Carla Rodrigues | 11.11.2014
Os problemas sociais brasileiros, dadas as suas imensas complexidades, dificilmente podem ser explicados apenas por um ângulo, uma visada ou um argumento. A criminalização do aborto no Brasil é um desses fenômenos de múltiplas injunções, capaz de reunir preconceitos históricos, como a subalternidade das mulheres negras e pobres; dogmas religiosos do valor absoluto da vida, ainda que contraditórios (defende-se a vida dos embriões mesmo que em detrimento da vida das mulheres); a desigualdade no acesso à saúde e, portanto, a métodos contraceptivos; a hierarquia social de gênero e suas inúmeras facetas, incluindo o preconceito no atendimento nos serviços públicos de saúde; e uma poderosa apropriação do Estado pela Igreja Católica que está na origem da organização do poder estatal no país desde a colonização, resultado de uma importante aliança entre ordens religiosas e a coroa portuguesa.
A mais antiga e firme antagonista da descriminalização do aborto é a Igreja Católica, cujas práticas políticas incluem estratégias de atuação em diferentes campos. No Judiciário, pela União dos Juristas Católicos. Criada na França em 1986, reconhecida pelo Vaticano, disseminada em diferentes países do mundo, a UJC congrega no Brasil desde ministros no STF e no STJ até delegados de polícia, passando por todas as esferas dos operadores do direito, como desembargadores, juízes, promotores, procuradores, defensores e advogados. Um de seus braços são os núcleos de pesquisa sobre bioética em universidades, especialmente as católicas, atuando em comunhão com a comissão de bioética da CNBB. O objetivo é fortalecer a argumentação jurídica a respeito do início da vida com fundamentos médico-científicos que sejam coerentes com o dogma religioso. Operam não apenas em relação ao aborto, mas também em relação à reprodução, ao suicídio assistido, à eutanásia, aos métodos contraceptivos – são contra, por exemplo, o uso da pílula do dia seguinte – e a todos os temas ligados à defesa da vida. Foram os principais atores no debate sobre a autorização do uso de células-tronco em terapias e pesquisas científicas.
Perderam na votação da Lei de Biossegurança, mas nem por isso se enfraqueceram. Ao contrário, têm se fortalecido em outras frentes, a principal delas a luta contra a descriminalização do aborto. Para isso, há uma importante aliança entre os juristas e a as iniciativas no âmbito do Legislativo, como a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Vida Contra o Aborto e a Frente Parlamentar Evangélica. Há diferentes projetos em tramitação, que vão da tentativa de instaurar uma CPI do Aborto até o esforço de aprovar o Estatuto do Nascituro, a pedra de toque da argumentação que une juristas, parlamentares e médicos religiosos, e já aprovado em duas comissões da Câmara dos Deputados.
Entre os muitos pontos da proposta que pretende transformar o aborto em crime hediondo, o principal objetivo é conferir estatuto jurídico de pessoa humana ao embrião, incluindo os fertilizados in vitro. A tentativa de aprovar o Estatuto do Nascituro também é a pedra de toque da minha argumentação por que percebo aqui o ponto máximo da contradição em relação ao dogma de defesa da vida. Em nome desse dogma, a morte cotidiana de mulheres que praticam aborto em condições inseguras – como nos exemplos mais recentes de Jandira Cruz e de Elizângela Barbosa – torna-se relativamente menos importante do que a vida dos embriões que elas abortaram. A ideia de aprovar um estatuto para conferir ao nascituro status de “sujeito de direitos” permite, por exemplo, a atuação de advogados em defesa da vida desse embrião, à revelia da vontade da mulher. Há exemplos em casos de ações em que mulheres com gestação de feto anencefálico entram na Justiça para pedir autorização para o aborto. Em nome do estatuto jurídico do embrião, muitas vezes essas mulheres precisaram se confrontar com advogados de defesa da vida do feto potencialmente morto que carregavam em suas barrigas.
