Revista Consultor Jurídico, 24 de março de 2020
O coronavírus (Covid-19) foi reconhecido como pandemia pela Organização Mundial de Saúde e também calamidade pública no Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.
A melhor síntese a respeito do contexto atual foi trazida pelo secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, em vídeo divulgado aqui e transcrito a seguir:
“Enfrentamos hoje uma crise mundial de saúde sem precedentes, nos 75 anos de história das Nações Unidas. As pessoas estão em sofrimento, doentes e assustadas. Uma recessão mundial, que pode vir a ter uma dimensão nunca vista, é cada vez mais uma certeza.Este é um momento que exige políticas de ação coordenadas, decisivas e inovadoras por parte das economias mais desenvolvidas. Devemos enfatizar que os países mais pobres e as pessoas mais vulneráveis, especialmente as mulheres, serão os mais afetados.Esta é, acima de tudo, uma crise social que exige solidariedade. A gestão desta crise apresenta-se também como uma oportunidade única.Feita corretamente, poderemos apostar numa recuperação que trilhe um caminho mais sustentável e inclusivo.Apelo a todos os líderes mundiais que se unam e disponibilizem uma resposta urgente, e coordenada. As Nações Unidas irão apoiar todos os governos para assegurar que a economia mundial, e as pessoas que servimos, saiam mais fortes desta crise. Mais do que nunca, necessitamos de solidariedade, de esperança e de vontade política para juntos, superarmos esta crise.Está provado que o vírus pode ser contido. Tem de ser contido.Se permitirmos que se propague como uma praga, sobretudo nas regiões mais vulneráveis do mundo, o vírus matará milhões de pessoas.É ainda necessário alterar esta situação, em que que cada país tem a sua própria estratégia de saúde, para que, com total transparência, se adote uma resposta global coordenada, que ajude os países menos preparados a lidar com esta crise.Os governos têm de prestar o seu maior apoio ao esforço multilateral no combate ao vírus, liderado pela Organização Mundial de Saúde, cujos apelos devem ser inteiramente considerados.Esta catástrofe sanitária deixa claro que somos apenas tão fortes quanto o sistema de saúde mais fraco.A solidariedade mundial não é só um imperativo moral, é um interesse de todos.Ao contrário do que aconteceu na crise financeira de 2008, injetar capital no setor financeiro, por si só, não resolverá esta crise. Não estamos perante uma crise da banca. Na verdade, os bancos devem fazer parte da solução.Não nos podemos esquecer que esta é, essencialmente, uma crise social. Fundamentalmente, as pessoas devem ser a nossa prioridade: os mais vulneráveis, os trabalhadores com salários baixos, as pequenas e médias empresas. Isto significa apoio a salários, garantias bancárias, proteção social, prevenindo falências e a perda de postos de trabalho.Também significa desenhar respostas orçamentais e monetárias, para garantir que o fardo não caia sobre aqueles que menos o podem suportar.A retomada não pode ser feita à custa dos mais pobres e não podemos criar uma legião de novos pobres.A crise financeira de 2008 demonstrou, claramente, que os países com sistemas de proteção social robustos sofreram menos e recuperaram mais rapidamente. Temos de aprender a lição e garantir que esta crise representa uma oportunidade única, para reforçar a resposta às emergências de saúde e o investimento crucial em serviços públicos do século XXI.Temos um quadro de ação: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e o Acordo de Paris para as Alterações Climáticas. Temos de cumprir as promessas feitas às pessoas e ao planeta.” (grifos nossos)
O secretário-geral da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Angel Gurría, propôs solução semelhante ao sugerir coordenação de esforços internacionais em prol de uma espécie de “Plano Marshall” global.
É nesse contexto que a União Europeia suspendeu a restrição fiscal de déficit máximo de 3% do PIB para os países do bloco no esforço de ampliar imediatamente a capacidade estatal de enfrentamento da pandemia e da crise econômico-social a ela relacionada. Segundo a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, “isso significa que os governos nacionais vão poder bombear na economia o quanto for necessário”.
Estados Unidos e Reino Unido também expandiram significativamente o gasto público para fazer face às demandas sanitárias, sociais e econômicas da pandemia, em maior ou menor nível de aderência ao exemplo da resposta dada pelo governo chinês.
