Com grande parte do mundo sob quarentena, há uma preocupação crescente de que crianças e adultos que vivem em ambientes com abuso doméstico se tornem também vítimas da pandemia de coronavírus, que já infectou mais 780 mil pessoas e matou 37 mil.
No Reino Unido, os telefonemas para o serviço nacional de denúncia contra abuso cresceram 65% no último fim de semana, segundo o governo. Há aumento de registros nos Estados Unidos, na Austrália e na França, por exemplo.
Mas Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora-executiva do braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para Mulheres, ressalta que nos países em desenvolvimento haverá menos oportunidades para denúncias do tipo.
Mas Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora-executiva do braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para Mulheres, ressalta que nos países em desenvolvimento haverá menos oportunidades para denúncias do tipo.
"É impossível para mulheres de muitos países com histórico socioeconômico vulnerável conseguirem fazer denúncias de violência doméstica enquanto vivem com os abusadores em residências com um ou dois dormitórios."
A BBC conversou com duas mulheres que estão atualmente sob quarentena com homens que elas acusam de abusá-las.
Essas são suas histórias.
Geeta, 27, na Índia
Essa entrevista foi realizada um dia antes do anúncio da quarentena integral no país (24/3), que deve durar ao menos 21 dias.
Todos os dias, Geeta acorda às 5h, ao lado de seu marido, em um colchão no chão. Ele ronca alto.
Na noite anterior, ele ficou bêbado e irritado. A pandemia de coronavírus significa menos pessoas usando transporte público, então, como alguém que transporta passageiros em um triciclo (autowallah), Vijay viu sua renda diária cair de 1.500 rupias por dia (cerca de R$ 103) para 700 rupias por dia (quase R$ 48).
"Quantos dias serão assim?", ele gritou, jogando no chão a garrafa que estava bebendo. Os filhos saíram correndo para trás de Geeta em busca de proteção.
Por sorte, segundo ela, o marido deitou no colchão compartilhado pela família inteira e caiu no sono logo depois do ataque de fúria.
"Levou um tempo até acalmar as crianças", afirma Geeta. "Elas já viram o pai muitas vezes desse jeito, mas ele tem sido cada vez mais violento. Ele quebra as coisas e me arrasta pelo cabelo."
Geeta tem 27 anos e está casada desde os 15 com seu marido, 11 anos mais velho que ela. Ela afirma ter perdido a conta de quantas vezes foi agredida pelo marido. A primeira vez foi na noite de casamento. Geeta tentou deixá-lo uma vez, mas Vijay não permitiria que ela levasse os filhos.
A família vive em uma vizinhança pobre na zona rural da Índia, país com 1,3 bilhão de habitantes que registrou até agora 1.251 pessoas infectadas com coronavírus e 32 mortes.
Num dia normal, Geeta caminha 1 km até o poço mais próximo para coletar água. Quando já está de volta a sua casa, ela papeia com vizinhos enquanto espera a chegada do comerciante de vegetais com seu carrinho de mão.
Depois de comprar a comida da casa para o dia, Geeta começa a preparar o café da manhã. Seu marido sai por volta das 7h, retorna para almoçar e cochilar, e depois saindo novamente após as duas crianças mais velhas voltarem da escola.
Mas as coisas mudaram no dia 14, quando as escolas fecharam. "As crianças estão em casa o tempo todo agora, e começaram a irritar meu marido."
"Em geral, ele concentrava sua raiva em mim, mas começou a gritar com eles por causa de pequenas coisas, como deixar um copo no chão. Depois, digo algo para desviar sua atenção para que ele fique com raiva de mim, mas quanto mais tempo ficamos juntos, menos consigo pensar em distraí-lo."
Plano interrompido
Geeta tinha um plano. Enquanto o marido estava no trabalho, ela concluía a limpeza da casa e seguia até um prédio comercial nos arredores do bairro.
Lá, ela frequentava uma aula secreta organizada por líderes comunitários, onde as mulheres aprendiam a costurar, ler e escrever.
Geeta quer ter habilidades suficientes para ser financeiramente independente e viver com seus filhos. Na aula, ela também aprender a ajudar vítimas de violência doméstica.
Mas a quarentena de 21 dias na Índia, que começou em 24 de março, acabou com o plano. As aulas foram suspensas, e é impossível aos conselheiros comunitários visitarem mulheres vulneráveis.
