EDUARDO ESTRADA |
Tratar quem se sente atraído por menores ajuda a evitar que comentam abusos
O primeiro sinal foi que “com os meninos conhecidos, ele perdia o controle”. Quando o adolescente que chamaremos de Sergi tinha 16 anos, sua mãe encontrou por casualidade umas fotos que tinha baixado da Internet. Imagens de menores nus, muito mais jovens que ele. “Nada pornográfico, nada explícito... Mas dava para ver aquilo não era normal, não podia ser”, diz sua mãe. “Você tenta deixá-lo com medo, dá bronca. Nosso filho é um menino carinhoso, ajuda em casa e cede o lugar no ônibus... Dissemos a ele, queremos te ajudar, perguntamos: você gosta de crianças? De onde vem esta atração? Por que faz isso? Mas ele só respondia: ‘Não sei. Não sei.’ O tranquilo casal de classe média conta sua história na consulta do terapeuta de Barcelona, na Espanha, que devolveu a alegria a seu filho adolescente. “Este problema, quanto mais cedo for abordado, melhor”, dizem. “Mas há um enorme tabu... Não se sabe onde procurar ajuda.”
Quando Sergi tinha 16 anos, seus pais encontraram fotos de menores nus. “Quanto mais cedo for tratado, melhor”
Os casos de abusos a menores repugnam a sociedade. No entanto, nem todos os pedófilos cometem estes atos e muitos querem parar. Por isso, a comunidade científica, sobretudo na Alemanha e no Canadá, está apostando no que chamam “prevenção primária”: oferecem terapia gratuita, financiada publicamente, para pedófilos que queiram se tratar. O objetivo é evitar os abusos antes de que ocorram, ajudando o potencial agressor a controlar, eliminar ou prevenir sua parafilia sexual.
Na Espanha, por exemplo, não existe nada parecido. Dos 40 sexólogos contatados pelo EL PAÍS em busca de pedófilos que acudam voluntariamente à terapia, a maioria concluiu que poucos procuram ajuda voluntariamente. “Em parte porque não é fácil encontrar”, opina o catedrático de Psicologia da Universidade do País Basco, Enrique Echeburúa. “Aqui os únicos programas de tratamento são feitos na prisão e a imensa maioria dos pedófilos que chegam às consultas privadas são mandados de lá”. “Não é suficiente demonstrar remorso quando já se abusou de uma criança”, acrescenta Josep María Farré, chefe de Psiquiatria do Hospital Quirón Dexeus. “Para prevenir o abuso é preciso se ocupar de quem possa se converter em agressor. Mas, infelizmente, este país não está preparado para isso.”
Na Alemanha existe há uma década o Projeto Dunkelfeld – que significa ‘campo escuro’, porque quer chegar aos lugares onde a lei não chega. É financiado pelo Ministério da Justiça e da Família “já que o objetivo principal é proteger as crianças”, diz Till Amelung, um dos terapeutas. O objetivo está claro: a forma rompe clichês. O programa é anunciado com um vídeo onde aparecem homens mascarados, um médico, um executivo, outro que parece um professor. “É óbvio o que você deve pensar daqueles que são como eu”, diz a voz em off. “Eu também pensava isso. Doente. Pervertido. Escória.” O último tira a máscara: “Na terapia aprendi que ninguém tem a culpa de sua inclinação sexual, mas todos somos responsáveis por nossos atos.” Dia 5 de novembro, o Projeto Dunkelfeld lançou um programa para pacientes entre 12 e 18 anos esperando que a terapia seja mais eficiente com eles. A ideia é que os anos de isolamento e segredo só pioram as coisas e muitos acabam se autojustificando.
Eles nascem assim, se tornam, dá para curar ou aliviar?
O manual da Associação Norte Americana de Psiquiatria estabelece como critérios para diagnosticar um “transtorno pedófilo” ter impulsos sexuais relacionados com pré-adolescentes de forma recorrente durante mais de seis meses e ter atuado sobre eles ou sentir-se mal-estar (culpa, ansiedade) por tê-los. Não se conhece a origem do distúrbio. James Cantor, pesquisador do Centro de Saúde Mental de Toronto (Canadá), recolhe dados há uma década sobre pedófilos, comparando-os com outros agressores sexuais. “São poucas pesquisas sobre o tema e o apoio governamental é escasso”, diz, por e-mail. Depois de escanear o cérebro de 127 agressores, a metade de pedófilos, descobriu nestes uma alteração da matéria branca, que rodeia a matéria cinza.