Ser sujeito de direitos, no Brasil, é um privilégio diretamente ligado ao acesso a recursos públicos e privados, seja educação, saúde, renda, saneamento. São maiores para brancos do que para negros; para ricos que para pobres; para homens que para mulheres. As últimas estimativas mostram a realização de cerca de 600 mil abortos por ano no Brasil. A Pesquisa Nacional de Aborto/PNA Urna constatou que 20% das mulheres brasileiras chegam ao final da vida reprodutiva já tendo feito pelo menos um aborto ilegal, na maioria das vezes na juventude, entre 18 e 29 anos, uma prática que se espalha em todas as camadas sociais, embora tenha maior incidência nas mulheres de menor escolaridade. Embora seja um dogma na Igreja Católica, o aborto é praticado por mulheres de diferentes religiões e em proporções semelhantes. Cerca de 2/3 das mulheres que fizeram aborto são católicas, 1/4 são evangélicas e um pequeno percentual fica na categoria “outros”. Por fim, a pesquisa identifica que 52% das mulheres entrevistadas usaram Citotec; 36% recorreram à curetagem em clínica privada; e 64% das mulheres concluíram o aborto sem precisar de internação hospitalar.
O Estatuto do Nascituro que pretende transformar o embrião em “sujeito de direitos” ignora, do meu ponto de vista, que mulheres pobres e negras ainda não alcançaram esse patamar no âmbito da sociedade brasileira. São cidadãs de terceira classe, invisíveis, cujas fotos aparecem nas primeiras páginas dos jornais em episódios dramáticos como os de Jandira e Elizângela, mas cujas vidas não têm nenhum valor. Econômico, pois nem o capitalismo as considera perda de mão de obra qualificada, por exemplo; social, por serem invisíveis; político ou cultural, por serem tratadas como mero estoque de população. Se aprovado, o Estatuto do Nascituro daria mais direitos aos embriões que essas mulheres eventualmente carreguem na barriga do que a elas. Se buscam um aborto, estão ferindo o dogma do valor absoluto da vida, mas em defesa delas não se ouve as enfáticas vozes religiosas que se levantam reivindicando o direito dos embriões.
O que percebo como uma contradição na proposta do Estatuto do Nascituro está no cerne do debate sobre a descriminalização do aborto. Desde abril de 2007, quando 1.500 mulheres foram acusadas por crime de aborto em Campo Grande (MS), a estratégia de criminalizar as mulheres que procuram por um serviço de aborto se intensificou. Tanto e a tal ponto de, nestes sete anos de investidas contra clínicas, modificar – para pior – um quadro histórico de desigualdade. Até bem pouco tempo, mulheres com recursos econômicos pagavam caro por abortos clandestinos, enquanto as mulheres pobres se valiam de métodos domésticos arriscados.
Os exemplos recentes de Jandira e Elizângela são emblemáticos dessa mudança a partir do acirramento da estratégia de criminalização: ambas pagaram caro pelo aborto fatal. Mulheres brancas e ricas também estão enfrentando as consequências da perseguição às clinicas, que estão fechando as portas – resultado de um mercado de aborto clandestino abalado pelas denúncias criminais. Clínicas não têm endereço fixo e o recurso ao medicamento mais usado – o Citotec – está na mão do comércio ilegal, vendido como droga ilícita. A intensificação da estratégia de criminalizar o aborto se dá também nos hospitais públicos, nos quais mulheres que chegam para atendimento de complicações de aborto provocado têm sido denunciadas à polícia por médicos, enfermeiras ou auxiliares de enfermagem.
Isso só confirma que, como sempre, o quadro no Brasil é de reiteração da desigualdade. Criminaliza-se quem já vive criminalizada por existir – é negra, pobre, subalterna, e pode ser presa ou mesmo morrer se este for o custo de manutenção do dogma de defesa absoluta da vida. Os filhos dessas mulheres quando deixam de ser embriões, deixam também de ser protegidos e tornam-se alvo da política de extermínio de jovens negros – segundo a Anistia Internacional, são negros os 77% dos 30 mil jovens entre 15 e 29 anos assassinados por dia – em relação aos quais ainda não se conhece mobilização religiosa para promulgação de um estatuto de defesa de suas vidas.