Vimlesh Solanki, voluntária do Sambhali Trust, organização que apoia mulheres em Jodhpur, a segunda maior cidade do Estado do Rajastão, diz que o coronavírus colocou mulheres em perigo.
"Uma quarentena integral significa que a rotina diária foi totalmente alterada. Agora não há carrinhos de frutas, legumes e verduras circulando pelas regiões, então é preciso caminhar muito até um mercado para poder comer todos os dias."
"Situações estressantes como essa significam que há mais coisas que desencadeiam ataques de parceiros já abusivos".
Kai, 19, em Nova York
Kai digita lentamente no celular. "Minha mãe quer que eu fique com você." A resposta vem rápido: "Certo".
Na semana passada, a adolescente retornou à casa que ela prometeu nunca mais voltar. "Meu cérebro desligou no segundo que eu entrei ali. Tudo se foi, cada sentimento."
Ela se mudou para morar com o pai, homem que ela acusa de abusar física e sexualmente dela por anos.
Há duas semanas, Kai pensava que o coronavírus seria algo passageiro e sumiria dos noticiários. Mas aí as coisas mudaram.
Os funcionários da loja onde a mãe dela trabalha estavam ficando inquietos e nervosos com as notícias de que a pandemia havia chegado com força a Nova York.
A equipe dali tinha contato o dia inteiro com clientes, mas eles não precisaram se preocupar por muito tempo. O estabelecimento fechou sem data para voltar, e a maioria dos funcionários foi demitida.
A mãe de Kai perdeu seu emprego, que pagava US$ 15 por hora (cerca de R$ 78), e foi informada de que teria plano de saúde por mais cinco dias.
A situação começou a pesar sobre ela, que enfrenta há anos problemas de saúde mental.
"Ela teve uma crise recentemente. Começou a gritar que as coisas estavam ficando loucas e que eu deveria ir para casa de meu pai."
Essas palavras, segundo a jovem, lhe deram calafrios. Ela foi para o quarto esperando que as coisas se acalmassem, mas quando voltou, sua mãe disse: "Por que você ainda está aqui?"
Há apenas alguns meses, Kai começou a fazer terapia para lidar com anos de abuso físico e sexual que relata enfrentar desde que era pequena. Ela ainda não havia relatado o caso para sua mãe e sua irmã.
Ainda estava cedo, mas Kai diz que a terapia já ajudava a se sentir mais no controle de sua vida - e mais esperançosa sobre o futuro.
Mas o abrigo onde se encontrava com o terapeuta anunciou que teria que fechar em razão do avanço do coronavírus. E na semana passada, voltou a morar com o pai.
A outra vez em que ficaram juntos foi durante o furacão Sandy, em 2012. A casa ficou sem energia, e, segundo ela, os abusos foram particularmente violentos.
Kai afirma que não sofreu nada desta vez, mas não existe muita rotina nos abusos. Em geral, depende do que ele está assistindo na internet.
"Ele fica aqui o tempo inteiro", sussurra, "durante o dia em que ele assiste TV em seu computador na sala de estar. À noite, eu o escuto assistindo pornô".
Ela sabe que ele está acordado quando o ouve fazer sua vitamina de café da manhã. "Eu odeio tanto isso, é tão alto, o som do liquidificador me paralisa. É o começo do meu dia, quando eu tenho que estar vigilante."
Porta sem fechadura
Kai não dorme muito desde que voltou para essa casa, e a porta de seu quarto não tem uma fechadura.
Segundo ela, o abuso físico era comum quando fazia algo que o irritava. Atualmente, ela planeja ficar fora do radar dele e só sair do quarto para ir ao banheiro e comer algo na cozinha.
"Ele age como se estivéssemos vivendo um tempo estranho na história, mas não fala nada sobre o abuso. Isso faz com que eu sinta que estou louca. Ele não fez nada ainda desta vez, mas a expectativa e a ansiedade estão me matando por dentro."
Kai passa o dia todo online. Recentemente, tem assistido a análises de filmes que viu no YouTube. Ela gosta de ver críticas sobre obras que assistiu.
A jovem espera que sua mãe deixe que ela volte logo para casa, ou que a pandemia passe e ela possa encontrar outro lugar para morar.
Ilustraçōes de James Mobbs e traduçōes de Rohan Nair
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