O pesquisador fala em um “curto-circuito na mente do pedófilo”. Para ele é uma “orientação” com a qual se nasce e não é possível mudar. Acha, no entanto, que a maioria não é violenta e que a terapia permite que controlem a conduta.
Paul Fedoroff, diretor da Clínica de Conduta Sexual de Ottawa (Canadá), opina o mesmo a partir da premissa oposta. Considera a pedofilia um “interesse” que pode ser “curado e prevenido”. Seus argumentos: tratou milhares “com um índice de reincidência próximo a zero”. Seu programa, público e gratuito, recebe cada vez mais pacientes. “Em grande parte pelo esforço que fizemos para aparecer nos meios”, conta por e-mail.
Quando os pais de Sergi encontraram as fotos, o menino já ia a um psicólogo porque tinha problemas para se relacionar. Seus pais comentaram o achado com ele: “Não deu importância, minimizou, ‘coisa de criança’, é o que diz um profissional, e você acredita.” No entanto, um tempo depois encontraram mais imagens e seu filho mais velho contou que em uma ocasião Sergi havia tocado um menino pequeno. Era um conhecido, não estavam sozinhos e não foi violento. O menino disse, “Ei, não me toque” e foi embora. “Este é o limite”, pensaram os pais. “Não podemos permitir que continue por este caminho, é preciso procurar um especialista.”
Depois de pesquisar na web encontraram Xavier Pujols, do Instituto de Sexologia de Barcelona, que tratou sete pedófilos em 13 anos com a terapia familiar de Cloé Madanes (dona de um centro na Califórnia que ajudou 72 adolescentes pedófilos). Consiste em 20 passos, o primeiro, “reconhecer o que fez”. A família passou um ano em tratamento. “No primeiro dia, os três já saíram com um sorriso”, lembram. Foi aqui que o menino aceitou o que acontecia com ele, onde relatou que tinha sofrido assédio na escola em segredo durante anos – a origem do problema, segundo seu terapeuta –, onde pediu desculpas a sua família e à vítima. Onde confessou que havia pensado em “sair do caminho”. A lembrança faz a voz de seus pais tremer: “Talvez nossa história ajude outras pessoas, deve haver milhares passando pelo mesmo.”
Pablo aceita falar sobre sua pedofilia em um chat usando um nome fictício e acompanhado de seu terapeuta em Sevilha, também na Espanha. Como os pais de Sergi, quer que seu testemunho sirva para outras pessoas. “Para mim, a terapia me devolveu a vida”, repete. Chegou a ela por mandato judicial. Tinha “trinta e muitos” quando o denunciaram por tocar os genitais de uma menina conhecida. Como não tinha antecedentes, o juiz o obrigou a buscar ajuda. Se reincidisse, iria para a prisão. “Alguns psicólogos me disseram que não sabiam me tratar e isso não me importunava, mas uma terapeuta me expulsou gritando de seu consultório, me chamou de sem vergonha, disse que quem deveria ser tratado eram as pobres crianças para quem eu tinha feito algo, e que como mulher e mãe parecia inaceitável a ela que eu pedisse ajuda.” “Entendo que não somos casos fáceis, mas o que devemos fazer?”, escreve Pablo no chat. “Eu não escolhi isto.”
Entre as muitas coisas que não sabemos sobre a pedofilia – surpreendentemente, tratando-se de algo que preocupa tanto – é como ela se origina. Os especialistas não entram em acordo sobre se o pedófilo nasce ou é criado, embora algumas investigações recentes apontam para uma origem fisiológica (nascem assim e não podem mudar). Os dados sugerem também que muitos pedófilos sofreram abusos na infância, mas que isso não é causa necessária nem suficiente para desenvolver o transtorno.
“Para mim, a terapia me devolveu a vida”, diz Pablo. “Não somos casos fáceis, mas o que podemos fazer? Eu não escolhi isto”
Dos quatro aos oito anos um adulto obrigou Pablo a praticar sexo oral. “Vivi isso com medo, estranhava, com surpresa”, lembra. “Não gostei, mas do mesmo jeito que não gostava de outras coisas. Talvez assumi que era assim e pronto. Depois, quando eu brincava com outras crianças, ensinava isso como tinham me ensinado.” “Agora entendo que nunca tive sexualidade de criança”, diz. “O adulto que abusou de mim roubou isso de mim.”
