Quando foi lançado em 1960, Quarto de despejo, da escritora Carolina Maria de Jesus, causou repercussão nacional e internacional quase que imediatas. A mulher negra, favelada, moradora do Canindé, encontrou ou foi encontrada pelo jornalista Audálio Dantas, que à época fazia reportagens abordando a realidade ainda nascente das favelas.
Em decorrência do sucesso, vieram as críticas. Houve quem duvidasse da autenticidade dos escritos. Houve quem acusasse o jornalista de ser o verdadeiro escritor. Ainda hoje, o academicismo reluta em dar à escritora um lugar no panteão dos grandes escritores nacionais.
Em decorrência do sucesso, vieram as críticas. Houve quem duvidasse da autenticidade dos escritos. Houve quem acusasse o jornalista de ser o verdadeiro escritor. Ainda hoje, o academicismo reluta em dar à escritora um lugar no panteão dos grandes escritores nacionais.
O livro é uma reprodução dos diários da escritora. O título, quarto de despejo, vem do raciocínio da autora: as favelas são o quarto de despejo das cidades, lugar onde os pobres, favelados, criminosos e indesejáveis pela elite são amontoados, ignorados, deixados à própria sorte.
A linguagem crua, às vezes em desacordo com as regras gramaticais, é a maior prova da autenticidade dos registros. O dia a dia da favela, a luta da catadora de papéis pela sobrevivência. A fome. Os crimes cometidos na favela, o descaso da polícia com a vida dos favelados. O preconceito. A miséria:
15 DE JULHO DE 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. (…). Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lave e remendei para ela calçar.Eu não tinha um tostão para comprar pão. (…). (JESUS, 1960. Pgs. 9).10 DE MAIO. Fui na delegacia e falei com o tenente. Que homem amável! Se eu soubesse que ele era tão amável, eu teria ido na delegacia na primeira intimação. (…). O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidades de delinquir do que tornar-se útil à pátria e ao país. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um relatório e envia para os políticos? (Idem, pg. 26).
A fala do “amável” tenente de polícia demonstra o enraizamento profundo do pensamento de se enxergar sempre o favelado como mais propenso a se tornar “delinquente”, marginal. Esse pensamento persiste na mentalidade policial até os dias atuais, como os noticiários mostram todos os dias.
O preconceito com a raça negra é sofrido todos os dias pela então catadora de papéis e seus filhos:
Quiz saber o que eu escrevia. Eu disse ser o meu diário.– Nunca vi uma preta gostar tanto de livros como você!”(Idem, pg. 23).“ – Está escrevendo, negra fidida! (Idem, pg. 24).
Além do preconceito e de volta e meia ser chamada à polícia sem motivo nenhum, o maior flagelo da catadora é a fome:
1 DE JANEIRO DE 1959. Deixei o leito as 4 horas e fui carregar agua. Fui lavar as roupas. Não fiz almoço. Não tem arroz. (…) Os filhos não comeram nada. (Idem ,pg. 131).“Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e o arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome! (Idem, pg. 27).
O diário termina como começa: com a catadora preocupada em garantir a comida do dia para si e seus filhos:
31 DE AGOSTO. A pior coisa do mundo é a fome!(…)1 DE JANEIRO DE 1960. Levantei as 5 horas e fui carregar agua. (Idem, pg. 167).
Tantos anos depois de escrito, as favelas se multiplicaram pelo Brasil afora. A criminalização da pobreza, a violência gratuita sofrida cotidianamente pelos favelados nas mãos de Polícias Militares, a falta total de políticas públicas levaram ao caos urbano da realidade brasileira.
16 DE JUNHO …Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fique nervosa, pensando: Será que Deus esqueceu-me? (…). (Idem, pg. 153).
REFERÊNCIAS
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. São Paulo: Ática, 1993.
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