Um novo livro prega que a educação rígida não é o melhor caminho para criar crianças e adolescentes – e que mimá-los pode ser uma boa forma de educar
NATÁLIA SPINACÉ
18/11/2014
Está na cartilha de nove entre dez educadores de qualquer lugar do mundo: a formação de crianças e adolescentes exige disciplina e imposição de limites. As teorias pedagógicas variam, mas dificilmente alguém discorda que, para formar seres humanos equilibrados, é preciso saber dizer “não” e não poupar a criança de frustrações. O pensador de educação americano Alfie Kohn discorda. Em seu novo livro, recém-lançado nos Estados Unidos, The myth of the spoiled child (O mito da criança mimada, em tradução livre), ele afirma que não há nada errado em cultivar a autoestima da criança e protegê-la das frustrações. “A educação deve ser baseada no apoio e no amor incondicional, apenas isso”, diz.
Não é a primeira vez que Kohn contraria um consenso na área. Ele é um crítico incendiário da educação nos Estados Unidos. Não faz pesquisas, mas se dedica a questionar de forma barulhenta as dos outros – papel útil no debate público de um tema tão importante. Publicou mais de 13 livros sobre o tema. Já afirmou que o dever de casa só atrapalha a criança, porque, acredita, torna o aluno excessivamente competitivo, atrapalha a vida familiar e reduz o interesse pelo aprendizado. Kohn também criticou a competição, tão em voga na educação atual. Para ele, ensinar o espírito competitivo envenena as relações interpessoais e impede a criança de fazer o melhor que pode. Estrelas douradas e outros tipos de recompensas já entraram na mira dele. Segundo sua tese, esse tipo de reconhecimento não motiva a criança a nada, a não ser a buscar gratificações por qualquer coisa que faça, mesmo depois de adulta.
Em seu novo livro, Kohn defende a geração de jovens que nasceram entre os anos 1980 e 2000, apelidada pelos profissionais de recursos humanos como geração Y e por educadores nos EUA como “eu, eu, eu” (em inglês, “me, me, me”). A expressão se tornou popular por causa de uma reportagem publicada na revista americana Time no ano passado (ÉPOCA tratou do tema em 2012 e apelidou a mesma geração de “eu me acho”). Frequentemente, associam-se a essa geração características como narcisismo e desrespeito. Para Kohn, há um grande equívoco nesses rótulos. “Há sempre a tendência de achar que uma geração jovem é mais mal-educada que a anterior”, diz. “Não existem dados que comprovem isso.”
Kohn se dedica a achar furos em estudos como o que deu origem ao termo “eu, eu, eu”, conduzido pela psicóloga Jean Twenge, da Universidade de San Diego. Ela analisou dados de dezenas de pesquisas sobre educação e comportamento, para afirmar que os jovens de hoje são mais mimados, egoístas e narcisistas. Escreveu o livro Generation me (em português,Geração eu, não publicado no Brasil), de 2006, um marco da luta contra os mimos. Kohn vê problemas no estudo de Jean. Ela define seu objeto de estudo como “pessoas jovens”, de crianças de 3 anos a adolescentes. Kohn duvida de qualquer avaliação de comportamento que agrupe faixas etárias tão distintas. Outra imprecisão, na opinião dele, é que ela não define com que geração anterior compara os jovens de hoje. Em alguns aspectos, Jean comparou a geração “eu, eu, eu” aos jovens dos anos 1950. Em outros, aos dos anos 1980.
Para Kohn, os problemas encontrados no estudo de Jean se repetem em quase toda pesquisa sobre o comportamento de jovens. E há outros. É imenso o desafio de estudos que se propõem a analisar o comportamento de crianças e adolescentes. Como definir e medir comportamentos como “permissividade”? O que uma família considera permissivo difere do que as outras pensam. Outro ponto é que, na maioria dos casos, as pesquisas são respondidas pelos pais das crianças e adolescentes. Isso as torna parciais. Tais empecilhos não necessariamente desmentem que crianças de hoje sejam mais mimadas que em décadas anteriores, como acreditam muitos e respeitados pesquisadores. Entre eles, além de Jean, estão Roy Baumeister, professor de psicologia da Universidade Estadual da Flórida, e Keith Campbell, psicólogo da Universidade da Geórgia. Campbell é um dos autores do livroNarcisism epidemic (Epidemia narcisista, sem edição em português), de 2009. Kohn trata tudo isso como um preconceito que gera um problema. “Na tentativa de evitar que o filho se transforme numa criança mimada, (os pais) enrijecem demais a educação”, diz. Ele considera válidos esforços para fazer a criança se sentir especial e diminuir a frustração. “Ficar desapontado não promove nenhuma atitude construtiva numa criança”, diz. Para Kohn, o comportamento dos educadores e pais “antimimo” é cruel e corresponde a não cuidar de um machucado, porque a criança precisa aprender com a dor da queda. “A maneira ideal de ensinar as crianças a lidar com experiências ruins é discutir sobre isso com elas e usar exercícios hipotéticos”, diz. “Não é preciso atirá-las numa situação frustrante sem necessidade.”
Outro mandamento das teorias atuais de educação estabelece que cultivar em excesso a autoestima da criança é ruim. Pelo pensamento “antimimo”, incentivar a autoestima demais leva ao narcisismo precoce e a uma sensação falsa de poder. Mais tarde, isso pode trazer, segundo seus defensores, problemas na vida pessoal e profissional, dificuldade para lidar com críticas e aprender com os erros. Kohn trata isso como mito (leia no quadro abaixo outras críticas dele). Afirma que questionar a autoestima do jovem só atrapalha sua segurança e seu desenvolvimento.
As teses de Kohn estão longe de ter rigor científico. Servem para que pais e professores ponderem, com mais cuidado, o meio-termo adequado entre impor disciplina e estimular a expressão individual, entre mostrar como lidar com a dor e proteger contra a frustração, entre ensinar o valor da humildade e elevar a autoestima. Num cenário com tantas dúvidas e possibilidades, Kohn acerta ao menos em parte de sua tese, uma parte que parece ser infalível e simples de colocar em prática: amar e apoiar a criança, em qualquer situação.
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