Quando um leigo investiga durante meses o tema da pedofilia, entra com um punhado de certezas e sai com um saco de dúvidas. Também apaga alguns clichês: ao redor da metade dos condenados por abuso não são pedófilos, quer dizer, não abusaram de crianças por se sentirem especialmente atraídos por eles, mas por outras razões como a oportunidade ou o uso de álcool ou drogas.
A literatura científica é extensa, complexa, às vezes contraditória, outras, incerta. O grande obstáculo é que a maior parte do que sabemos é graças a estudos com mostras pequenas de população reclusa ou com antecedentes. Por exemplo, a pedofilia é basicamente um transtorno masculino, mas também acredita-se que os abusos femininos poderiam estar sub-representados nas estatísticas penitenciárias.
Não sabemos quase nada sobre os pedófilos que, cometendo abusos, não entraram no sistema judicial, nem sobre aqueles que nunca atuaram. Chamam-se a si mesmo “pedófilos virtuosos”. Reúnem-se em fóruns online (sobretudo norte-americanos) para se apoiar mutuamente e formar terapeutas. Não querem cometer delitos e consideram que o sexo com crianças é errado (inclusive o uso de pornografia).
Bob Radke é porta-voz do portal B4uact.org (que significa “antes que você atue”, em inglês). “Nunca cometi um abuso, tenho fantasias, mas isso é tudo que são”, explica por e-mail. “Os fóruns não previnem o abuso, mas pode ser que a comunicação consiga impedir. Atrever-se a fazer terapia é difícil e custa encontrar um psicólogo disposto a escutar. Pedimos que tenham a mente aberta; ninguém bem ajustado deseja sentir-se atraído por menores. Eu nasci assim. Se podemos falar sobre o que sentimos seremos mais felizes, e não imagino uma pessoa feliz machucando outra.”
Na comunidade científica tampouco há consenso sobre como tratar os pedófilos ou até que ponto isso é possível. A terapia mais comum é a cognitivo condutiva, acompanhada ou não de polêmicos remédios inibidores da libido. Os terapeutas coincidem que o pedófilo que busca ajuda de forma proativa tem metade do caminho andado. Pablo concorda: “Para que a terapia funcione, é preciso querer, não fazer em troca de reduções de pena e coisas assim. E para mim é claro que se houvesse recebido ajuda quando era adolescente, nada disto teria acontecido.”
“Na adolescência comecei a me sentir um bicho estranho”, conta. “Não me sentia cômodo bebendo álcool, escutando a música que as pessoas da minha idade ouviam... por isso continuei rodeado de crianças menores. O problema não era que eu gostava das meninas; é que nunca deixei de gostar delas. Todos ficavam loucos pelos seios e para mim dava na mesma.”
Já faz três anos que Pablo tem namorada. Contou tudo a ela. Como se explica algo assim? É a única pergunta que pede para não responder
A prevalência da pedofilia não está clara. Segundo os investigadores do Projeto Dunkelfiend, 1% dos homens são pedófilos (outros estudos chegam a 5%). Pense em um deles. É improvável que tenha imaginado um adolescente angustiado por algo que começa a descobrir em seu interior e que não pode dividir com ninguém. No entanto, sabe-se que a pedofilia, como todos os despertares sexuais, costuma aparecer na adolescência e vir acompanhada de ansiedade, culpa, vergonha, isolamento e ideias suicidas.
O Pablo adolescente acostumou-se a viver “enfiado em si mesmo”. Mas entre os 18 e os 20 anos percebeu que tinha cruzado uma linha. “Foi um momento atroz. Tomei consciência de que podia machucar, embora nunca tenha sido violento, nem nisto nem em outra coisa.” Ocorreu, então, sua primeira tentativa de suicídio, com remédios. A segunda, cortando as veias, ocorreu quando foi denunciado. “O que acontecia comigo – não acontece mais – era que para mim era irresistível limitar minhas demonstrações afetivas com as crianças. Eu cruzava um limite que todo mundo tem, mentalmente eu me sentia como outra criança. As coisas que elas fazem, mostrar os genitais, tocar-se entre eles, eu continuava fazendo depois de abandonada a infância.” “Eles faziam isso com inocência”, diz Pablo. “Mas eu me sentia uma criança com corpo de adulto. Contaminado... Como quem está em uma praia nudista que finge naturalidade, mas fica de olho. Fazia um teatro.”
