Explorar cada vez mais a disseminação do controle financeiro entre mulheres é fundamental, mas é urgente, antes de qualquer reflexão ou ação, compreender questões de raça e classe social.
Em 2018, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) lançou o projeto Futuro na mão: dando um jeito na vida financeira. Melhorar a gestão do orçamento familiar, quebrar o ciclo da pobreza entre gerações e garantir o bem-estar de milhares de brasileiros beneficiários do Bolsa A iniciativa, que vai incentivar a reflexão e a troca de ideias sobre práticas de educação financeira, é fruto da parceria com a Associação de Educação Financeira do Brasil e conta com o financiamento do Banco Mundial e da Organização das Nações unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
A princípio, a ideia de ter um programa de educação financeira para mulheres de baixa renda é importante, mas é um público muito vulnerável e heterogêneo. Há muitas mulheres que mesmo apesar da baixa renda conseguem ter uma boa gestão financeira das suas casas e outras que têm muita dificuldade de fazer essa gestão. E quando você entra num contexto de pobreza, tal administração fica mais complexa. Já estudei bastante orçamento doméstico de baixa renda e sei que existem umas especificidades que, muitas vezes, os mais ricos não têm, como, por exemplo, o fato de que, quando a pessoa não tem um trabalho formal ou fixo, ela tem entradas de renda muito picadas e variadas. Como é que você faz uma gestão financeira de uma casa, se você não sabe quanto que você ganha todo o mês? Ainda mais quando você tem contas que são fixas como a luz, o aluguel. Então, a educação financeira é, sim, importante, mas ela não resolve o problema da pobreza. Se a pessoa é muito pobre, ela vai gerenciar o quê?, reflete Mariel Deak, pesquisadora em políticas públicas.
Mary Vivian Bonfim diz que, com frequência, pensa em qual tipo de estratégia teria ajudado a mãe lá atrás, quando os três filhos eram pequenos.
“Pertenço à classe C, mas sei que, mesmo assim, ainda tenho privilégios pois sou branca, tenho ensino superior, um emprego CLT. Jamais direi para uma mãe solo, preta e periférica, que trabalha mais de 12 horas por dia para ganhar menos de um salário mínimo, que tudo é uma questão de ela estabelecer prioridades. Mas tenho para mim que para nós, os pobres, o maior sofrimento é o da falta de acesso aos nossos direitos. E a ausência de uma educação financeira, com certeza, também torna mais difícil que essa mãe tenha as ferramentas necessárias para tomar as rédeas da situação.”
Ainda segundo a nutricionista, iniciativas voltadas ao público de baixa renda, como Nath Finanças, e o NoFront, que visa o empoderamento financeiro negro, são fundamentais para inspirar uma mudança verdadeiramente estrutural.
“Não existe fórmula mágica, existe o que funciona para cada um, de acordo com a sua realidade e com as ferramentas disponíveis. Adoraria ter a solução, mas, infelizmente, não tenho. Por enquanto, o que consigo fazer é buscar ser um exemplo para as minhas sobrinhas. E montar uma rede de apoio entre as minhas amigas”.
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