Em uma audiência para estabelecer as condições de livramento condicional de um preso, um juiz federal em Kansas City tomou uma decisão, para todos na sala, inesperada: incluiu entre as condições a obrigação de o americano Christopher Harris só fazer sexo com preservativo, enquanto estivesse sob o regime de liberdade condicional.
Os autos do processo continham informações jurídicas fundamentais para a acusação e para a defesa. Harris foi julgado por porte ilegal de arma — um crime que só se configuraria se o réu já tivesse sido condenado anteriormente por três vezes por crimes sérios, o que poderia colocá-lo na categoria de “criminoso de carreira”.
Mas existem crimes que são contabilizados nessa conta e crimes que não são. E a diferença é fundamental para o réu. Se Harris fosse rotulado de “criminoso de carreira”, a pena mínima seria de 15 anos pelo porte ilegal de arma. Se não fosse, a pena máxima seria de 10 anos e a liberdade condicional viria bem mais cedo.
Porém, os autos também traziam uma informação sobre a vida pregressa do réu que, para o juiz Howard Sachs, pareceram inaceitáveis. Ele era pai de 10 filhos, com sete mulheres diferentes, tudo fora do casamento — e todas elas mães solteiras. O juiz concluiu que não deveria deixar esse cidadão solto por aí, fazendo filhos impunemente, sem um mecanismo de controle que protegesse a sociedade.
“Muitas vezes, a pior conduta de um réu, apesar de não ser ilegal, é sua aparente irresponsabilidade em seu comportamento sexual, que exerce um efeito na sociedade e nas crianças que podem não ter o apoio financeiro e emocional que precisam, embora, nesse caso específico, as coisas possam ser diferentes”, o juiz declarou em uma sentença oral, de acordo com adecisão do tribunal de recursos que anulou a condição imposta pelo juiz ao réu, na terça-feira (21/7).
A decisão foi inesperada porque nem a Promotoria, nem o Departamento de Liberdade Condicional do estado, haviam pedido ao juiz para proteger a sociedade contra o réu garanhão — aliás, sequer haviam mencionado o assunto em qualquer audiência. O réu não foi advertido, em qualquer momento, de que seu comportamento sexual estava em julgamento.
Mas o juiz foi em frente com sua iniciativa humanitária. Determinou, ainda, que o réu só poderia fazer sexo sem preservativo com autorização expressa do supervisor de sua liberdade condicional, em cada oportunidade. Nesse ponto, o réu reclamou que isso iria criar um transtorno para ele — uma espécie de problema de logística.
Ainda de acordo com a decisão do tribunal de recursos, uma semana mais tarde o juiz divulgou uma decisão por escrito, para corrigir um pouco sua decisão oral. Ele escreveu que Harris “deve usar preservativos, antes de se envolver em atividades sexuais que podem, de outra forma, causar gravidez, a não ser que tal medida viole seus escrúpulos religiosos, que seja expressamente rejeitada por sua parceira sexual ou que, se casado, o casal planejar ter filhos”.
No caso da religião, a condição estabelecida pelo juiz gera uma questão de violação da Primeira Emenda da Constituição dos EUA, a que protege a liberdade religiosa e outras garantias individuais. Por isso o juiz teve de abrir a exceção.
O advogado de Harris protestou contra a condição imposta a seu cliente, segundo a decisão, declarando que não há provas de que as mães das dez crianças eram incapazes de cuidar de seus filhos. Alegou que “crianças não são doenças epidêmicas que causam dano à sociedade”. E que Harris tem o “direito de procriar”. E que “nenhuma das crianças representa um ônus para o governo”.
Condições para liberdade condicional nos EUA
A legislação americana estabelece que o estabelecimento de condições para a liberdade condicional deve ser “razoavelmente relacionada” a quatro fatores:
1. A natureza e circunstâncias do delito e a história e características do réu;
2. A necessidade de garantir o desencorajamento de condutas criminosas;
3. A necessidade de proteger o público contra futuros crimes do réu;
4. A necessidade de fornecer ao réu o treinamento educacional e vocacional necessário, cuidados médicos e outros tratamentos correcionais da maneira mais eficaz.
Esses fatores estabelecem a primeira regra. Mas há uma segunda: A condição não pode envolver maior privação de liberdade do que a razoavelmente necessária para desencorajar a prática de novos crimes, proteger o público contra futuros crimes e fornecer ao réu o treinamento e a assistência médica necessários.
Para os juízes do tribunal de recursos, a decisão do juiz de primeiro grau não estabelece uma relação entre as restrições às atividades sexuais do réu e o crime de porte ilegal de arma, não explica como elas irão impedi-lo de cometer novos crimes, como irão proteger o público contra crimes futuros e como irão prestar treinamento e assistência médica ao réu. Ao contrário, apenas resulta em maior privação de liberdade.
“Nenhuma lei requer que um homem use preservativos, a não ser que sua parceira rejeite expressamente o seu uso. Se um homem propõe uma atividade sexual consensual, sem mencionar o uso de preservativo, e a mulher voluntariamente concordar, sem mencionar a contracepção, então não há violação da lei. Se a mulher não rejeitar expressamente o uso de preservativos, isso não significa que o homem esteja cometendo abuso sexual ou tenha se envolvido em um contato sexual não consensual. O tribunal pode descrever a conduta sexual de Harris como irresponsável, mas não ilegal”, disse a decisão do tribunal de recursos.
A decisão conclui que o juiz de primeiro grau excedeu o seu poder, quando estabeleceu essa condição especial na sentença da liberdade condicional — o que não vai acontecer tão cedo, porque o juiz o sentenciou a 15 anos de prisão. E que a condição viola dos direitos constitucionais do réu.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
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