Os problemas sociais brasileiros, dadas as suas imensas complexidades, dificilmente podem ser explicados apenas por um ângulo, uma visada ou um argumento. A criminalização do aborto no Brasil é um desses fenômenos de múltiplas injunções, capaz de reunir preconceitos históricos, como a subalternidade das mulheres negras e pobres; dogmas religiosos do valor absoluto da vida, ainda que contraditórios (defende-se a vida dos embriões mesmo que em detrimento da vida das mulheres); a desigualdade no acesso à saúde e, portanto, a métodos contraceptivos; a hierarquia social de gênero e suas inúmeras facetas, incluindo o preconceito no atendimento nos serviços públicos de saúde; e uma poderosa apropriação do Estado pela Igreja Católica que está na origem da organização do poder estatal no país desde a colonização, resultado de uma importante aliança entre ordens religiosas e a coroa portuguesa.
A mais antiga e firme antagonista da descriminalização do aborto é a Igreja Católica, cujas práticas políticas incluem estratégias de atuação em diferentes campos. No Judiciário, pela União dos Juristas Católicos. Criada na França em 1986, reconhecida pelo Vaticano, disseminada em diferentes países do mundo, a UJC congrega no Brasil desde ministros no STF e no STJ até delegados de polícia, passando por todas as esferas dos operadores do direito, como desembargadores, juízes, promotores, procuradores, defensores e advogados. Um de seus braços são os núcleos de pesquisa sobre bioética em universidades, especialmente as católicas, atuando em comunhão com a comissão de bioética da CNBB. O objetivo é fortalecer a argumentação jurídica a respeito do início da vida com fundamentos médico-científicos que sejam coerentes com o dogma religioso. Operam não apenas em relação ao aborto, mas também em relação à reprodução, ao suicídio assistido, à eutanásia, aos métodos contraceptivos – são contra, por exemplo, o uso da pílula do dia seguinte – e a todos os temas ligados à defesa da vida. Foram os principais atores no debate sobre a autorização do uso de células-tronco em terapias e pesquisas científicas.
Perderam na votação da Lei de Biossegurança, mas nem por isso se enfraqueceram. Ao contrário, têm se fortalecido em outras frentes, a principal delas a luta contra a descriminalização do aborto. Para isso, há uma importante aliança entre os juristas e a as iniciativas no âmbito do Legislativo, como a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Vida Contra o Aborto e a Frente Parlamentar Evangélica. Há diferentes projetos em tramitação, que vão da tentativa de instaurar uma CPI do Aborto até o esforço de aprovar o Estatuto do Nascituro, a pedra de toque da argumentação que une juristas, parlamentares e médicos religiosos, e já aprovado em duas comissões da Câmara dos Deputados.
Entre os muitos pontos da proposta que pretende transformar o aborto em crime hediondo, o principal objetivo é conferir estatuto jurídico de pessoa humana ao embrião, incluindo os fertilizados in vitro. A tentativa de aprovar o Estatuto do Nascituro também é a pedra de toque da minha argumentação por que percebo aqui o ponto máximo da contradição em relação ao dogma de defesa da vida. Em nome desse dogma, a morte cotidiana de mulheres que praticam aborto em condições inseguras – como nos exemplos mais recentes de Jandira Cruz e de Elizângela Barbosa – torna-se relativamente menos importante do que a vida dos embriões que elas abortaram. A ideia de aprovar um estatuto para conferir ao nascituro status de “sujeito de direitos” permite, por exemplo, a atuação de advogados em defesa da vida desse embrião, à revelia da vontade da mulher. Há exemplos em casos de ações em que mulheres com gestação de feto anencefálico entram na Justiça para pedir autorização para o aborto. Em nome do estatuto jurídico do embrião, muitas vezes essas mulheres precisaram se confrontar com advogados de defesa da vida do feto potencialmente morto que carregavam em suas barrigas.