Quanto ao Brasil, parecemos viver uma realidade paralela em que quase nada constrange o dogmatismo dos defensores das regras fiscais inscritas na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei de Responsabilidade Fiscal (meta de resultado primário), na Constituição de 1988 (regra de ouro) e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (teto global de despesas primárias dado pela Emenda 95/2016).
Chega a parecer um relato típico do livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, o fato de que ainda há loucos que defendem ajuste fiscal (tramitação da PEC Emergencial) em tempos de necessidade premente de expansão significativa do gasto governamental (exclusivamente direcionado ao enfrentamento das dimensões sanitárias, sociais e econômicas da pandemia do Covid-19)...
Segundo Helio Gurovitz, precisamos perguntar a todas as autoridades omissas, atrasadas e descoordenadas sobre quantas mortes serão necessárias para que o Brasil aja em consonância com as recomendações internacionais?
A hora é de salvar vidas. Haverá custos econômicos? Sem dúvida. Será esse o problema de amanhã. Mas primeiro é preciso resolver o de hoje: deter o novo coronavírus. Não dá para esperar. [...], a hora de agir é agora.Os números demonstram que não podemos nos dar ao luxo de vacilar nem de postegar as ações. Países que demoraram ou não levaram a Covid-19 a sério no início – como Itália ou Espanha – estão pagando um preço altíssimo em mortes e sobrecarga do sistema hospitalar. Só quando se ataca a doença com seriedade, os casos recuam.[...] Deixando a doença se espalhar a 30% dos brasileiros, haveria nada menos que 315 mil mortos (0,5% dos 63 milhões). Isso faria da Covid-19 a segunda maior causa de morte no país, atrás apenas das doenças do coração (que mataram 356 mil em 2018, segundo dados preliminares do Ministério da Saúde), logo acima do câncer (227 mil). Mesmo que a estratégia de mitigação aplicada aos grupos de risco reduzisse a mortalidade a níveis coreanos, ainda haveria 63 mil mortos – mais que o total de homicídios.Quantos mortos o país está disposto a aceitar para não ficar paralisado? Eis a questão real diante de nós. (grifos nossos)
É preciso que todos os agentes públicos competentes saibam que podem ser responsabilizados por ação e omissão em relação à resposta tardia ou insuficiente das medidas de contenção reclamadas pela pandemia do Covid-19. O custo fiscal da demora será certamente não só mensurado a partir do número de mortes, tampouco será contado apenas no âmbito da responsabilidade objetiva prevista no §6º do art. 37 da nossa Constituição. Certamente não enfrentar tempestiva e tecnicamente a crise sanitária ampliará o custo social e econômico, na forma de uma profunda depressão do produto interno bruto brasileiro.
Nesse contexto, as regras fiscais ficam suspensas para todas as ações que se fizerem necessárias ao enfrentamento das dimensões sanitária, social e econômica da pandemia do Covid-19, algo já – de certa forma – compreendido no art. 65 da LRF.
Não é momento para cortar salários na iniciativa privada ou pública, nem de ampliar a carga tributária, tampouco para buscar resultado primário . Precisamos, entre outras medidas, de (i) renda básica de cidadania, (ii) reconversão da indústria e do setor de serviços para atender à demanda sanitária e (iii) fluxo coordenado e ampliado de transferências federativas para Estados e Municípios executarem urgentemente a profunda expansão de custeio das ações e serviços públicos de saúde no âmbito do SUS e da segurança pública.
Sobre como custear tais estratégias, no limite, o debate passa pela possibilidade de expandir a dívida pública brasileira (vide suspensão temporária da exigibilidade das dívidas dos Estados) ou até mesmo pela emissão de moeda, o que, no cenário atual extremamente deprimido, não pressionará a inflação.
É preciso assumir que a PEC 187/2019 (PEC dos Fundos) pode ser uma fonte de custeio do Sistema Único de Saúde, assim como cabe debate transparente sobre o expressivo volume de recursos atualmente manejados estritamente no âmbito das políticas cambial, creditícia e monetária.
Os formatos jurídicos podem mudar e até mesmo um orçamento de guerra tem sido debatido no Congresso Nacional. A única coisa que não podemos admitir, diante do pacto constitucional civilizatório que nos rege desde 1988, é que o risco de morte de centenas de milhares de pessoas seja relativizado a pretexto de restrição fiscal.
Diante do cenário de guerra trazido pela pandemia do Covid-19, omitirmo-nos com falsos pretextos orçamentários e financeiros seria uma franca escolha em prol do genocídio fiscal.
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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