Pablo está há cinco anos em terapia, muito mais do que o recomendado pelo juiz. “Estamos falando de transformar o mais profundo da personalidade”, explica seu psicólogo, José Luiz Sánchez de Cueto, do Coletivo de Saúde Avansex. “Começamos com o controle das condutas, depois trabalhamos a ansiedade e agora estamos reconstruindo o sentido da vida.” “Eu estou limpo com a sociedade”, diz Pablo, “mas quero estar também limpo comigo mesmo.” Sua ideia é continuar com a terapia. Paga 55 euros (180 reais) pela sessão semanal e vem de outra província. “Mas isto não tem preço, estou comprando vitalidade”, diz. Sente que está se “transformando” e nessa transformação a pedofilia “está desaparecendo”. “Graças à terapia nunca tive uma recaída; de fantasia, sim, mas as fantasias não são delitos.”
Já faz três anos que Pablo tem namorada. No começo foram a várias sessões juntos porque não conseguia ter ereções com ela. Alguns meses depois, aconselhado por seu terapeuta, contou tudo a ela. Como se explica algo assim? É a única pergunta que pede para não responder: “Ela recebeu muito mal... Não me faça lembrar isso, foi mais duro que a denúncia, o julgamento e até a tentativa de suicídio.” “Quando me denunciaram senti muita vergonha, mas curiosamente, uma parte de mim se sentiu liberada.” Sair do segredo foi sua segunda oportunidade. “Acredito que um dia isto vai ser uma triste lembrança”, diz. Pablo se alegra quando, nos noticiários, aparece a detenção de um pedófilo ou uma rede de pornografia infantil. “Eu não me considero um monstro, mas isso não quer dizer que eles não existam. O problema é que a sociedade só vê o mais chamativo. Eu assumo minha responsabilidade e entendo os danos que cometi porque também fizeram comigo. Estou tentando me reconciliar com minha vida e algum dia gostaria de chegar a ser feliz.”
“Ensinamos que vivam sem ser um perigo para a sociedade”
“Tornar-se adulto não é fácil para ninguém. Para você talvez seja ainda mais difícil. Seus amigos se apaixonam por estrelas, por famosos ou pelas garotas da outra classe. Você, por outro lado, gosta dos meninos. É o único que sabe que se sente diferente.” A mensagem, tirada de um vídeo online, faz parte da campanha alemã “Sonha com ele”, que tenta tratar pedófilos adolescentes que estão descobrindo seu problema. A iniciativa, financiada pelo Ministério da Família alemã, faz parte do Projeto Dunkelfeld, que desde 2005 tratou 323 pedófilos adultos (154 continuam em terapia) nas 10 clínicas espalhadas pelo país.
“A maioria conta que seus impulsos surgiram durante a adolescência e que viveram anos de segredos, isolamento, culpa e baixa autoestima”, explica Till Amelung, um dos terapeutas. O programa é a ponta de lança de uma mudança de paradigma, mais empático, sobre a pedofilia, que entende a necessidade de ajudar o pedófilo a se ajudar, mesmo tendo que protegê-lo. “Não é uma mudança fácil, mas pode ser que coloque a salvo muitos menores”, diz Amelung.
O novo projeto, para adolescentes entre 12 e 18 anos, procura enfrentar o problema antes que ele se estabeleça. No ano passado houve um teste piloto com 20 jovens. “Estão cheios de pânico e angústia”, diz Andreas Peter, porta-voz do projeto. “Querem uma cura imediata, mas ela não existe. O que oferecemos é que aprendam a viver sem ser um perigo para si mesmos nem para outros.” O apoio dos pais é fundamental durante o ano de tratamento, de base cognitivo condutiva, que procura aceitar o problema, controlar os estímulos (não usar pornografia, não ficar espiando, limitar o contato com menores) e desenvolver a autoestima. Ao contrário do que oferecem para adultos, é individual e não inclui remédios para reduzir a libido.
“A terapia baseia-se na que é usada para condenados por agressão sexual, mas para nós eles confessam tudo”, explica Amelung. A confidencialidade é central. Na Alemanha, os terapeutas não são obrigados a denunciar o que é dito nas sessões. “Nosso principal objetivo é sempre proteger as crianças”, explica Amelung. “Quando um paciente significa um risco, procuramos fórmulas alternativas para não denunciá-lo, como avisar os pais ou evitar que o pedófilo tenha acesso ao menor.” Na Espanha, “teoricamente é preciso denunciar”, segundo o catedrático de Psicologia, Enrique Echeburúa. “Mas se o abuso ocorreu no passado não imediato, se foi esporádico, o agressor está procurando ajuda e é consciente de que foi um erro... Seria necessário usar o sentido comum, avaliar, sempre primando pela proteção do menor.”
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