Ser sujeito de direitos, no Brasil, é um privilégio diretamente ligado ao acesso a recursos públicos e privados, seja educação, saúde, renda, saneamento. São maiores para brancos do que para negros; para ricos que para pobres; para homens que para mulheres. As últimas estimativas mostram a realização de cerca de 600 mil abortos por ano no Brasil. A Pesquisa Nacional de Aborto/PNA Urna constatou que 20% das mulheres brasileiras chegam ao final da vida reprodutiva já tendo feito pelo menos um aborto ilegal, na maioria das vezes na juventude, entre 18 e 29 anos, uma prática que se espalha em todas as camadas sociais, embora tenha maior incidência nas mulheres de menor escolaridade. Embora seja um dogma na Igreja Católica, o aborto é praticado por mulheres de diferentes religiões e em proporções semelhantes. Cerca de 2/3 das mulheres que fizeram aborto são católicas, 1/4 são evangélicas e um pequeno percentual fica na categoria “outros”. Por fim, a pesquisa identifica que 52% das mulheres entrevistadas usaram Citotec; 36% recorreram à curetagem em clínica privada; e 64% das mulheres concluíram o aborto sem precisar de internação hospitalar.
O Estatuto do Nascituro que pretende transformar o embrião em “sujeito de direitos” ignora, do meu ponto de vista, que mulheres pobres e negras ainda não alcançaram esse patamar no âmbito da sociedade brasileira. São cidadãs de terceira classe, invisíveis, cujas fotos aparecem nas primeiras páginas dos jornais em episódios dramáticos como os de Jandira e Elizângela, mas cujas vidas não têm nenhum valor. Econômico, pois nem o capitalismo as considera perda de mão de obra qualificada, por exemplo; social, por serem invisíveis; político ou cultural, por serem tratadas como mero estoque de população. Se aprovado, o Estatuto do Nascituro daria mais direitos aos embriões que essas mulheres eventualmente carreguem na barriga do que a elas. Se buscam um aborto, estão ferindo o dogma do valor absoluto da vida, mas em defesa delas não se ouve as enfáticas vozes religiosas que se levantam reivindicando o direito dos embriões.
O que percebo como uma contradição na proposta do Estatuto do Nascituro está no cerne do debate sobre a descriminalização do aborto. Desde abril de 2007, quando 1.500 mulheres foram acusadas por crime de aborto em Campo Grande (MS), a estratégia de criminalizar as mulheres que procuram por um serviço de aborto se intensificou. Tanto e a tal ponto de, nestes sete anos de investidas contra clínicas, modificar – para pior – um quadro histórico de desigualdade. Até bem pouco tempo, mulheres com recursos econômicos pagavam caro por abortos clandestinos, enquanto as mulheres pobres se valiam de métodos domésticos arriscados.
Os exemplos recentes de Jandira e Elizângela são emblemáticos dessa mudança a partir do acirramento da estratégia de criminalização: ambas pagaram caro pelo aborto fatal. Mulheres brancas e ricas também estão enfrentando as consequências da perseguição às clinicas, que estão fechando as portas – resultado de um mercado de aborto clandestino abalado pelas denúncias criminais. Clínicas não têm endereço fixo e o recurso ao medicamento mais usado – o Citotec – está na mão do comércio ilegal, vendido como droga ilícita. A intensificação da estratégia de criminalizar o aborto se dá também nos hospitais públicos, nos quais mulheres que chegam para atendimento de complicações de aborto provocado têm sido denunciadas à polícia por médicos, enfermeiras ou auxiliares de enfermagem.
Isso só confirma que, como sempre, o quadro no Brasil é de reiteração da desigualdade. Criminaliza-se quem já vive criminalizada por existir – é negra, pobre, subalterna, e pode ser presa ou mesmo morrer se este for o custo de manutenção do dogma de defesa absoluta da vida. Os filhos dessas mulheres quando deixam de ser embriões, deixam também de ser protegidos e tornam-se alvo da política de extermínio de jovens negros – segundo a Anistia Internacional, são negros os 77% dos 30 mil jovens entre 15 e 29 anos assassinados por dia – em relação aos quais ainda não se conhece mobilização religiosa para promulgação de um estatuto de defesa de suas vidas.
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