Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Como a polícia argentina tortura as trans

16.07.2015
 
Adital
Cosecha Roja

Michelle Mendoza passou a noite de um sábado em um calabouço urinado e com ratos, em Rosario. A polícia de Santa Fe a pegou e a deteve sem motivo. "As forças policiais seguem torturando os/as jovens por serem pobres e as/os putas/os por serem putas/as”, escreveu a militante trans no Facebook. Na Argentina, as travestis, transexuais e transgêneros vivem, em média, até os 41 anos. A violência institucional é uma das principais causas de mortalidade do coletivo trans, juntamente com os crimes de ódio.
 
cosecha-roja
Sol Lereah e Cristian Calavia – Cosecha Roja
 
"Tenham cuidado com o sangue, toda esta gente tem o bicho”, disse uma oficial no sábado de madrugada, em Rosario, enquanto prendiam Michelle. Detiveram-na juntamente com dois amigos, com os quais estava no carro perto das 3h da manhã.
- Estejam presos.
- Por que?
- Encontramos duas cuecas e um "tupper” [recipiente de plástico] no carro – responderam.
Retiveram seu DNI [documento de identidade] e lhe colocaram entre cinco oficiais. "Um homem policial me sujeitou o rosto apertando minhas bochechas enquanto uma mulher policial me batia com algo preto na cabeça e outra me chutava”, contou Michelle no Facebook. Um dos seus companheiros – também subjugado e ferido – quis ajudá-la.
- O que? Transa com ela, puto? Por isso a defende? – lhe disse o oficial. Depois, chutou sua cabeça enquanto uma agente pegava em seus testículos.
Michelle continuava imobilizada, com as mãos para frente. Empurraram-na para que caísse de frente e desse com a cara contra no chão. Depois a levaram para a 18ª Delegacia, onde foi recebida por uma oficial.
- Estás louca? Eu não tenho nada contra os gays.
- Não sou gay, sou trans.
- Você diz o que quer, mas entre as pernas leva um pênis.
 
O mau trato que recebeu Michelle é cotidiano para o coletivo trans. A discriminação é vivida na falta de oportunidades de trabalho, no mau atendimento nos hospitais, no abuso policial e nos crimes de ódio. "Você não é você, é uma pessoa totalmente diferente do que te fazem mostrar. Adoece duas vezes: uma por ser adolescente e outra pelo gênero”, contou à agência Cosecha Roja Ariana Cano, assessora jurídica do Inadi [Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo] e parte da comunidade trans argentina.
 
cosecha-roja
 
Segundo o informe da Organização Mundial da Saúde, de 2014, a esperança de vida dos argentinos aumentou entre 1990 e 2012: os rapazes passaram de 69 para 73 anos e as mulheres de 72 para 77 anos. Mas as trans só chegam vivas – em média – aos 41 anos, menos do que os habitantes de Serra Leoa, que vivem até os 46.
 
Varela Diversa é uma organização pelos Direitos Humanos das pessoas trans, lésbicas, gays, bissexuais e intersexuais. O primeiro caso que atenderam, em Florencio Varela, foi o de uma trans que trabalhava atrás da estação de trens. Durante uma madrugada de 2012, um homem quis abusar dela e cravou nela uma chave de fenda no estômago. Um grupo de vendedores de cartões a levou para o hospital provincial. As enfermeiras e os médicos saíram da cena. Ela esperou desde 1h da madrugada até as 6h sem ser atendida, se irritou e saiu. No dia seguinte, seu estado era muito grave e tiveram que transferi-la para o hospital de Berazategui. Operaram-na e curaram as feridas.
 
Quando a Varela Diversa começou a trabalhar com a problemática, seus integrantes se deram conta de que as trans que atendiam eram suas próprias vizinhas. "A garota que sai e para na rodovia 2 quiçá é uma companheira que vive a duas quadras da minha casa e que usa o apurado da noite anterior para manter um parente”, disse à Cosecha Roja Marcelo Márquez, presidente da organização.
 
Segundo a primeira pesquisa sobre a população trans, realizada pelo Indec [Instituto Nacional de Estatística e Censos], em 2012, 85,3 % das trans femininas exerce ou exerceu a prostituição. De 209 transexuais consultadas, 151 buscam outra fonte de renda, mas isso as leva a não contarem com os recursos suficientes na hora de satisfazer necessidades básicas e prostituir-se se torna quase a única via para subsistir.
 
Florencio Varela está a 24 quilômetros da Cidade de Buenos Aires. Para Márquez, "o abismo é impressionante em termos de desconhecimento, reconhecimento e de direito”. A grande tensão na periferia bonaerense é que gays e lésbicas ainda temem denunciar. "Como ativista da diversidade sexual, creio que, nos territórios onde a discriminação é tão forte que chega ao assassinato das travestis, o melhor ativismo é a visibilização”, disse.
 
Lohana Berkins – fundadora da Associação de Luta pela Identidade Travesti e Transexual – se escondeu debaixo de um carro para escutar como sua amiga, Mocha Celis, se defendia de um sargento da 50ª delegacia, que estava enfurecido com ela. Era uma travesti tucumana [de Tucumã] que trabalhava no bairro portenho de Flores e que um dia se animou a enfrentar seu agressor: estava farta da hostilidade cotidiana.
 
- Puto de merda! Vais acabar com três tiros! – disse o oficial antes de sair.
 
Nesse dia, não a levou presa, mas três dias depois Mocha desapareceu. Encontraram seu corpo no Hospital Penna. A autópsia revelou que havia sido assassinada com três tiros, mas nunca se soube quem a executou. A causa não prosperou. Mocha não sabia ler nem escrever: hoje, o primeiro secundário trans da Argentina leva seu nome.
 
cosecha-roja
 
Em 29 de maio, a três anos da sanção da Lei de Identidade de Gênero, o Poder Executivo regulamentou o acesso integral à saúde das pessoas trans. Trata-se do artigo 11, que contempla o direito de todas as pessoas trans a solicitarem o acesso a intervenções cirúrgicas totais ou parciais, e a tratamentos integrais hormonais para adequar seu corpo à sua identidade de gênero autopercebida.
 
"Com esse decreto já não há desculpas, as províncias argentinas, a Cidade Autônoma de Buenos Aires, as obras sociais e as empresas de Medicina pré-pagas devem cumprir com o que foi votado por todos os setores políticos no Congresso”, disse a legisladora portenha María Rachid nas redes sociais. Marcela Romero, presidenta da Associação de Travestis Transexuais Argentinas (Atta) e secretária geral da FALGBT [Federação Argentina de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais] disse: "A Lei de Identidade de Gênero nos devolveu o direito de sermos cidadãs e cidadãos de pleno direito. Isso é um passo a mais rumo à igualdade real”.
 
Michelle passou a noite sem comunicação na delegacia, em um quarto urinado, escuro e cheio de ratos. Liberaram-na cedo do dia seguinte. Antes de sair, devolveram sua carteira: quando a abriu, faltava dinheiro, o celular estava quebrado e haviam plantado uma arma. Ela não a tocou e pediu que lhe dessem a bolsa vazia e que fossem colocando aos poucos o que era seu. "Senti-me quebrada. Senti-me como nada. Senti o peso de todas as outras vezes que em minha juventude estive nas mesmas circunstâncias”, escreveu.
 
Fotos: Diego Lereah

Nenhum comentário:

Postar um comentário