Não sou de frequentar enterros, mas venho notando uma drástica mudança na relação das pessoas com a morte
LUIZ RUFFATO 25 NOV 2014
O sol nascia por detrás da Serra do Curral quando deixamos Belo Horizonte. A luz, suave, afagava as montanhas que adivinhávamos à nossa frente. Embora novembro, a manhã conservava ainda a memória da friagem do inverno. Então, Namir, o motorista, ligou o rádio, inundando o carro de notícias. O casal de locutores, cujo padrão de voz parece imposto de norte a sul, algo entre histérico e pomposo, entrevistava o dono de uma funerária, que contava, entusiasmado, estar inovando o ramo de velórios. Sua empresa, além dos serviços de praxe (caixão, velas, flores, etc), oferece também sanduíches para aqueles que forem prestar a última homenagem ao falecido. A conversa transcorreu entremeada de piadas e comentários jocosos: o óbito, ali, era apenas um detalhe comercial.
Não sou de frequentar enterros, até porque perdi tantos entes queridos ao longo da vida que os cemitérios me causam enorme repúdio, mas venho notando uma drástica mudança na relação das pessoas com a morte. Embora católica, e portanto, em tese, crente na ressurreição depois do Juízo Final, a pequena colônia italiana de onde sou oriundo, Rodeiro, interior de Minas Gerais, tinha uma ideia bastante singular do passamento de familiares e amigos. Os velórios eram momentos de extrema dor, genuína, honesta, avassaladora, porque, penso eu, perpassava-nos a consciência de que a morte põe um termo definitivo em tudo. A porta se abre e os olhos não divisam mais o rosto da mãe. No varal, balança a camisa agora inútil do filho. No terreiro, jaz o brinquedo abandonado. Na escada, cruza conosco a lembrança de alguém que há muito se foi. Só o silêncio, a solidão, o desamparo.
Também as necrópoles conformam uma hierarquia: os ilustres descansam em mausoléus; os humildes em covas rasas; mas, morada de ricos ou de pobres, estes sítios revelam uma espécie de compêndio de história individual. Os túmulos alojam nossos antepassados e evidenciam uma ascendência comum – provam, de forma inequívoca, que existimos e pertencemos a uma família, que, descortinada no tempo, ao fim e ao cabo, é o próprio conjunto da Humanidade. Não por outro motivo o Tanakh, o Antigo Testamento, base da civilização judaico-cristã, transcreve em uma seção inteira, denominada Crônicas, uma genealogia que nos remete a Adão, ou seja, ao começo dos tempos. Assim, também, o Novo Testamento inicia-se, no Evangelho segundo Mateus, com uma tentativa de filiação de Jesus a Abraão, o Patriarca, por sua vez herdeiro direto do primeiro homem.
Nosso crescente desdém pelos cemitérios e desprezo pelos rituais da morte demonstram, em verdade, como estamos nos tornando apáticos à vida. Em São Paulo, onde tudo é possível, há oito anos realiza-se o Cinetério, maratona de filmes de terror em cemitérios. Segundo a Secretaria Municipal de Cultura, a ideia é transformar os espaços onde estão sepultados os mortos em pontos de cultura – ainda que sob protesto de alguns familiares. Pouco a pouco, vamos convertendo a morte em algo corriqueiro: os velórios tornam-se quase exclusivamente evento social. Não são incomuns cenas de cadáveres expostos a céu aberto, em particular nas periferias onde o Estado demora a chegar, despertando mais curiosidade que compaixão. O corpo transfigura-se em coisa, e, como coisa, priva-se de seu caráter sagrado, não no sentido teológico, mas concreto: trata-se do único bem que efetivamente possuímos.
Pouco a pouco, vamos convertendo a morte em algo corriqueiro: os velórios tornam-se quase exclusivamente evento social
Nós só existimos em relação ao outro – é o outro que nos concede o estatuto de ser humano. O velório é o lugar onde renovamos a percepção de que nascemos para a morte. O corpo hirto que observamos estendido no caixão, para além da dor causada pelo aniquilamento irremediável, é a lembrança da nossa própria fragilidade. Frente à sepultura nos damos conta de que somos no tempo, não no espaço, pois, para existirmos agora, existiu alguém antes e existirá alguém depois (este, encarregado de nos perpetuar na memória). Quando já não nos comove a perda, dissolve-se a essência metafísica da morte, e, como fôssemos eternos adolescentes confundindo coragem com insensatez, passamos a agir de forma irresponsável conosco e com o outro, convictos de que somos imunes à morte ou indiferentes a ela. Certa feita, um menino de 14 anos, balconista de um mercadinho no bairro Bom Jesus, em Porto Alegre, indagado pela escritora Helena Terra se não temia viver ali, um dos lugares mais violentos da cidade, respondeu, displicente: Se eu morrer hoje, amanhã faz dois dias...
O carro trafegava célere por uma rodovia vicinal, no extremo oeste do estado de São Paulo, num amanhecer de outubro, quando percebi, caído no asfalto quente, o corpo de uma galinha d’angola que acabara de ser atropelada. Pedi para Djalma, o motorista que me acompanhava, desacelerar, e então assistimos a uma cena que os anos não conseguirão borrar: uma outra galinha d’angola aproximou-se, perplexa, os olhos arregalados, e, correndo risco de vida, por uma, duas, três vezes, tentou reanimar a companheira inerte, recusando aceitar que nunca mais voltariam a ciscar juntas o chão em busca de vermes, que nunca mais se aninhariam juntas à sombra da mangueira que víamos da estrada, que nunca mais, até o fim dos dias que lhe restavam, desfrutaria da presença daquela que inexplicavelmente permanecia ali, estática, muda, distante. Para sempre ausente. Para sempre.
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