A questão levantada pelo livro “O Conto da Aia” mostra como a ficção científica pode nos fazer refletir sobre nossa própria realidade
por Aline Valek — publicado 23/02/2016
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No mundo ficcional, apenas os poderosos podem dispor da fertilidade de uma Aia
Tenho verdadeira fascinação por literatura que me incomoda. Aquela que gera raiva, trata de assuntos incômodos, levanta perguntas que não podem ser facilmente respondidas.
Por exemplo: e se vivêssemos em uma realidade em que nossos próprios corpos não nos pertencessem? E se engravidar fosse algo imposto às mulheres? E se não pudéssemos decidir sobre nossas vidas, se fôssemos escravizadas pela imposição da gravidez? Será que estamos tão distantes assim desse mundo?
Vivemos tão mergulhados em nossa própria realidade que às vezes deixamos de refletir sobre o absurdo que existe nela. Para perceber isso, realmente perceber, precisamos de algum distanciamento. Olhar um pouco para longe.
É isso o que faz a literatura especulativa, mesmo quando constrói futuros distantes, arranjos sociais improváveis, mundos distópicos: pode não parecer, mas com isso ela nos aproxima da nossa própria realidade, faz com que a questionemos.
E foi esse tipo de questionamento que Margaret Atwood desenvolveu incrivelmente no seu livro O Conto da Aia (no original, The Handmaid Tale), uma história sobre uma sociedade ultraconservadora que reservou às mulheres papéis restritos ao âmbito doméstico. Uma história sobre mulheres servirem apenas para reprodução. Uma história, acima de tudo, sobre desumanização.
Conhecer essa história – assim como a escrita de Margaret – foi das minhas grandes descobertas do ano passado. Um daqueles livros tão maravilhosos que não acreditei que ainda não o tivesse lido.
Publicado em 1985 – uma época propícia para as distopias, um ano depois de 1984, de George Orwell, ser adaptado para o cinema –, O Conto da Aia vendeu milhões de exemplares, virou filme em 1990 e até ganhou uma versão para a ópera.
Chegou a ser banido de escolas americanas depois de reclamações de pais, que teriam ficados ofendidos com a história. Um livro denso sobre política, que questiona religião e papéis de gênero, não é mesmo uma leitura fácil de digerir.
O Conto da Aia se trata de um futuro distópico em que os Estados Unidos se tornaram um país teocrático, chamado Gilead, governado com base no fundamentalismo cristão. Mais ou menos o que aconteceria se a nossa bancada evangélica se unisse aos militares para governar o país. Pesadelo.
A submissão da mulher tornou-se institucional, mas aconteceu gradualmente. Primeiro as mulheres não podiam mais trabalhar; depois precisavam de permissão do marido para sair. Depois perderam todas as suas posses, transferidas para o nome do marido. E foram perdendo, cada vez mais. Perderam tudo.
Assim chegaram ao ponto em que foram divididas conforme seu papel na sociedade: Esposas (as mulheres da alta sociedade), as Marthas (serviçais), as Econoesposas (as esposas da classe baixa), as Tias (religiosas que instruíam as Aias) e as Aias (mulheres que só serviam para procriação).
“Era assim que vivíamos então? Mas vivíamos como de costume. Todo mundo vive, a maior parte do tempo. Qualquer coisa que esteja acontecendo é de costume. Mesmo isto é de costume agora. Vivíamos, como de costume, por ignorar. Ignorar não é a mesma coisa que ignorância, você tem de se esforçar para fazê-lo. Nada muda instantaneamente: numa banheira que se aquece gradualmente você seria fervida até a morte antes de se dar conta.”
A narradora vê essa transição. De mulher livre e independente, casada, com uma filha, ela vai perdendo tudo, do emprego à própria filha, até só lhe restar ser resumida pelo traje vermelho (como os hábitos das freiras) que passou a vestir.
Ela é uma Aia, uma das raras mulheres que continuaram férteis em um mundo corroído pela poluição e radiação, que é entregue a um casal que não pode ter filhos, para que o marido transe com ela em um ritual bizarríssimo e ela engravide no lugar da Esposa.
Ter uma Aia no mundo ficcional de Gilead é um sinal de status, pois apenas os homens mais poderosos podem dispor da fertilidade de uma. Ela não passa de uma escrava, um objeto, uma propriedade. Até seu nome, Offred, é um indicativo de posse – ela é “de” Fred, o militar a quem ela é designada. Ela não possui nome, portanto. Ela não possui nem mais seu próprio corpo.
Mas ela ainda possui uma coisa: a memória. E é nesse território que a narradora transita para se sentir, de alguma forma, real diante do absurdo que a cerca.
O cenário político da história pode ser improvável e bem longe de uma projeção realista sobre o futuro; mas é a arena que Atwood constrói para pensarmos sobre a essência de questões que já existem na nossa realidade.
“Talvez nada disso seja a respeito de controle. Talvez não seja realmente sobre quem pode possuir quem, quem pode fazer o que com quem e sair impune, mesmo que seja até levar à morte. Talvez não seja a respeito de quem pode se sentar e quem tem de se ajoelhar ou ficar de pé ou se deitar, de pernas abertas arreganhadas. Talvez seja sobre quem pode fazer o que com quem e ser perdoado por isso. Nunca me diga que isso dá no mesmo”.
A narrativa não é óbvia nem linear; as cenas vêm ondulando diante de nós como ondulam as coisas que existem apenas em nossa memória. Dessa forma, é possível ver e sentir com riqueza de detalhes o pedaço de manteiga que Offred esconde dentro de seu sapato para, sozinha em seu quarto, passar nos braços para se hidratar e se sentir um pouco mais gente. Enquanto isso, em outros trechos, o rosto de sua filha, tomada dela há alguns anos, não passa de um borrão, quase uma fantasia.
Para além dos questionamentos sobre a opressão da mulher numa realidade não tão distante da nossa, Margaret faz esse livro pulsar com a voz e o olhar de sua narradora. O livro é uma forma de conhecer e analisar as reações dessa personagem à realidade onde ela é colocada. É uma forma de testar a humanidade de alguém em um contexto de total desumanização – e ver o que acontece.
A história tinha tudo pra Offred ser uma heroína que acidental ou deliberadamente muda esse cenário, mas não se trata de uma aventura ou da narrativa de uma luta para o fim da opressão.
Ela é mais uma observadora – do mundo e de si mesma – procurando com atenção qualquer fresta, qualquer buraco ou brecha onde ela possa reencontrar um pedaço de sua própria humanidade.
Vale a pena ler para descobrir o que ela encontra – e o que podemos descobrir sobre nós mesmos através dela.
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