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terça-feira, 17 de março de 2020

Pilar del Río: "Emergência climática e feminismo são as chaves para o tempo em que vivemos"

  • marie claire
  • MARIANA PONTUAL, DE LISBOA, EM COLABORAÇÃO PARA MARIE CLAIRE
  • 15 MAR 2020

Nascida na cidade de Castril, na Espanha, em 15 de março de 1950, Pilar del Rio completa 70 anos como uma verdadeira potência da natureza, reunindo "todas as forças do mundo". Faz questão de ir de metrô ao trabalho, viaja pelo mundo representando a Fundação José Saramago, é ativa e engajada no Twitter, tudo isso ao mesmo tempo em que preza por conversar e tirar fotos com os fãs de Saramago pelas ruas de Lisboa. De onde ela tira toda essa energia? Da lucidez e consciência de uma vida bem vivida.

Marie Claire. Você acaba de completar 70 anos. Essa marca lhe surpreende de alguma forma? Como vê o passar do tempo?
Pilar Del Río. Da maturidade à senilidade, dizia um sábio brasileiro. Vemos como o nosso corpo muda, como se perde agilidade e diminui-se as expectativas que criamos, ao mesmo tempo que aumenta a consciência que temos de nós mesmos. É que cada dia acumulamos mais experiências e memória, por isso podemos dizer “eu” sem tanta inseguranças e medos. E sem egoísmo, com a certeza de estar viva sabendo que o final não está tão longe.

No livro "José e Pilar" (2011), de Miguel Gonçalves Mendes, você afirma "viver todos os dias como se fosse o primeiro e como se fosse o último. Isso eu tenho muito claro toda manhã quando me levanto, que se for o último não vão ficar coisas por fazer, e que vou vivê-lo com a mesma ilusão do primeiro." O que move e confere toda essa energia a Pilar?
Saber que sou uma privilegiada, que recebi muito. Fazemos a conta? Nasci num tempo em que tínhamos água quente e numa casa onde havia comida todos os dias. Fui à escola, pude aprender a ler e continuei lendo. Nunca tive que andar muitos quilômetros para ir trabalhar, recebi salários confortáveis, tenho amigas e amigos, uma família que festeja a vida diariamente, tive encontros sentimentais surpreendentes... Nessa situação, como não vou ter forças? Tenho todas as forças do mundo. Desistir seria não restituir à vida tudo o que ela me deu, seria cometer uma injustiça.

Como encara o desafio de levar adiante o rico legado de José Saramago, mantendo vivas as suas ideias e obra? Quais as maiores dificuldades e as maiores recompensas?
Fernando Pessoa, através do heterônimo Ricardo Reis, disse: "Põe quanto és no mínimo que fazes". É o que procuro fazer para encarar o desafio, coloco tudo o que sou e tenho. E trabalho todos os dias consciente de que, não sendo o escritor, tenho a responsabilidade de continuá-lo.
As maiores dificuldades nascem da constatação dos limites: observar que a dimensão do escritor é outra e que por muito que tente, não chego ao seu nível. As maiores recompensas chegam dos leitores: quando sinto que o livro ou o espaço em que se trabalha - a Fundação, em Lisboa, ou A Casa, em Lanzarote - é incorporado por pessoas distintas, que chegam até nós para nos agradecer. Receber essas respostas compensa o esforço, e muito.

Graças aos avanços da medicina, as pessoas estão vivendo mais e a expectativa de vida aumenta a cada ano. No entanto, nossa sociedade cultua fortemente a juventude, especialmente entre as mulheres. Acha que nós, mulheres, "sofremos" mais com o envelhecer que os homens? Como você percebe e lida com essas questões?
Os chamados “valores triunfantes” da sociedade de consumo me importam muito pouco, entre outros motivos porque são claramente falsos: valora-se a juventude, dizem, mas quando um jovem se apresenta, por exemplo, a um cargo político ou um posto de responsabilidade ele é descartado por ser inexperiente. Sejamos claros, a velhice me chateia porque gostava mais da imagem que o espelho me devolvia no passado e, além disso, enxergava melhor, sem necessidade de óculos, mas não sofro por isso. Claro que os homens são “maduros” e nós somos “velhas”, isso é verdade. Mas os homens maduros são mais feios que as mulheres velhas, sobretudo são muito feios os que sustentam essa besteira que vincula beleza à juventude delas enquanto eles são obscenamente arrogantes.

Entramos em 2020 e anunciamos uma nova década. Na sua opinião, quais serão as questões mais urgentes para a humanidade nos próximos dez anos?
A irrupção das mulheres na direção da sociedade de mudanças em que agora vivemos. Os valores até agora defendidos pelo patriarcado, com os seus heróis, guerras, beligerâncias variadas, fronteiras, bandeiras, domínios e submissões, devem ser substituídos por políticas diferentes: somos uma sociedade global, existe a consciência de que temos que caber todos ou o planeta explode. Por isso, meio ambiente ou emergência climática, e feminismo são as chaves para o tempo em que vivemos. No mundo todo será assim, o novo no lugar dos discursos de prepotência social e de gênero que já não são aceitáveis.

Se fizermos uma retrospectiva para a década em que nasceu, 1950, você acha que essas questões mudaram muito? Percebe de alguma forma que estejamos talvez "regredindo" em algumas delas?
De um modo geral, progredimos. Embora as resistências, vamos avançando. Quando eu nasci, nos anos 50, Espanha e Portugal viviam em ditadura, as pessoas não tinham direito a voto e, além disso, as mulheres tinham status de obediência ao marido, e as relações estavam governadas pela religião. Na Espanha o nacional-catolicismo imperava, tudo era pecado, dogmas, religião sem espírito, nos inoculavam que fôssemos submissas e que não chamássemos atenção. Depois, nos anos 60, começaram a chegar exemplos de revoltas em outros lugares. Por muito tempo que eu viva não seria capaz de agradecer o devido ao Maio de 1968 francês, que para mim foi definitivo. Foi a liberdade, deixar atrás uma sociedade sem alegria, descobrir tantas coisas. 

E para as mulheres, quais as lutas mais urgentes nessa nova década? O que mais lhe preocupa hoje e quais os caminhos possíveis para o feminismo?
Preocupa-me que se usem as facilidades da comunicação global para vender novos tipos de escravidão e submissão. Tomara que as e os feministas saibam explicar que a igualdade é liberação para todas e todos. Precisamos de base cultural para que não nos façam de mercancia e é imprescindível a educação e o humanismo para que isso seja construído sem dogmas, a partir da cidadania. Este é o tempo da ética da responsabilidade e, no quesito responsabilidade, somos campeãs. Mesmo quando só servíamos para parir e servir, o mundo só se sustentou porque nós, mulheres, o mantivemos em pé.

É muito diferente ser feminista hoje do que nos anos 1970 na Espanha Franquista?
É muito diferente, claro que sim. Naqueles tempos não havia luz, hoje em dia conquistamos a rua, temos voz e palavra. Somos aquilo que queremos ser no trabalho, no amor e na sociedade. Isso sim, mas não podemos esquecer que muitas mulheres ainda não estão incorporadas no fabuloso mundo da política eleitoral.

O que a Pilar de 70 anos falaria para a Pilar de 20?
Que resista. Que para chegar aos 70 com força, sonhos, desejos e vitalidade é preciso ter combatido e aguentado muito. Mas é possível, se vamos juntas, claro, se consegue.

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